Para participar das aulas e demais atividades de um programa nacional de pós-graduação que a USP integra, professores(as) de Língua Portuguesa da rede pública do Estado, da Prefeitura de São Paulo e de outros municípios da Região Metropolitana têm sofrido assédio e até ameaças de abertura de processos administrativos que, no limite, podem resultar em exoneração.

Em muitos casos, a presença nas aulas e atividades do programa acarreta registros de faltas não abonadas nas escolas, o que prejudica a ascensão na carreira e leva a situações como perda do pagamento de bônus eventualmente concedidos pelo Estado ou pelas prefeituras.

Os(as) professores(as) são matriculados(as) no Programa de Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras), pós-graduação stricto sensu oferecida numa rede de 42 universidades públicas das cinco regiões do Brasil, tendo como sede a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O curso prevê a conclusão de 24 créditos em seis disciplinas e a entrega de uma dissertação ligada à atividade docente em sala de aula — os(as) professores(as)-alunos(as) não entram no programa já com um projeto de pesquisa, mas o desenvolvem ao longo do mestrado.

Como o objetivo do curso é capacitar professores(as) para atuar no ensino fundamental e contribuir para a melhoria da qualidade da educação básica no país, incluindo a produção de materiais didáticos que desenvolvam competências comunicativas a serem utilizados em sala de aula, os(as) mestrandos(as) devem permanecer em atividade nas suas escolas.

Além da falta de incentivo e dos entraves administrativos e burocráticos impostos pelos diferentes níveis de gestão para que os(as) professores(as)-alunos(as) do ProfLetras obtenham essa formação de qualidade, a turma que ingressou neste ano sofre as consequências do atraso na publicação do edital de seleção, que saiu em novembro de 2022. O processo seletivo ocorreu somente em fevereiro deste ano e, quando as aulas do programa começaram, em maio, os(as) professores(as)-alunos(as) já tinham a sua atribuição de aulas e a grade horária definidas nas suas escolas.

“Os professores iniciaram a negociação com a gestão das escolas no sentido de conseguir alterar as datas de suas aulas. Em vários casos, a gestão das escolas diz simplesmente que não há substituto e eles têm arcado com as faltas. Então, se sentem ameaçados o tempo todo”, relata a professora Mariângela de Araújo, docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e coordenadora do ProfLetras na USP.

“É uma coisa que não faz nenhum sentido, uma vez que se trata de um programa que se define como uma política nacional para a qualidade da educação pública”, prossegue. “Temos sempre a cobrança por uma educação pública de mais qualidade e, quando isso está sendo oferecido, há um impedimento pelas diferentes gestões.”

Ameaçado de exoneração, professor precisou sair em licença médica

O Informativo Adusp Online conversou com sete professores(as)-alunos(as) do ProfLetras das redes estadual e de municípios da Grande São Paulo, uma ingressante em 2022 e os(as) demais da turma deste ano. Os relatos ecoam a fala da professora Mariângela ao ressaltar os obstáculos criados pela gestão das escolas ou das secretarias de Educação para a obtenção de uma qualificação acadêmica e profissional. A identidade das fontes será preservada para evitar que os(as) professores(as) sofram ainda mais mais represálias.

Uma das alunas, que ingressou no ano passado, acabou pedindo exoneração do cargo que exercia há dezoito anos no Estado. Já na escola municipal em que leciona, na rede paulistana, conseguiu montar um horário flexível. A professora relata, no entanto, que uma colega precisou pedir exoneração de outro cargo para poder assistir às aulas do ProfLetras. “Isso é uma coisa grave. Para se manter estudando, o professor tem que abrir mão de um cargo efetivo e ganhar menos”, lamenta.

A docente relata que o ProfLetras realmente traz mudanças positivas. “Mesmo há tantos anos na rede, modifiquei minha prática de ensino para melhor e me aperfeiçoei”, diz.

Os(as) professores(as) que se inscrevem no programa têm consciência de que podem sofrer prejuízos na carreira, como adiamento da aposentadoria e perda de bônus, e ainda assim optam por buscar a qualificação e fazer o curso, afirma. “Aplicar desconto em folha pelas faltas e ainda ameaçar com processo administrativo é uma política bastante cruel. Mas parece que não é suficiente apenas punir financeiramente o professor que quer estudar, tem que punir de outras formas”, critica. “O aluno de escola pública não tem direito a ter um professor com mestrado?”

Um caso bastante grave na turma de ingressantes de 2023 é o de um docente da rede municipal que foi chamado pela diretora da escola e avisado que, se mantivesse o padrão de faltas, seria alvo de um processo administrativo que poderia resultar na sua exoneração.

O professor relata que as reuniões com a direção e a ameaça de punição acabaram levando-o a um processo de burnout e ansiedade, culminando num pedido de afastamento do trabalho. No momento, o servidor segue afastado, toma medicação e recebe acompanhamento psiquiátrico. “Nós temos que ensinar, mas não podemos aprender?”, pergunta.

“Não tenho quem me ampare em caso de querer estudar”, diz uma docente da rede estadual. “O pessoal me pergunta: ‘Por que você está fazendo esse curso?’ É muito triste a gente na educação escutar esse tipo de coisa. Deveria haver um estímulo para que nós estudássemos sempre.”

“Desde quando não é importante para o Estado que um professor de língua portuguesa faça um mestrado para melhorar a educação pública? O ideal seria que a lei nos amparasse neste momento, e não que nos onerasse”, completa.

Escolas não seguem critérios uniformes e acabam decidindo caso a caso

Na cidade de São Paulo, os(as) professores(as)-alunos(as) estão amparados(as) pela legislação municipal para fazer um curso de pós-graduação stricto sensu, como é o caso do ProfLetras. Em janeiro de 2018, o então prefeito Bruno Covas (PSDB) publicou o Decreto 58.073, que regulamenta a concessão do horário de estudante a “servidores municipais regular e comprovadamente matriculados em curso superior”.

