Defesa da Universidade
Falta de condições de acompanhar as aulas online força estudantes a desistirem de disciplinas e prejudica os mais pobres
Cancelamento de matrícula é muito mais do que uma opção individual, apontam participantes de live promovida pelo Movimento Correnteza nesta segunda-feira. Falta de equipamento e de acesso à Internet é apenas uma das facetas dos problemas que atingem especialmente os e as estudantes mais pobres durante a pandemia. “EaD é como um ‘tapa-buraco’ só para garantir formalmente que a universidade não parou”, afirma Bruno Cordeiro, aluno do curso de Letras e morador do Crusp
Diretores de unidades da USP têm oferecido a estudantes o que chamam de “escolha” ou “opção” individual de cancelar a matrícula em algumas disciplinas caso não acompanhem as aulas a distância adotadas para que se siga a orientação da Reitoria de que “a USP não pode parar”.
De acordo com estudantes que fazem parte do Movimento Correnteza, no entanto, a questão está longe de ser uma opção individual ou de se resumir ao mero acesso a um modem ou um chip. “Muitos estudantes não têm condições de assistir às aulas pela falta de equipamento ou de acesso à Internet, por não ter um espaço em sua casa ou por estarem preocupados com o adoecimento de pessoas na sua família, porque os familiares dos mais pobres não puderam parar de trabalhar. Diversos fatores levam a não ter condições de acompanhar as aulas. Na prática, esses alunos estão sendo forçados a cancelar a matrícula”, disse Dany Oliveira, aluna do curso de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e integrante da diretoria do Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), numa live sobre ensino e permanência nos tempos de Covid-19 transmitida pela página do movimento no Facebook nesta segunda-feira (27/4). O Correnteza foi criado em 2017 e se define como oposição à direção da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Dany relatou que o CALC realizou na semana passada uma reunião virtual com a diretoria da ECA, na qual o diretor da unidade, professor Eduardo Soares Monteiro, fez coro às proposições da Reitoria pela manutenção das aulas a distância. “Eu sou de artes cênicas. Fazer teatro por aula de vídeo não dá. Isso é absurdo!”, afirmou a estudante.
O mesmo tipo de argumentação — do cancelamento de disciplinas como opção individual — foi apresentado aos alunos do curso de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), disse Gabriel Borges, do Centro Acadêmico da História “Luiz Eduardo Merlino” (CAHIS). “A universidade só funciona para quem tem condições de assistir a uma aula no computador em um ambiente silencioso e consiga fazer suas leituras ao longo da semana com a cabeça livre de preocupações. Esse discurso mostra total desconexão das diretorias com a realidade dos estudantes mais vulneráveis. O perfil do estudante da USP mudou bastante nos últimos anos, principalmente com a aprovação das cotas”, lembrou. “É como se aproveitassem esse estado de exceção para fingir que os avanços que conquistamos dos últimos anos simplesmente não existissem. Isso mostra que é preciso que a gente defenda cada vez mais essa conquista porque não está nada garantido.”
Problemas antigos do Crusp são escancarados com a pandemia
Bruno Cordeiro, aluno do curso de Letras e morador do Conjunto Residencial da USP (Crusp), reforçou: “A gente não está no nosso quarto individual, tranquilo e de barriga cheia, só assistindo às aulas. Estamos preocupados com o emprego que podemos perder, com o emprego que o pai ou a mãe perderam ou podem perder, em garantir o que vamos comer na semana que vem, se o auxílio emergencial do governo vai chegar, além de toda a questão da doença. São preocupações sérias”, apontou.
Na avaliação de Cordeiro, o ensino a distância (EaD) está sendo colocado como “um ambiente de ‘cumprir tabela’ e de fazer a matéria do jeito que der para fazer”. “EaD é como um ‘tapa-buraco’ só para garantir formalmente que a universidade não parou, mas na prática não cumpre o que deveria cumprir para a nossa formação.”
Outros problemas, de acordo com o estudante, são a falta de acesso às bibliotecas e a impossibilidade de debater adequadamente o que está sendo apresentado nas aulas. Além disso, disse, o estímulo ao cancelamento individual das disciplinas no semestre pode acabar induzindo a uma desistência do próprio curso, aumentando a evasão.
Em relação à situação da moradia estudantil, Cordeiro ressaltou que a pandemia trouxe a exposição clara de problemas antigos: “O Crusp sempre esteve largado, não é há pouco tempo que isso está acontecendo. São problemas com lavanderia, cozinha coletiva, segurança… Agora que a situação está escancarada é que estão correndo para resolver coisas que já tinham que ter sido resolvidas antes”.
Os participantes da live afirmaram que a crise do coronavírus favorece o sucateamento das instituições públicas e beneficia o discurso privatista tão ao gosto de autoridades como o ministro da Educação, Abraham Weintraub. “O governo prefere a morte dos trabalhadores à perda de dinheiro pelos empresários”, afirmou Borges. “A crise do coronavírus está abrindo uma oportunidade enorme para expulsar os estudantes que mais precisam estar nesse espaço [a universidade pública]”, acredita Dany. A aluna destacou que o movimento estudantil “não vai parar” e vai continuar exigindo que as aulas online sejam canceladas.
“Se nos organizarmos, temos como pressionar a USP para que nos trate de forma respeitosa. Não vamos desistir do curso e vamos reivindicar as melhorias para que os estudantes mais pobres se formem e tenham o direito à educação pública de qualidade”, defendeu Bruno Cordeiro.
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