Entidades da sociedade civil voltaram a reivindicar a necessidade de uma ação mais efetiva por parte do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) para que sejam interrompidas as obras em andamento na área do Instituto Butantan, que já levaram ao corte de grande quantidade de árvores e têm gerado fortes impactos na vizinhança. As obras, que incluem a construção de prédios e instalações para a produção de vacinas, soros e hemoderivados, estão previstas no Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PPDI), apresentado em 2022 e aprovado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) em abril último.

Entre outros pontos, o Conpresp aprovou a construção de prédios de até 48 metros de gabarito no Butantan, embora na região da chamada “área envoltória” do instituto o gabarito seja de 25 metros. Estudos em curso para o Plano de Intervenção Urbana (PIU) Arco de Pinheiros preveem gabarito máximo de 28 metros para a Zona de Ocupação Especial (ZOE) da qual o Instituto Butantan e a Cidade Universitária fazem parte.

Rodrigo Costa/AlespRodrigo Costa/Alesp
Audiência pública na Alesp reuniu parlamentares e representantes de entidades

Uma das participantes da audiência pública promovida pelo deputado estadual Carlos Giannazi e realizada na Assembleia Legislativa (Alesp) no último dia 18/11, a advogada Renata Esteves, representante do movimento Defenda São Paulo, sugeriu que o MP-SP deve ser questionado sobre o inquérito civil instaurado em setembro de 2022 que apura a derrubada de mais de setecentas árvores na área do instituto, muitas delas classificadas como imunes ao corte.

“Até agora o MP não tomou uma providência efetiva ou suficiente para deter essas intervenções ambientalmente destrutivas”, acusou. “E não é só desmatamento: tem impermeabilização e problemas com nascentes e áreas de preservação permanente [APPs].”

Aumento da produção não depende de desmatamento, afirma advogada

Um dos encaminhamentos propostos ao final da audiência foi justamente a união de esforços de parlamentares e de entidades da sociedade civil para demandar novas ações por parte do MP-SP.

Renata Esteves citou o caso da interrupção das obras de construção do túnel Sena Madureira, ocorrida a partir de ações judiciais de iniciativa de parlamentares da Alesp, da Câmara Municipal e da associação de moradores local.

Embora o pedido de liminar da ação popular tenha sido indeferido, uma ação civil pública movida pelo MP-SP obteve no dia 13/11 liminar favorável da 2ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça (TJ-SP) para interromper qualquer obra relativa à construção do túnel, incluindo movimentação de terra ou remoção de árvores na área.

No último dia 10/12, o juiz Márcio Luigi Teixeira Pinto, da 1ª Vara da Fazenda Pública do TJ-SP, concedeu liminar em outra ação civil pública movida pelo MP-SP, esta com foco nos prejuízos causados aos moradores, na qual determina a suspensão da execução da obra e de todas as licenças e autorizações concedidas para o empreendimento. O juiz determinou também, entre outras medidas, que a Prefeitura preste assessoramento aos proprietários dos imóveis prejudicados, “não só reparando como também determinando a realização de medidas mitigadoras a fim de evitar desmoronamento, alagamento e deslocamento de lama e detritos para o interior das residências”.

Em relação ao Instituto Butantan, na avaliação da advogada Renata Esteves, mesmo que os pareceres técnicos elaborados pelo Centro de Apoio à Execução (CAEx), órgão auxiliar do MP-SP, venham demonstrando a gravidade da situação, “infelizmente não estamos vendo a atitude correspondente por parte da Promotoria [do Meio Ambiente], e esperamos que as providências venham urgentemente.”

A representante do Defenda São Paulo citou um extenso rol de dispositivos legais, desde a Lei Orgânica do Município até a Constituição Federal, passando por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que estabelecem as obrigações de preservação ambiental por parte dos entes federativos.

A proibição de devastação “está detalhadamente colocada na legislação”, afirmou Renata, “todavia não se sabe por que está sendo desprezada pelos servidores públicos que deveriam zelar por ela”.

A advogada considera que “é no mínimo falacioso dizer que uma coisa está dependente da outra, ou seja, que para aumentar a produção fabril é preciso desmatar áreas do instituto”. “Não é necessário. Isso é absolutamente ilegal em todos os níveis que a legalidade pode atingir, e o que se pretende fazer do ponto de vista técnico ou da produção de vacinas é 100% possível em outros lugares que sejam próprios para isso, sem devastar um único metro quadrado nessa área verde que presta reconhecidos serviços ambientais para a cidade de São Paulo.”

“Ninguém é contra que se aumente a produção de vacinas e de produtos para a saúde pelo Instituto Butantan. Pelo contrário, ninguém desconhece a importância nacional e internacional que o instituto tem. Todavia, essa expansão fabril que o instituto pretende pode e dever ser feita em outros lugares”, defendeu.

Renata lembrou ainda que a “compensação” feita pelo instituto vem sendo feita com a substituição de árvores centenárias pelas chamadas “mudas palito”, “que não compensam nada”.

