Governo do Estado
Governo Tarcísio determina a interrupção das consultas relacionadas às escolas “cívico-militares” após Justiça suspender a vigência da lei que criou o programa
Em comunicado assinado pela Subsecretaria da Secretaria da Educação de São Paulo (Seduc) e dirigido às Diretorias Regionais de Ensino, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD) determinou nesta quinta-feira (8/8) a interrupção de “todas as consultas públicas relacionadas às escolas cívico-militares”.
A medida decorre da decisão judicial que suspendeu a vigência da Lei Complementar (LC) 1.398/2024, promulgada pelo governo em maio, que criou o programa. De acordo com a Seduc, cerca de 300 escolas em todo o Estado manifestaram interesse em adotar o modelo e deveriam concluir até o próximo dia 15/8 a “consulta pública” à comunidade escolar para aprovar ou não a adesão.
“Esta decisão judicial visa assegurar que todas as ações estejam em total conformidade com a legislação vigente e que os direitos de todas as partes envolvidas sejam devidamente respeitados”, diz o comunicado da Seduc.
A manifestação não esconde a confiança na rápida derrubada da liminar concedida nesta terça-feira (6/8) pelo desembargador Figueiredo Gonçalves, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP): “Informo, ainda, que o Governo do Estado recorrerá da decisão e tão logo seja suspensa essa liminar, retomaremos o processo normalmente”, afirma o comunicado.
“Contamos com a colaboração de todos para o cumprimento desta determinação. Manteremos a comunidade escolar informada sobre quaisquer atualizações ou novas diretrizes a respeito do assunto”, conclui o texto.
Na liminar, concedida em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), o desembargador Figueiredo Gonçalves suspende a vigência da lei paulista até que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida sobre outra ADI (de número 7.662) impetrada pelo PSOL poucos dias após a promulgação da lei que criou o programa das escolas “cívico-militares” de Tarcísio.
A ADI 7.662, que tramita portanto em âmbito federal, pleiteia a suspensão dos efeitos da lei por, entre outros fatores, usurpar a competência privativa da União para legislar sobre educação; desrespeitar as funções definidas da Polícia Militar; e afrontar os princípios constitucionais da valorização dos profissionais da educação escolar, da gestão democrática e do planejamento escolar. O relator do caso no STF é o ministro Gilmar Mendes.
Desembargador questiona papel de PMs como “monitores escolares”
No processo da Justiça estadual, o mesmo magistrado havia negado a liminar requerida pela Apeoesp em despacho anterior, no início de junho. Após recurso impetrado pelo sindicato, o desembargador reconsiderou a decisão.
“Entretanto – ressalvado qualquer entendimento pessoal deste relator neste instante processual – é certo que se suscitam sérias controversas [sic] acerca da constitucionalidade desse programa, o que não recomenda sua implementação desde já, antes de decisão final acerca do tema”, afirma Gonçalves, na decisão proferida nesta terça-feira.
Na avaliação do magistrado, “ao dispor sobre organização escolar, estabelecendo programa que impõe modelo pedagógico de Escola Cívico-Militar, a Lei Estadual 1.398/2024 parece legislar sobre diretrizes da educação escolar”. “Isso poderia invadir competência da União, a quem compete, privativamente, nos termos do artigo 22, inciso XXIV da Constituição Federal, legislar sobre ‘diretrizes e bases da educação nacional’. Assim, o Supremo Tribunal Federal já decidiu: ‘É inconstitucional ato normativo estadual no qual se disciplinam aspectos pertinentes à legislação sobre diretrizes e bases da educação nacional por usurpação de competência legislativa privativa da União’”, aponta, citando acórdão referente à ADI 5.091, de 2019.
O desembargador também questiona a atribuição, por parte do programa, de funções de “monitores escolares” a policiais militares, que poderão eventualmente “ser considerados profissionais da educação escolar”, enfatiza. “Nesse sentido, o artigo 206 da Constituição Federal estabelece que devam estar sujeitos a planos de carreira, ‘com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos’”, afirma.
Além disso, prossegue, atribuir essa função a agentes da segurança pública extrapolaria as atribuições das polícias militares, de acordo com o artigo 144 da Constituição.
O despacho aponta que “existem, ainda, questionamentos em face do artigo 206 da Constituição Federal, dispondo-se ali que o ensino será ministrado com base em princípios, destacando-se os incisos, II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III- pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.
O “monitoramento do ensino, se realizado por policiais militares – organizados com base na hierarquia e na disciplina militares (…) – possivelmente não seria adequado a esses princípios”, ressalta.
“Não se cuida, desde já, de se impor a interpretação acerca da inconstitucionalidade da lei estadual que se questiona nesta ADI. Contudo, inegavelmente, há controvérsias sobre o bom direito, que justifica a cautela neste instante, para que se defira a liminar reclamada, até decisão definitiva sobre o tema”, diz o desembargador.
