Defesa da Universidade
Brasil discute reabertura das escolas sem ter nenhum controle da transmissão da Covid-19, apontam docentes em debate promovido pela Adusp
Mais de um ano depois da chegada da Covid-19 ao Brasil, o país não tem nenhum controle sobre os portadores assintomáticos que continuam disseminando o vírus, não adotou as principais ferramentas para reduzir a transmissão e o número de casos, discute a retomada das aulas presenciais enquanto mantém altas taxas de transmissibilidade e mortalidade e, por falta de vacinas, não alcança o potencial de imunizar três milhões de pessoas por dia que teria capacidade de atingir.
Essas são algumas características do quadro que o país enfrenta no combate à Covid-19, de acordo com o diagnóstico apresentado por docentes da USP no debate virtual “Contribuições da universidade para o enfrentamento da pandemia”, promovido pela Adusp em 28/5. Participaram do debate Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) e coordenador do portal Covid-19 Brasil; Dalton de Souza Amorim, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP); e Adriana Santos Moreno, professora do programa de pós-graduação em Medicina da FMRP. Os três docentes assinam o documento “Reabertura das redes escolares para atividades presenciais: prioridade e controle efetivo da transmissão comunitária do coronavírus”, elaborado por solicitação do Ministério Público de São Paulo e encaminhado ao Comitê Intersetorial da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto.
Domingos Alves abriu sua participação parafraseando o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP, para quem no Brasil temos dois tipos de indicadores: os de interesse epidemiológico, dos quais a academia se utiliza para analisar a pandemia, e os de interesse administrativo, “dos quais prefeitos e governadores se valem para tratar os números, sem fundamentação científica ou até modificando conceitos e protocolos estabelecidos internacionalmente”.
Alves afirmou que o documento que ajudou a elaborar demonstra que o Plano SP, implementado pelo governo do Estado há exatamente um ano (entrou em vigor no dia 1º/6/2020), foi fundamentado especialmente no critério de disponibilidade de leitos. “O pressuposto é o de que, de certa forma, a população poderia ficar doente porque o Estado ofereceria leitos para a internação. Assim, gerou-se um modelo de que era possível haver melhora nos municípios mesmo com a piora no número de casos por dia por 100 mil habitantes”, ressaltou.
No Plano SP, que estabelece fases de maior ou menor restrição à circulação de pessoas e à abertura do comércio e outras atividades, a porcentagem de ocupação de leitos tem peso 4, enquanto o número de casos e óbitos por dia tem peso 1, exemplificou Alves.
“Abrir leitos não tem a ver com o controle da pandemia e da disseminação do vírus. O plano corresponde a uma aposta de que a transmissão do coronavírus na comunidade seria lenta o suficiente para que houvesse a mitigação através dos aspectos clínicos e de que a doença teria baixa letalidade, dando tempo para a chegada das vacinas sem maiores transtornos para a sociedade. Essa estratégia não encontra amparo em nenhuma recomendação científica embasada”, disse.
Alves lembrou que em maio do ano passado a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou orientações e parâmetros para as medidas públicas e sociais que deveriam ser levadas em conta para uma eventual flexibilização. Esses parâmetros incluíam um declínio da incidência de novos casos por dia por um período sustentado de três a quatro semanas — indicadores nunca adotados no Plano SP, de acordo com o docente.
Ocupação de leitos de UTI é superior a 90% em várias regiões do Estado
Alves também chamou a atenção para o fato de que, ao contrário do que os secretários estaduais de Saúde e de Educação dizem, desde o último dia 11/3 São Paulo apresenta números de internações e de casos maiores do que em toda a pandemia. Os dados do portal SP Contra o Novo Coronavírus, do governo paulista, mostram que o Estado tinha, nesta quarta-feira (2/6), 3,291 milhões de casos, com 112 mil mortes no total, e 19.466 novos casos registrados em 1º/6. “Desde o dia 11/3 não há decréscimo sustentado, como apregoado pela OMS, nem a ‘estabilidade’ que os secretários anunciam” afirmou Alves.
Em nenhum momento, desde o início da pandemia, houve foco no controle da transmissão por testagem e rastreamento de contato em São Paulo, considera o professor. Alguns municípios adotaram certos protocolos, mas a maior parte dos prefeitos seguiu a orientação do governo com base no número de leitos disponíveis.
