Defesa da Universidade
Inclusão vai além da diversidade, e luta contra o racismo deve contar com a participação de todas as pessoas
Temas foram objeto de atividades virtuais realizadas em 30/11: webinário “A extensão universitária como forma de combate ao racismo”, promovido pela Adusp, e debate“Histórias, lutas e (re)existências do povo negro”, organizado pelo Andes-Sindicato Nacional
Desde o seu ingresso na graduação em Geologia no Instituto de Geociências (IGc) da USP, em 1999, Adriana Alves foi tomada por “um sentimento de não pertencimento muito grande”. “Demorei a me ver como parte integrante da universidade, e ouso dizer que só me vi depois de me tornar docente”, afirmou. A razão era o fato de ser a única aluna negra na turma de 50 estudantes numa unidade em que, da(o)s 67 docentes, apenas um era negro — um professor estrangeiro.
O depoimento da professora, que preside a Comissão de Direitos Humanos do IGc, foi prestado no webinário “A extensão universitária como forma de combate ao racismo”, promovido pela Adusp na última terça-feira (30/11). O encontro teve mediação do professor Celso Eduardo Lins de Oliveira, 2º vice-presidente da Adusp e integrante do GT Diversidades do sindicato. Na abertura do evento, Oliveira ressaltou que a extensão tem que ser “o encontro entre saberes populares e a ciência acadêmica, um espaço em que possamos mostrar o retorno para a sociedade de tudo o que fazemos na universidade”.
A professora Adriana Alves abriu sua intervenção ressaltando que, apesar das posições nos rankings internacionais e de outros índices que gosta de ostentar, a USP ainda não pode ser considerada uma universidade excelente, “porque até três ou quatro anos atrás era uma universidade para poucos”.
Somente em 2017 a instituição adotou a reserva de vagas na graduação respeitando as proporções étnicas do Estado de São Paulo, fruto da luta do movimento negro para que o recorte étnico-racial fosse aprovado no Conselho Universitário (Co). De fato a diversidade vem aumentando desde então, constatou a professora, destacando a conquista obtida “a duras penas”.
Ainda há muito o que avançar, no entanto. Dos quase 6 mil docentes da universidade, apenas 2% se declaram negra(o)s, e outros 4% se consideram amarela(o)s. Há apenas um professor declaradamente indígena, na Escola de Educação Física e Esporte (EEFE).
Projeto de extensão quer criar acolhimento e incentivar entrada de cotistas
Adriana Alves apresentou o projeto Sanzala Dia Nzinga (“Aldeia dos Deuses”, em quimbundo) – Conexão e acolhimento de estudantes negros e negras, do qual é coordenadora e que tem Celso de Oliveira como vice-coordenador. Ligado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária, o projeto visa a aumentar o sentimento de pertencimento de aluna(o)s negra(o)s, criar um espaço de acolhimento especializado em abordagens específicas para esse público e incentivar a entrada de novos cotistas em áreas com sub-representação, especialmente a chamada STEM (que reúne ciências, tecnologia, engenharia e matemática, na sigla com as iniciais em inglês).
O projeto vai mapear as e os estudantes nas diferentes unidades da USP para verificar assimetrias, organizar material cartográfico sobre a existência de coletivos e associações, promover oficinas de letramento racial e organizar visitação de escolas públicas para apresentar as oficinas e falar das formas de ingresso na universidade pública, principalmente nas áreas vizinhas às unidades participantes — Cidade Universitária, Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e câmpus de Pirassununga. O Sanzala conta com duas bolsas de pós-graduação e quatro de iniciação científica.
“A motivação veio da falta que senti na minha graduação de olhar para o lado e poder me ver refletida, de ganhar um abraço quando se passa por algum episódio racista tendo a plena consciência de que o outro sabe que se trata de agressividade e crueldade, e não da sua fraqueza”, disse. “Descobrir que o problema não era meu é muito libertador e eu queria que as pessoas mais jovens descobrissem, mais cedo do que o que me foi proporcionado, que o problema não é delas.”
