Governo do Estado
MP-SP recomenda que Feder deixe de impor uso das plataformas digitais nas escolas públicas e revogue punições a profissionais da educação, sob pena de ser alvo de ação civil pública
O Grupo de Atuação Especial em Educação (Geduc) do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) expediu no início de outubro uma recomendação, em caráter preventivo e cautelar, para que a Secretaria da Educação do Estado (Seduc) deixe de impor o uso das plataformas digitais na rede de ensino e anule eventuais punições derivadas do não atingimento das metas de uso e tempo de conexão nas plataformas.
O Geduc requisita ser formalmente comunicado quanto ao acolhimento ou não da recomendação no prazo de 30 dias, que se esgota no próximo dia 3 de novembro, devendo a eventual resposta conter informações que demonstrem as ações que serão adotadas em cada um dos cinco tópicos abordados.
“Em caso de não acatamento”, diz o documento (leia aqui a íntegra), o MP-SP “consigna que adotará todas as medidas legais necessárias a fim de sanar as violações a direitos fundamentais retratadas, inclusive por meio do ajuizamento de ação civil pública, conferindo a presente ciência inequívoca à autoridade nomeada [o secretário de Educação, Renato Feder] quanto às ilegalidades verificadas e minuciosamente descritas”.
Os cinco pontos da recomendação do Geduc à Secretaria da Educação são os seguintes:
1) Conceber e implementar permanente plano de atenção à saúde psíquica de crianças e adolescentes apto a prevenir e remediar os efeitos adversos e o adoecimento decorrente do uso exacerbado de dispositivos eletrônicos e telas, no bojo do qual seja ofertada capacitação a todos os profissionais da educação que permita a identificação de sinais de sofrimento emocional e a promoção da saúde mental dos estudantes.
2) Editar diretrizes claras, objetivas e públicas sobre o uso de plataformas digitais e material digital pré-produzido, em observância ao dever constitucional e legal de transparência e publicidade que cerca a função administrativa, contendo diretrizes e orientações que tornem facultativo o uso dessas ferramentas educacionais por educadores em salas de aula e que respeitem a autonomia de que legalmente dotados esses profissionais quanto à escolha de metodologias e recursos de ensino para ministração das aulas e cumprimento do currículo escolar estabelecido.
3) Induzir e assegurar progressiva autonomia administrativa e pedagógica das unidades escolares, de suas equipes e comunidades inclusive quanto ao uso de plataformas digitais e material digital pré-produzido, permitindo que profissionais, comunidade escolar e estudantes pactuem a melhor forma de utilizarem os recursos tecnológicos durante as aulas, segundo suas singularidades sociais e territoriais, a partir dos consensos democraticamente definidos e consignados nos respectivos projetos político-pedagógicos.
4) Revogar todos os atos normativos editados para punição de docentes, supervisores e editores que não atingirem as metas de uso e tempo de conexão nas plataformas educacionais, especialmente o artigo 2º, inciso III, da Resolução Seduc nº 4, de 19 de janeiro de 2024.
5) Rever e anular eventuais punições derivadas do uso obrigatório de plataformas digitais e material digital pré-produzido sobre profissionais da educação, como a remoção de escola, a perda da função de diretor designado ou a imposição de frequência a curso, dentre outras, impostas com fundamento nos atos administrativos referidos no item retro, com o consequente restabelecimento da situação funcional dos profissionais atingidos, inclusive retorno às escolas ou postos de trabalho de que foram privados, se assim desejarem e for conveniente ao atendimento do interesse público.
A recomendação, esclarece o Geduc, é um “instrumento de atuação extrajudicial conferido ao Ministério Público por meio do qual são elencadas razões fáticas e jurídicas, prevenindo a imputação de responsabilidade civil, administrativa ou criminal e o ajuizamento de ação civil pública caso haja correção da conduta ilícita verificada”.
Empresa da qual secretário é acionista tem contratos com governo estadual
O documento faz uma ampla contextualização do uso das plataformas digitais pela gestão de Feder, “coincidentemente” um empresário egresso do setor de informática e acionista da Multi (antiga Multilaser), que tem vários contratos de fornecimento de equipamentos firmados com a Seduc desde 2021. Na época, Feder era o secretário da Educação do Paraná.