A advogada fez um apelo, “em nome da sociedade civil, para que os servidores públicos implicados nesse chamado PDDI parem imediatamente a intervenção que estão fazendo e que, obedecendo à lei, possam produzir um desenvolvimento industrial e não um desmatamento desenfreado de uma área tão valiosa para a cidade de São Paulo”.

Há 13 anos, ex-diretor já denunciava ao Informativo Adusp submissão do instituto à fundação

Um dos pontos centrais da audiência foi abordado pelo procurador José Mendes Neto, do Ministério Público de Contas (MPC), que qualificou a relação entre o Instituto Butantan e a Fundação Butantan como “rigorosamente confusa”. “É uma mistura entre o público e o privado em que não se sabe onde começa o público e onde termina o privado”, definiu.

O procurador advertiu que apresentaria sua visão jurídica particular e que não falaria em nome do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP), perante o qual o MPC atua — “inclusive porque o meu posicionamento foi vencido em várias decisões do TCE”.

Mendes traçou um histórico da fundação, criada em 1989 por um grupo de professores e pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e de outras unidades, preocupados com o fato de que o instituto estava ficando “obsoleto”: não investia mais em equipamentos, construções ou reformas, e não conseguia produzir quantidade suficiente de soro antiofídico para fazer frente à demanda do país.

“Uma das preocupações era que o dinheiro da venda de biofármacos, vacinas e soros produzidos pelo Butantan para o governo federal entrava nos cofres do governo do Estado e era destinado a despesas em todas as áreas — saúde, educação, cultura, esporte, segurança etc. — e não ficava no instituto”, descreveu o procurador.

Com a fundação, criou-se uma “triangulação”. “Os recursos federais, em vez de entrarem nos cofres do Estado, passariam pela fundação, que administraria esses recursos e compraria equipamentos, investiria em reformas etc.”, explicou Mendes.

O problema, disse o procurador, é que de lá para cá a fundação se hipertrofiou e passou a “dar as cartas” naquilo que atualmente os diretores chamam de “Complexo Butantan”.

Mendes citou inclusive entrevista concedida ao Informativo Adusp já em 2011 por Willy Beçak, ex-diretor do instituto (1983-1991) e um dos idealizadores da fundação: “O instituto ficou subordinado à fundação. Até os estatutos foram mudados. A fundação passou a estabelecer a política do instituto”, declarou Beçak. “As ideias originais do que deveria ser a fundação foram desvirtuadas.”

O procurador do MPC citou números que demonstram a hipertrofia da fundação. Em 2015, o instituto tinha 688 servidores, com 847 vagas a serem preenchidas por funcionários públicos por meio de concursos que não eram realizados. A fundação tinha então 1.298 empregados trabalhando dentro do instituto.

Já em 2018 esse número subiu para 1.531. Em 2022, com a pandemia de Covid-19 e a produção da vacina CoronaVac, houve um salto para 3.352 empregados, enquanto o instituto tinha apenas 415 servidores estatutários. Atualmente, são menos de 400, muitos em vias de aposentadoria.

“Em vez de serem realizados os concursos, a fundação passa a ser um braço da administração pública que recruta, seleciona, contrata e remunera empregados celetistas para trabalhar em funções que eram desempenhadas por servidores”, ressaltou Mendes.

As receitas obtidas pelo “Complexo Butantan” igualmente aumentaram muito. Em 2015, o faturamento bruto foi de R$ 1,259 bilhão; em 2018, chegou a R$ 1,796 bilhão. Em 2021 houve o auge da remuneração, por conta da produção das vacinas contra a Covid-19, com receita líquida de R$ 8,076 bilhões e superávit de R$ 2,578 bilhões.

Relação entre fundação e instituto é inconstitucional, diz procurador do MPC

“Pergunto: como é que um órgão público, o Instituto Butantan, que é uma UGE [Unidade Gestora Executora] da Secretaria da Saúde, que não tem personalidade jurídica, junto com a fundação, que é uma associação sem fins lucrativos, pode ter um faturamento de bilhões com a venda de vacinas, soro e biofármacos, concorrendo inclusive com enormes empresas do ramo farmacêutico? Essa relação fática é inconstitucional”, afirmou Mendes.

A participação do Estado explorando atividade econômica só pode ser feita de duas formas, de acordo com o artigo 173 da Constituição Federal, explicou: ou por uma sociedade de economia mista ou por uma empresa pública.

“Não existe na Constituição Federal a ideia de que um órgão público, misturado a uma associação privada sem fins lucrativos, tenha uma atividade tão grande e tão lucrativa. Evidentemente essa relação jurídica não encontra esteio na Constituição Federal”, continuou.