A professora ressaltou a importância da representatividade e citou o coletivo Escuta Preta, formado por aluna(o)s do Instituto de Psicologia. “Fez muita diferença para mim encontrar uma terapeuta negra”, enfatizou.
Na sua visão, a geração que está chegando agora vem “para questionar e abalar as estruturas”. “Tenho muito medo de deixar essas pessoas desamparadas e desacolhidas. Na coletividade elas vão encontrar essa força e esse alento”, completou.
Adriana encerrou sua primeira intervenção citando o CEO da Bayer no Brasil, o holandês Theo van der Loo, que logo em seus primeiros tempos no país foi confrontado com as assimetrias na representatividade racial existente na empresa. “Quando o assunto é diversidade racial, não é difícil encontrar pessoas dispostas a tirar selfies. O difícil é encontrar aquelas dispostas a construir conosco o roteiro de um longa-metragem mais justo e diverso. É disso que precisamos”, disse o executivo num debate.
Há muros para fora, mas também dentro da universidade, diz professor
O professor Valdinei Freire, docente da EACH, citou a experiência do C4AI, o Centro de Inteligência Artificial da USP, criado em associação com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a IBM. O centro criou um comitê de inclusão e diversidade que, como primeira ação, lançou um edital voltado para grupos sub-representados, oferecendo oito bolsas de iniciação científica. Foram recebidas mais de 300 inscrições, de pessoas de todas as áreas, não só da computação, e todo o processo foi bastante rico, relatou Freire. A maioria das pessoas selecionadas é de mulheres, negras e de orientação não heterossexual.
“Diversidade é o que a gente pode alcançar até de forma mais rápida e fácil, como a reserva de vagas. A inclusão está longe, passa por vários pontos para que as pessoas se sintam mais à vontade dentro da universidade”, disse.
Freire também mencionou estranhamento e a sensação de não pertencimento à universidade ao longo de sua trajetória. “Fora da USP sou angoleiro [praticante da Capoeira Angola], filho de paraibano e pernambucana, e dentro isso não se conectava de forma alguma com a pesquisa que faço na área de Inteligência Artificial”, relatou.
Contou que, quando prestou o vestibular na USP (foi a primeira pessoa da família a fazer o exame), não sabia sequer onde ficava a universidade. Só depois de aprovado descobriu que levaria duas horas no transporte público para chegar ao câmpus. “Não ter acesso significa não conhecer os processos para entrar e não se imaginar nessa universidade”, disse.
“Agora me sinto mais à vontade na USP com esses projetos, porque estou conhecendo pessoas que dialogam dentro do que eu penso e acredito.” Na avaliação de Freire, “não há muros somente da universidade para fora, mas também dentro dela”.
É preciso interpelar a hegemonia branca, considera docente da EACH
A professora Elizabete Franco, docente da EACH e também integrante da coordenação do projeto Sanzala Dia Nzinga, relacionou sua fala à da professora Adriana, relatando que frequentemente as alunas negras do curso de Obstetrícia da unidade dizem que sairão da USP porque não é um lugar para elas e não tem nada a ver com a sua realidade. “Abrimos cotas, mas não modificamos a universidade”, afirmou.
A professora considera que alguns avanços têm sido feitos a partir da mobilização das estudantes. No próximo semestre, por exemplo, haverá uma disciplina de Relações Étnico-raciais e Saúde na Obstetrícia.
Elizabete Franco também ressaltou a importância de discutir o papel das pessoas brancas na luta antirracista na universidade. “É um exercício difícil, porque todos querem ser bacanas, bons e politicamente corretos, mas não somos. Escorregamos demais nessa discussão porque não achamos nosso lugar e às vezes pensamos que é melhor não falar nada para não errar, porque esse assunto é dos negros. Os brancos ajudaram a construir isso, então têm que discutir também”, afirmou.
Em sua avaliação, a(o)s estudantes negra(o)s não estão sendo acolhida(o)s — “eles e elas nos contam isso o tempo todo”, disse. “Não já alternativa para transformar a universidade a não ser interpelando essa hegemonia branca”, defendeu.