Ligado a Gilberto Kassab (PSD), atual secretário de Relações Institucionais do governo paulista, Feder foi convidado por Tarcísio de Freitas (Republicanos) para exercer o mesmo cargo em São Paulo logo depois das eleições de 2022.
O secretário é dono de 28,16% das ações da Multi e, na estrutura societária da empresa, está atrás apenas de Alexandre Ostrowiecki, que tem 41,05%. No final de 2018, por conta do convite de Ratinho Júnior (PSD) para que assumisse a Secretaria da Educação do Paraná, Feder deixou a presidência do Conselho de Administração da empresa. Em 2019, ainda participou de reuniões da direção da empresa na condição de conselheiro, mesmo já exercendo o cargo de secretário no governo paranaense.
De acordo com o portal Metrópoles, a empresa também tem “sorte” no âmbito federal. A Multi acaba de vencer parte de um megaedital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Os dois lotes vendidos pela empresa preveem o fornecimento de 116 mil notebooks.
Seduc instituiu sistema de vigilância em tempo real do uso das plataformas
De acordo com o Geduc, a rede pública paulista utiliza pelo menos oito plataformas distintas para ensino de disciplinas e outras atividades. Paralelamente, diz o documento, “passou-se a produzir material digital próprio a ser usado pelos professores, consistente em ‘slides’ a serem exibidos nas aulas com o conteúdo pré-concebido pela Secretaria de Educação em conjunto com a Fundação Vanzolini, inclusive com o uso do programa de Inteligência Artificial ‘Chat GPT 4’ na fase de edição”. A estimativa da Seduc “era produzir e disponibilizar cerca de 12 mil aulas padronizadas para uso em classe”.
Além disso, “a exposição constante dos estudantes a atividades por meio de telas não é objeto de programa de atenção e cuidados quanto a possíveis consequências deletérias sobre a saúde”, em descumprimento de diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Seduc “instituiu sistema informático de controle em tempo real quanto à frequência e tempo de conexão de cada professor e estudante, em cada sala de aula de todas as escolas estaduais; estabeleceu como critério de avaliação de diretores escolares/de escola índice de acesso e uso das plataformas digitais” e “emitiu orientações oficiosas a dirigentes de ensino, supervisores escolares/de escola e professores sobre o uso e tempo de permanência nas plataformas”.
Para monitorar a utilização das plataformas, a Seduc criou um programa chamado “Escola Total”, que permite “aos gestores da política educacional constante vigilância sobre a frequência de acesso e tempo de permanência de professores e estudantes nas plataformas educacionais”. Pelo menos seis diretores(as) já foram afastados(as) de escolas ou tiveram cessada a designação para o cargo em razão da “avaliação de desempenho” com base no uso dos dispositivos.
Audiência pública e questionário online evidenciam assédio
No último dia 20 de fevereiro, o MP-SP promoveu uma audiência pública na sede da Defensoria Pública do Estado de São Paulo da qual participaram agentes políticos, representantes de entidades sindicais, pesquisadores(as), docentes universitários, diretores(as) de escola aposentados(as) e professores(as) da rede, que fizeram uma série de críticas à forma pela qual foram introduzidos os recurso tecnológicos em sala de aula.
Os depoimentos destacaram a falta de preparo, a imposição e a velocidade das transformações pelas quais as escolas foram submetidas. A audiência evidenciou “o clima de assédio que se instaurou entre professores, diretores e supervisores para tornar obrigatório o uso desse recurso”, diz o Geduc.
Depois da audiência, o MP-SP preparou um questionário online com 23 perguntas que foi distribuído com a participação dos sindicatos de todas as categorias e respondido de forma anônima por profissionais da rede estadual de ensino.
O questionário teve quase 30 mil respostas (exatamente 29.847), sendo 14 mil professores(as) efetivos(as), 12 mil temporários(as), 677 diretores(as) de escola e 262 supervisores(as) de ensino, entre outras categorias.
A esmagadora maioria (27.805 participantes) respondeu “sim” à segunda pergunta da pesquisa: “Segundo a sua experiência como profissional da educação, o uso de plataformas digitais durante as aulas é obrigatório?”.