“Precisamos testar assintomáticos, internados e sintomáticos, e não só internados e sintomáticos. A principal ferramenta para o controle da transmissão e redução do número de casos não é o lockdown. Essa é uma medida extrema e pontual, que já deveríamos ter adotado. A principal abordagem é o protocolo TRIS: testagem, rastreamento de contatos e isolamento com suporte”, defendeu.
Essas medidas são fundamentais porque a transmissão por assintomáticos é muito maior do que o presumido pelo Plano SP — “e isso é do conhecimento das autoridades do Estado desde o ano passado”, disse Alves. Estudo realizado pela FMRP em 2020 apontou que a cada caso sintomático positivo correspondem 5,66 casos assintomáticos na população.
“No portal Covid-19 Brasil, fizemos a estimativa de que, enquanto o número oficial de infectados no Estado é de 3,2 milhões, temos mais de 9,4 milhões de casos de pessoas com coronavírus no Estado. Boa parte dessa diferença são os assintomáticos não testados. Essa porcentagem alta de assintomáticos faz com que, mesmo com uma letalidade relativamente baixa, a transmissão seja muito maior do que o esperado, com um número absoluto de casos extremamente elevado e um número de internações também elevado, levando a um colapso do sistema hospitalar, como tem sido observado em várias regiões do Estado”, afirmou.
A taxa de ocupação de leitos de UTI para Covid-19 era de 81,9% nesta quarta-feira (2/6). Pelos critérios da OMS, alertou Alves, ocupação de 80% já caracteriza uma situação gravíssima. Também nesta quarta, várias regiões do Estado registravam índices acima de 90%: Barretos tinha 97,3%, Ribeirão Preto estava com 94,6% e Presidente Prudente alcançava 94,5% dos leitos de UTI ocupados. No dia 18/5, havia 237 pessoas na fila de espera por um leito no Estado.
Situação não está melhorando mesmo com as vacinas, considera docente da FFCLRP
O professor Dalton de Souza Amorim citou comentário de Jorge Souto Maior, juiz do Trabalho e docente da Faculdade de Direito da USP, que num debate também a respeito da pandemia disse que não se pode culpabilizar as consequências como se fossem as suas próprias causas. “O fechamento de escolas e universidades é consequência de uma pandemia descontrolada, e não adianta discutir a reabertura como se as escolas fossem as culpadas pelo seu próprio fechamento”, considera Amorim. “Os economistas não entendem o que é um vírus, os políticos não entendem. Eles acham que vão dar um ‘nó’ no vírus.”
O docente da FFCLRP alertou para o fato de que, no cenário nacional, há risco iminente de nova subida no patamar de mortes diárias, que vem se mantendo em cerca de duas mil. Em São Paulo, afirmou, o histórico de óbitos é pior do que a média do Brasil, o que caracterizou como um “vexame” para o Estado, que tem as melhores universidades e centros de pesquisa e é o mais rico do país.
Na sua avaliação, o Plano SP “tem um verniz científico, coisa que o governo federal sequer está preocupado em produzir, mas mesmo com esse verniz São Paulo tem um desempenho pior do que a média nacional”.
Amorim explicou que o documento produzido a pedido do Ministério Público estabeleceu uma “régua” para medir o risco de transmissão em cada comunidade. O instrumento é um heatmap (mapa de calor) combinando dois parâmetros utilizados pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos para avaliar risco de transmissão na comunidade: o número de casos por sete dias a cada 100 mil habitantes e a porcentagem de positivos entre os testes realizados. O limite inferior da faixa de alto risco utilizado pelo CDC para número de casos é de cem por semana (ou cerca de 14 casos por dia) e o limite inferior da faixa de alto risco para a porcentagem de testes positivos é de 10%.
É preciso testar de dez a 30 pessoas que tiveram contato com cada pessoa cujo resultado deu positivo, explicou Amorim. A cada positivo novo nesse grupo, repete-se o mesmo procedimento com o objetivo de reconhecer os pontos de transmissão e isolar essas pessoas. “Se o resultado mostrar mais de 10% de resultados positivos nessa testagem, isso significa que você não tem ideia do que está acontecendo na comunidade”, afirmou.