Furar a “bolha” da branquitude é difícil, reconheceu a professora, porque o tema envolve questões de poder e privilégio branco, temperadas ainda pelo discurso falacioso da “meritocracia”. “A omissão branca é anuência ao racismo. O racismo constitui a nossa subjetividade. Só que isso está no plano dos direitos também, então não se trata só de subjetividade”, apontou.
A professora Adriana Alves criticou a omissão na discussão sobre o racismo com base na desculpa de não se estar no “lugar de fala”. É melhor falar e ser corrigido do que se omitir, defendeu. “Os brancos ajudaram a criar o racismo e têm que ajudar a resolver. O racismo passou a ser problema nosso porque quem sofre as consequências somos nós, mas quem o inventou e se articula para sustentá-lo, quem faz um pacto narcísico para enxergar excelência só em quem se parece com si mesmo são os brancos”, afirmou. “Cabe a vocês desconstruir toda essa estrutura montada para privilegiá-los.”
Tecnologia também embute caráter racista
Também na terça-feira, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) promoveu o debate “Histórias, lutas e (re)existências do povo negro”, concluindo as atividades do Novembro Negro promovidas pela entidade. A mediação coube a Joselene Ferreira Mota, 1ª vice-presidenta da Regional Norte II da entidade.
Primeiro palestrante da mesa, o professor Celso Eduardo Lins de Oliveira, 2º vice-presidente da Adusp, ressaltou que, assim como o capitalismo se reinventa nas formas de escravizar os corpos e nos objetificar, “o racismo procura e encontra nas formas de evolução da sociedade outros modos de criar barreiras para que o povo preto não ocupe posições de decisão em nosso país”. “Isso ocorre também no mundo da tecnologia, no qual estamos todos e todas cada vez mais inseridos e que é também um dos âmbitos de nossa existência social”, afirmou.
Vendidos como “neutros”, softwares e tecnologias são excludentes, defendeu. Oliveira citou o caso de uma empresa de telefonia que requereu que o cliente fizesse uma foto para reconhecimento facial pelo aplicativo. No entanto, o sistema não validou nenhuma das imagens e só aceitou uma foto quando a pessoa mordeu os lábios e os “escondeu” na boca. “Esse tipo de coisa tem acontecido cotidianamente”, relatou.
Outra manifestação desse tipo de discriminação se deu com a criação pelo governo federal do aplicativo para acesso ao auxílio emergencial na pandemia. “As pessoas mais carentes, que mais precisavam do auxílio, tinham que ter um smartphone, e muitas não tinham. Aí vemos a tecnologia enquanto barreira, enquanto forma de não ter acesso ao que o Estado brasileiro em tese deveria oferecer”, apontou.
No âmbito da segurança pública, alertou o professor, Estados e municípios estão investindo em tecnologias de reconhecimento facial que, na maior parte dos casos, não têm mais de 40% de acerto quando se trata de pessoas pretas. “O ‘engano’ que acontece nas delegacias está se automatizando para levar mais gente preta para a cadeia, em mais uma expressão da política de encarceramento da população negra no Brasil”, afirmou.
Há também aplicativos para seleção de recursos humanos que classificam as pessoas pela cor. E, como a busca por trabalho passa cada vez mais pelas mídias sociais, “quem nos garante que não há seleção pela cor da pele?”, perguntou.
O professor defende que a sociedade precisa conhecer o que está acontecendo no âmbito da tecnologia. “É preciso ampliar o ensino e a aprendizagem de uso e desenvolvimento de novas tecnologias. A gente vai encontrando nessas novas formas de existência uma necessidade de criar novos modos de resistência. É mais uma frente em que temos que estar prontos para lutar”, apontou.
Esse é um dos focos do projeto Aqualtune Lab, do qual Oliveira faz parte. O coletivo se debruça sobre questões que atravessam tecnologia, direito e antirracismo.
O professor também defendeu que a democracia não se restringe ao direito de votar e ser votada(o), apenas uma de suas facetas, mas deve ser um regime em que toda(o)s têm os mesmos direitos.