Noutro quesito da pesquisa, 18,6 mil respondentes concordam que “livros didáticos não são mais usados e atividades culturais não são mais realizadas para que sejam cumpridas as exigências relacionadas às plataformas” (destaque do original), enquanto que a quase totalidade (29,2 mil) confirmou o encurtamento do tempo de aula em prol das plataformas digitais.

A atividade de ensinar, privativa de docentes e que exige diálogo e interação permanentes com os(as) estudantes, “foi substituída pela interação com plataformas digitais, atingindo diretamente a dinâmica das aulas”, considera o Geduc.
O grupo afirma também que a secretaria de Feder impôs uma “padronização do conteúdo das aulas e atividades (…), ainda que as realidades sociais, econômicas e culturais do estado de São Paulo sejam as mais diversas” em cada região e em cada município.
Desigualdade no acesso a equipamentos amplia exclusão digital
O Geduc demonstra ainda que a desigualdade no acesso a equipamentos e redes de Internet é outro problema grave da chamada “plataformização” do ensino. “Os próprios representantes da Secretaria da Educação relataram que não há terminais suficientes em todas as escolas estaduais, sendo comum o uso compartilhado de computadores e tabletes, em média, entre três e quatro estudantes, havendo escolas que, diante da escassez desses equipamentos, o número de estudantes por aparelho é ainda maior”, diz o documento.
Uma vez que a Seduc não fornece as condições materiais necessárias para o funcionamento de um programa de educação que centra suas ações em conteúdo digital, há “insustentável contradição que indica falha e prejuízo à melhoria da qualidade do ensino”, pois o uso compartilhado do aparelho “leva à diminuição do tempo disponível para que cada um faça a leitura do conteúdo, reflita e interaja com a plataforma segundo as suas necessidades pessoais”.
“Ademais”, reforça o MP-SP, “a medida tende a intensificar processos de exclusão educacional de estudantes marginalizados pela pobreza, considerando que as atividades relacionadas às aulas a serem feitas em casa passaram a ser virtuais, motivo pelo qual dependem do uso de dispositivo eletrônico e acesso à Internet privados, uma vez que não são disponibilizados pela Secretaria de Educação fora da escola”.
Do ponto de vista legal, o MP-SP diz que os elementos de prova colhidos demonstram que a imposição do uso de plataformas digitais de forma intensiva e padronizada nas escolas estaduais paulistas afronta princípios e normas constitucionais; viola a liberdade de cátedra, a gestão democrática e a autonomia das unidades educacionais e dos(as) profissionais da educação; descuida do dever de proteção da criança e do adolescente; e desconsidera o projeto político-pedagógico de cada unidade escolar.
A investigação do MP-SP “revela que a imposição pela Secretaria da Educação a todas as escolas e o uso obrigatório de plataformas digitais e material digital pré-produzido representa violação ao disposto nos artigos 206, inciso II, III, V e VI, 211 e 227, ambos da Constituição da República; artigos 4º, incisos IX, XII e parágrafo único, 8º, 13, 15 e 25 da LDB; artigo 4º da Lei 15.100/2025; Resolução CEB/CNE n.º 4/2025 e o Parecer CEB/CNE 2/2025; artigos 3º, 4º, 7º, 53 e 70, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente”.
O Geduc considera que essas tecnologias poderão ser utilizadas em sala de aula “desde que por iniciativa dos professores e na frequência e forma que considerarem adequadas aos seus planos de aulas”.
Estudantes já aprenderam a burlar o sistema
A plataformização vem sendo alvo frequente de críticas de estudiosos da educação. Em julho, o Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud) e a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) publicaram a Nota Técnica “Plataformização e controle do trabalho escolar na rede estadual paulista”, na qual afirmam que “não são as plataformas que estão a serviço das escolas; as escolas é que estão a serviço das plataformas”.
Em setembro, a Folha de S. Paulo noticiou que estudantes das escolas estaduais de São Paulo estão hackeando as plataformas para fazer as tarefas automaticamente em segundos. O jornal citou inclusive casos de alunos(as) que cobram de R$ 2,50 a R$ 10 para fazer as atividades de colegas.
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