Em Ribeirão Preto, a positividade está entre 40% e 50%, citou, o que indica que “ninguém tem a menor noção dos assintomáticos transmitindo na comunidade”. “Esse é o padrão do país. Temos no país inteiro o vírus sendo transmitido a rodo e ninguém controla essa situação”, prosseguiu. “Como se pode querer abrir escolas e comércio? Ou fazer um lockdown de cinco dias? Isso prejudica o comércio, tira a renda da população e não resolve nada.”
A ação correta, defendeu, é fazer um programa sério de testagem, ou seja, identificar os positivos e ir atrás dos contatos. Com um instrumento para medir a gravidade da situação, é possível pressionar as autoridades a adotar essas medidas.
O professor afirmou ainda que nos primeiros meses de 2021, mesmo com o início da vacinação no Brasil, já morreram mais pessoas do que em todo o ano de 2020. “Esse é o cenário que temos. Não adianta dizer que estamos melhorando com as vacinas, porque não estamos”, apontou.
Nenhum país reabriu escolas com a transmissibilidade que o Brasil tem hoje
A professora Adriana Santos Moreno afirmou que a primeira medida para a contenção da mortalidade por Covid-19 no país seria intensificar a vacinação. O Brasil teria condições de imunizar três milhões de pessoas por dia, mas não o faz por falta de vacinas. “Temos que exigir uma melhor política de compra de vacinas”, defendeu.
Além disso, é preciso preservar o distanciamento físico, cuidar das condições sanitárias e higiene pessoal e fornecer equipamentos de proteção individual adequados, especialmente máscaras. Uma gotícula respiratória pode conter até 50 partículas virais do novo coronavírus e, como expelimos essas partículas a todo momento na fala e na respiração, o distanciamento e o uso de máscaras são fundamentais.
Caberia ainda oferecer orientação e educação em massa à população — o que o governo federal, particularmente, jamais fez, apontou Adriana. Outra política essencial seria a adoção do protocolo TRIS. Todas essas medidas deveriam ter sido tomadas no início da pandemia, disse a professora, o que faria com que a situação estivesse bem mais favorável hoje.
Entre os fatores preocupantes do momento está o surgimento de novas variantes que podem ser muito mais transmissíveis. “Ainda não sabemos se a cepa P.4 é mais ou menos virulenta do que as outras, mas a chance de ser tão ou mais contagiosa é grande. O vírus acha formas de fazer o que é melhor para ele. São as leis de Darwin”, explicou.
Adriana relatou também que no ano passado ainda eram pouco conhecidos os sintomas da Covid-19 em crianças, havendo quem acreditasse que elas não eram muito infectadas ou não transmitiam muito o vírus. Hoje já se tem conhecimento a respeito da síndrome inflamatória multissistêmica, que acomete as crianças e pode levá-las a óbito, observou. “A partir de estudos muito bem conduzidos, já sabemos que as crianças possuem a mesma carga viral e nível de transmissibilidade dos adultos”, disse. “A reabertura da rede escolar é importante? Nunca negamos isso. Mas precisamos ter prioridades. Precisamos primeiro controlar a transmissão. Nenhum país do mundo abriu escolas com a transmissibilidade que temos aqui.”
A professora apresentou dados sobre testagem e lockdown em vários países. “O lockdown precisa de pelo menos duas semanas para ser efetivo por conta das características do vírus”, lembrou. A Itália decretou o confinamento quando chegou a 7% de positividade, fazendo 14 testes por caso positivo. A Alemanha adotou a medida quando atingiu 5,8% de positividade, com 17 testes por caso, enquanto na França os números eram de 7,2% de positividade e 14 testes por caso.
A China realizou 1.779 testes por caso, chegando a 0,06% de positividade. Na Coreia do Sul, o índice foi de 0,13%. O país teve menos de duas mil mortes por Covid-19. Israel, Austrália e Nova Zelândia também são exemplos de países que investiram maciçamente em testagem e rastreamento de contatos.
Por aqui, em janeiro deste ano o Estado de São Paulo fez apenas 4,9 testes por caso, com 20,27% de positividade. Os professores lembraram a orientação da OMS de que é necessário fazer de dez a 30 testes por caso para haver um controle efetivo da pandemia. Nenhuma região do Brasil chegou perto desse número.