“Quando uma pessoa preta desrespeita a lei, é encarcerada imediatamente, enquanto que com as pessoas brancas isso não acontece. Nosso regime de direitos é muito diferente, e a luta por direitos deveria estar na agenda de todos os cidadãos”, afirmou. O professor também chamou a atenção para a necessidade de incluir o racismo na pauta dos debates na eleição do ano que vem.
Coalizão Negra defende manutenção da lei das cotas, que deve ser revista em 2022
Aline Pereira da Costa, da coordenação nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), abriu sua intervenção ressaltando que não se pode falar de classe no Brasil sem falar em raça, assim como não se pode pensar a segurança pública e o sistema de Justiça sem falar em racismo estrutural.
O MNU integra a Coalizão Negra por Direitos, formada em 2018, quando entidades e movimentos, frente ao avanço do neofascismo no Brasil, se reuniram para criar meios de fortalecer a luta antirracista no país. Atualmente, é composta por mais de 250 organizações.
Aline ressaltou que a reivindicação histórica dos movimentos negros é para reconhecer a luta contra a escravidão protagonizada por nomes como Dandara e Zumbi dos Palmares. A proposta de que o 20 de Novembro, que homenageia Zumbi, fosse considerado o marco principal dessa luta — e não o 13 de Maio, data da assinatura da abolição — teve início no movimento negro do Rio Grande do Sul e se espalhou pelo país. O Dia Nacional da Consciência Negra foi instituído oficialmente em 2011.
Mestre em relações étnico-raciais, Aline lembrou que a Lei Áurea foi assinada sem que tenha sido feito nenhum processo de inclusão da população negra na sociedade ou no mercado de trabalho, excluindo-a também do acesso à terra. “Temos que entender o quanto o racismo e a escravidão impactam o cotidiano do Brasil hoje”, disse.
A representante da Coalizão chamou a atenção para a necessidade de defender as cotas no ensino superior público. A lei 12.711/2012, que regula o programa de acesso de estudantes pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, bem como de quem cursou integralmente o ensino médio em escolas públicas, estabeleceu para sua revisão o prazo de dez anos, que se completa em 2022.
Um projeto que tramita na Câmara dos Deputados transfere a revisão para 2032. O substitutivo do deputado Fábio Trad (PSD-MS) já tem parecer favorável da relatora e aguarda votação na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da casa.
No início dos anos 2000, negros e negras representavam apenas 2% dos alunos e alunas no ensino superior do país. “Não se pode falar em justiça, democracia, Estado igualitário e sociedade igualitária se não conseguirmos pensar sobre como precisamos disputar o poder. As ações afirmativas devem ser uma pauta de todos e todas”, afirmou.
A Coalizão defende a manutenção da lei de cotas até que se tenha de fato uma proporção étnico-racial equânime no sistema de ensino brasileiro. Aline conclamou o Andes-SN a se juntar na luta pela manutenção das cotas.
Mencionou também a campanha Tem Gente com Fome, integrada pela Coalizão e outros movimentos e entidades, que atende milhares de famílias em todo o país em ações emergenciais de enfrentamento à fome e à miséria, agravadas pela pandemia de Covid-19.
Zuleide Queiroz, 2ª vice-presidenta do Andes-SN, ressaltou que é preciso pensar a exclusão contida no próprio discurso de inclusão, cenário que as tecnologias colocam em destaque o tempo todo. A professora lembrou que um grande contingente de estudantes, muita(o)s dela(e)s preta(o)s, foi excluído das aulas remotas durante a pandemia por não possuir equipamentos adequados ou acesso a redes.
Zuleide enfatizou que, além dos problemas que provocou no mundo inteiro, a pandemia agravou a desigualdade no Brasil, assolado “por um governo genocida e de caráter fascista”.
A professora afirmou que a política de cotas permitiu que a(o)s estudantes negra(o)s conseguissem entrar nas universidades públicas, “muitas vezes derrubando a porta e os muros”, e lembrou que o Andes-SN tem entre suas bandeiras a consigna de que enquanto houver racismo não haverá democracia. A entidade também está engajada na luta para fazer valer as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tratam da inserção da história e da cultura afro-brasileira e indígena nos currículos da educação básica.
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