O artigo 3º do texto determina que o horário de estudante consiste “na possibilidade concedida ao servidor, mediante requerimento prévio, de entrar uma hora mais tarde ou sair uma hora mais cedo daquela prevista para o início ou fim da sua jornada normal de trabalho, nos dias em que tiver aulas”.

Já o artigo 5º estabelece que, “de modo a possibilitar a melhor acomodação das jornadas de trabalho, o servidor estudante poderá escolher, de comum acordo com a chefia e observado o interesse público, prioritariamente em relação aos demais servidores lotados na unidade, os horários de início e fim de sua jornada de trabalho”, enquanto o artigo 4º diz que “poderá o servidor, mediante requerimento prévio, ausentar-se do serviço nos dias e horários em que se realizarem provas”.

Na prática, de acordo com o relato dos(as) docentes ouvidos pela reportagem, cada diretor(a) acaba decidindo com base em critérios próprios: há aqueles(as) mais abertos(as) a encontrar soluções e outros(as) que são intransigentes ou aferrados(as) a questões de poder.

Uma professora da rede municipal conta que conseguiu remanejar algumas aulas a partir de conversas com colegas e, assim, reduzir o número de faltas nos dias em que frequenta o ProfLetras. Dessa forma, o risco de sofrer um processo administrativo diminuiu.

Por parte da direção da escola, no entanto, não houve nenhuma colaboração para o rearranjo dos horários, mas apenas a advertência sobre a possibilidade de processo. “Só consegui por causa dos colegas, sem auxílio da gestão”, reforça.

Mesmo assim, por conta das faltas registradas no ano, a professora não teve direito a receber o Prêmio de Desempenho Educacional (PDE) da Prefeitura, cuja primeira parcela, com valor médio de R$ 3 mil, foi paga em julho. “Como professora que quer estudar e melhorar as aulas, sou punida”, critica. “O mais contraditório é que o nosso projeto vai ser aplicado na escola, e quem vai se beneficiar são os alunos, a escola e a comunidade.”

Procurada pelo Informativo Adusp Online por meio da assessoria de Imprensa da Secretaria Municipal de Educação (SME), a Prefeitura de São Paulo enviou nota na qual fez questão de afirmar que “a falta de dados, que não foram fornecidos pelo jornalista, impossibilitou uma checagem completa das informações”.

A assessoria se refere ao fato de que solicitou ao Informativo Adusp Online os nomes dos(as) professores(as) ouvidos(as) pela reportagem “para verificar os casos”. No entanto, como já observado, a reportagem optou por não revelar a identidade das fontes para evitar novas represálias.

Em relação “à dispensa de ponto de servidores para participação de cursos”, a SME diz que, “conforme o Decreto 48.743/2007 e Instrução Normativa SME 36/2022, é vedado o afastamento de servidores para a realização de mestrado no âmbito da Região Metropolitana de São Paulo”.

“Em casos excepcionais”, prossegue a nota, “devidamente justificados pela Secretaria ou Subprefeitura, poderá ser concedido afastamento para cursos de aperfeiçoamento e especialização, desde que correspondam a pré-requisito para provimento de cargo público municipal, mediante autorização da gestão”.

De fato, o decreto de 2007 citado pela SME veda, em seu artigo 9º, a concessão de afastamento para a realização de cursos “em nível de pós-graduação, regulares e de longa duração, realizados nos municípios que integram a Região Metropolitana de São Paulo”. Porém, o dispositivo não se aplica ao caso do ProfLetras, pois não se trata de afastamento, uma vez que os(as) professores(as)-alunos(as) continuam trabalhando enquanto cursam o mestrado.

Por sua vez, a Instrução Normativa no 36 estabelece os procedimentos para a solicitação do afastamento previsto no referido decreto — o que, como se viu, não é o caso.

A nota da SME não faz referência ao Decreto 58.073/2018, que regulamenta a concessão do horário de estudante.

O Informativo Adusp Online enviou questionamentos também à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc), que não se manifestou.

Mestrandos(as) defendem criação de lei que ampare direito à formação sem prejuízo à carreira

Os problemas citados pelos(as) mestrandos(as) do ProfLetras na USP afetam alunos(as) das outras instituições da rede em que o programa é desenvolvido. Na avaliação dos(as) pós-graduandos(as), é necessário criar uma legislação que proteja docentes que buscam formação acadêmica. “Enquanto não houver esse amparo legal, os próximos mestrandos vão passar pelo mesmo problema”, destaca um dos professores ouvidos pela reportagem.

Algumas articulações têm sido feitas por alunos(as) e docentes do ProfLetras em vários Estados para que parlamentares apresentem projetos de lei nas assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados para garantir, por exemplo, a possibilidade de dispensa para a realização de cursos de pós-graduação sem punições e sem prejuízos à carreira.

Os(as) professores(as)-alunos(as) ouvidos(as) pela reportagem citam ainda situações contraditórias como a obrigatoriedade de presença em “formações” para treinamento na utilização de materiais produzidos pelas secretarias – a exemplo dos slides fornecidos pela Seduc, alvo de críticas pela sua baixa qualidade e por conterem muitos erros.

Também é frequente, relatam, o oferecimento de cursos por parte de instituições privadas. “A gestão abre a escola para que essas pessoas entrem na sala dos professores e façam propaganda de seus cursos, que nós temos que pagar do próprio bolso se quisermos fazer”, critica um docente. “Agora, quando conseguimos um mestrado público numa universidade como a USP, temos toda essa dificuldade e essas ameaças de processo.”

EXPRESSO ADUSP


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