Direção de escola censura professores(as) e funcionários(as)
Em nota, o Instituto Vladimir Herzog (IVH) comemorou a decisão da Justiça. “Como temos denunciado desde que a iniciativa se tornou pública, o programa é inconstitucional e deslocado das diretrizes educacionais do Ministério da Educação (MEC)”, diz a nota.
“Consideramos que a suspensão protege a pluralidade e a liberdade de ensino na educação”, diz o IVH, que seguirá atuando para que o programa “não ganhe concretude, como forma de defender e garantir uma formação cidadã e diversa para nossa juventude, sociedade e democracia”.
O instituto se mobilizou para impedir que a Escola Estadual Vladimir Herzog, de São Bernardo do Campo, aderisse ao programa. A direção da unidade, cujo nome homenageia o jornalista assassinado pela ditadura militar em 1975, recuou após pressão e repúdio de várias organizações e entidades, entre as quais o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
A implementação das escolas “cívico-militares” é um projeto que tem recebido grande atenção por parte do governo Tarcísio-Ramuth, na busca por consolidar cada vez mais seu alinhamento ao bolsonarismo. O projeto que deu origem à lei, por sinal, foi aprovado em sessão tumultuada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), na qual não faltaram agressões da PM a estudantes que protestavam contra a medida. A diretoria da Adusp emitiu nota a respeito.
Reportagem da Folha de S. Paulo publicada nesta quarta-feira (7/8) mostra que a Seduc realizou apresentações a diretores(as) de escolas da rede estadual para exaltar as supostas qualidades do programa, sem qualquer contraponto ou referência às fortes críticas de educadores(as) contrários aos seus pressupostos.
O deputado estadual Carlos Giannazi, a deputada federal Luciene Cavalcante e o vereador Celso Giannazi, todos do PSOL, enviaram representação ao Ministério Público de São Paulo (MP-SP) na qual afirmam que o material da Seduc é “visivelmente unilateral, nada crítico” e utiliza “dados duvidosos e um recorte unilateral para defender a proposta”.
Gianazzi também já havia acionado o MP-SP com o intuito de barrar a realização da “consulta pública” à comunidade escolar das unidades cuja direção houvesse manifestado interesse em aderir ao programa. A consulta, considera o parlamentar, “é feita de forma autoritária e sem transparência”.
Um caso que veio a público nos últimos dias mostra como diretores(as) de algumas escolas vinham direcionando a comunidade a aprovar o ingresso no programa. A direção da Escola Estadual Professora Guiomar Rocha Rinaldi, na zona oeste da capital, divulgou no último dia 2/8 um comunicado “à equipe” no qual defende “a importância de não expressar publicamente, dentro da Unidade Escolar, para os estudantes e pais/responsáveis seu ponto de vista sobre a implementação da escola cívico-militar”.
Numa medida de clara censura e intimidação, a direção afirma que, “como funcionários contratados pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, nossa responsabilidade é apenas reproduzir dentro da unidade escolar as informações fornecidas pela Seduc-SP”.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 5/8, os professores Fernando Cássio (da Faculdade de Educação da USP) e Salomão Ximenes (da Universidade Federal do ABC), sustentam que “a defesa da militarização não resiste a um debate minimamente qualificado”.
“Escolas militarizadas custam mais, excluem estudantes vulneráveis, violam deveres de proteção integral à infância, não melhoram a aprendizagem. Sem argumentos, o governo resolveu transformar a discussão pedagógica séria em um plebiscito sobre o controle dos corpos infantis e adolescentes, opondo profissionais da educação e da segurança pública sem diferenciar seus terrenos e escopos de atuação”, afirmam os docentes.
Na próxima quarta-feira (14/8), entidades estudantis vão realizar um ato público, alusivo ao Dia do(a) Estudante, contra a militarização e a privatização das escolas e pela revogação total do Novo Ensino Médio. A concentração será no Masp, na Avenida Paulista, a partir das 8h.
No dia 6/8, a professora Michele Schultz, presidenta da Adusp e vice-presidente regional do Andes-Sindicato Nacional, participou de uma roda de conversa intitulada “Escola Cívico-Militar, Escola é Quartel?”, promovida pelo Sindicato dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo (Sispesp). As demais participantes foram Rosaura Aparecida de Almeida, presidente do Sindicato dos Supervisores de Ensino do Magistério Oficial (APASE) e Kátia Rodrigues Silva, presidente do Sipesp.
No dia 14/8, às 19h, será realizada a live “Educação privatizada e escola cívico-militar”, organizada pelo Fórum Estadual da Educação do Estado de São Paulo. Os debatedores serão Teise Guaranha Garcia, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), Walkiria Mazeto, presidenta da APP-Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, e Vitor Paro, professor emérito da Faculdade de Educação (FE-USP).
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