Plano SP é moldado por pressão econômica, afirma docente da FMRP
César Minto, professor da Faculdade de Educação da USP e integrante da diretoria regional do Sindicato dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), registrou que a entidade aprovou a construção de um plano sanitário e educacional em defesa da vida e da educação a ser debatido nas instâncias regionais. Cada instituição deve elaborar democraticamente o seu plano, com a participação de todos os segmentos das respectivas comunidades acadêmicas, incluindo trabalhadora(e)s terceirizada(o)s.
Algumas das diretrizes gerais propostas são: implementação de atividades e estratégias de recuperação adequadas para toda(o)s a(o)s estudantes, especialmente aquela(e)s que tiveram muita dificuldade para acompanhar o ensino remoto emergencial (ERE); manutenção do ERE apenas enquanto durarem as condições sanitárias impostas pela pandemia; adequação progressiva da infraestrutura física das instituições de modo a resguardar o distanciamento físico previso em protocolos sanitários; adequação das moradias estudantis; retomada das contratações de pessoal por meio de concurso público de efetivação; continuidade dos processos de avaliação e progressão na carreira considerando as dificuldades vivenciadas sobretudo pelas mulheres, em especial as que têm crianças em idade escolar, e também pela(o)s responsáveis pelo cuidado de outras pessoas; adoção pelas instituições do protocolo TRIS.
Na sessão de perguntas, a professora Michele Schultz Ramos, vice-presidenta da Adusp, defendeu que é preciso trazer essa discussão para dentro da universidade, uma vez que o Plano USP de Retorno às Atividades Presenciais, atualmente em sua 15ª versão, é subsidiário do Plano SP. “A USP desconsidera essa situação absurda que uma parte do seu corpo docente está mostrando”, afirmou. “Diretores de unidades estão utilizando o que aparece como ‘recomendações’ do Plano USP para forçar o retorno de funcionários e funcionárias ao trabalho presencial.”
A professora criticou também o peso do número de leitos no Plano SP, critério sujeito inclusive a manipulação. “Podem ser abertos leitos com má qualidade de atendimento, que não são exatamente de UTI, como aconteceu recentemente no Hospital Universitário (HU) da USP. Estão utilizando o nome ‘com característica de UTI’, porque não contrataram todos os profissionais necessários para um leito de UTI”, afirmou.
Nas intervenções finais, Domingos Alves lamentou que o compasso que melhor caracterize o Plano SP seja o da pressão econômica — por sinal, o portal do programa na Internet afirma que o plano é uma “estratégia para retomar com segurança a economia do Estado durante a pandemia do coronavírus”.
Alves criticou ainda os discursos em defesa da volta às aulas presenciais que se utilizam da situação de vulnerabilidade social de alunos e alunas. Na sua avaliação, as crianças em risco no momento são as mesmas que já eram vulneráveis antes da pandemia. “A educação sempre foi um problema no Brasil por ausência do Estado. O interesse de voltar agora é da instituição privada, que está perdendo dinheiro. A pressão é econômica”, considera.
Dalton Amorim afirmou que o Plano SP foi desenhado por economistas, e não epidemiologistas, e fez uma aposta em cima de pressupostos errados. “[Seus formuladores] erraram no começo e agora não podem admitir que erraram, até por conta das consequências jurídicas”, disse.
O professor citou ainda a frase do médico norte-americano William Haseltine, presidente da Access Health International, que, referindo-se às políticas do então presidente dos Estados Unidos Donald Trump em relação à pandemia, declarou no ano passado: “Imunidade de rebanho é outra forma de dizer assassinato em massa”.
A professora Adriana Moreno ressaltou a importância de fazer com que os estudos e descobertas sobre a Covid-19 possam ser rapidamente comunicados à população de forma eficiente.
No encerramento, a professora Annie Schmaltz Hsiou, docente da FFCLRP e 2ª vice-presidenta da Adusp, mediadora do debate, enfatizou que na região de Ribeirão Preto a(o)s professora(e)s da rede estadual estão entre os profissionais mais infectados pela Covid-19. “Para nós o essencial é a vida”, defendeu.
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