Na visão do procurador, o modelo vigente no “Complexo Butantan” se vale de uma deturpação do conceito de “fundação de apoio” previsto pela legislação. O dispositivo “permite que, para fins de pesquisa, de desenvolvimento tecnológico, de iniciativa científica, uma fundação de apoio privada seja acoplada a uma hospital público, a uma faculdade pública, e possa fazer contratações de pessoal, por exemplo”, descreveu.

No caso do Butantan, a fundação tem sido utilizada como “um braço da administração, ou uma válvula de escape para não fazer concurso e não fazer licitação sob o argumento de que a agilidade da pesquisa científica exige isso, pois tem menos burocracia”. A fundação sustenta que, sem ela, o instituto perderia oportunidades, pois “a saúde pública demanda meios mais céleres de contratação de pessoal”. Na audiência, o procurador criticou essa visão: “Quem permitiu que a fundação se imiscuísse na relação de um órgão público e criasse essa imensa dimensão foi o administrador público, foi a Secretaria da Saúde”, observou.

Mendes lembrou que a fundação já alegou que, sem a sua atuação, não teria sido possível produzir as vacinas contra a Covid-19. “É um argumento de peso”, reconheceu. Porém, perguntou, nesse panorama de 3.352 empregados da fundação, são todos pesquisadores? “Não é possível. Eles são empregados na produção e distribuição de soro, vacina e biofármacos. Eles estão na indústria. Existe pesquisa, mas o grande envolvimento da fundação é a indústria. Então não dá para justificar que seja uma fundação de apoio”, prosseguiu Mendes. “Essa é a deturpação que estamos vivenciando. Sob qualquer aspecto jurídico, existe inconstitucionalidade. Dizer que a Constituição Federal está sendo observada — de jeito nenhum”, afirmou, concluindo que “a atividade prioritária é a fábrica, e por isso eu insisto que não se trata de fundação de apoio nos modos autorizados pela legislação”.

APqC aponta desmonte dos institutos públicos e falta de transparência

A presidenta da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado (ApqC), Helena Dutra Lutgens, relacionou a situação do Butantan à de outros equipamentos de pesquisa do Estado de São Paulo.

“A exemplo do que ocorre com a Fundação Butantan, outras fundações acabam investindo mais em si próprias do que na instituição de pesquisa, levando a uma situação de um absurdo conflito de interesses. Quando falamos em pesquisa pública, defendemos que a pesquisa desenvolvida por órgãos públicos e por servidores públicos está voltada para os interesses da sociedade. Quando você tem uma pesquisa que tem investimento particular, e essas fundações são privadas, você não sabe se o pesquisador que desenvolve esse trabalho tem a mesma autonomia para fazer esse trabalho, ou se está atrelado a um interesse privado e também o resultado dessas pesquisas já não é mais de posse da sociedade”, enfatizou.

Helena Lutgens ressaltou que sucessivos governos estaduais têm promovido o esvaziamento dos institutos públicos de pesquisa com medidas como o desmonte das estruturas, o esvaziamento dos quadros, a falta de investimento e a desvalorização do pesquisador

“É muito triste dizer, mas a Fundação Butantan não é um quadro isolado dentro do serviço público de São Paulo. Embora provavelmente seja a mais poderosa e mais lucrativa das fundações, não é a única usurpadora do patrimônio público de São Paulo”, considera.

Problemas como a falta de transparência e de discussão sobre o impacto das obras foram alguns dos temas abordados quando a audiência foi aberta para a participação do público.

Rogério Bertani, pesquisador do Instituto Butantan, relatou que já pediu à fundação, por meio da Lei de Acesso à Informação, a sua relação de funcionários e salários. Sua solicitação já está em terceiro grau de recurso e ainda não foi atendida, sob a alegação de que a fundação é uma entidade privada e não está obrigada a fornecer essas informações.

A fundação também tem oferecido bolsas de produtividade a pesquisadores do instituto, mas não há informação pública sobre quem está recebendo e qual é o valor das bolsas.

Bertani lembrou que a origem das verbas administradas pela fundação é o Sistema Único de Saúde (SUS) — dinheiro público, portanto — e que é preciso haver transparência e controle desses recursos.

Hospitais e outros órgãos públicos foram tomados pelas “fundações de apoio”

Sonia Hamburger, integrante da Associação Cultural Morro do Querosene, da Rede Butantã e do Ponto de Economia Solidária, ressaltou que as obras na área do instituto têm provocado “destruição e impacto enorme na vizinhança, sem nenhuma consulta à população do entorno”.

A representante das entidades argumentou ainda que a ampliação das instalações não vai resolver as necessidades futuras de fármacos e de imunizantes, e portanto será necessário realizar ainda mais obras. “Por que ampliar aqui e agora? Por que já não adquirem uma área num setor industrial que possa ter acesso de caminhões pesados?”, questionou.

Na avaliação de Sonia Hamburger, não se pode deixar de considerar que “a fundação é muito poderosa”. “Mas, no meu entender, temos do nosso lado a legislação e a Justiça.”

Shirley Schreier, docente sênior do Instituto de Química (IQ) da USP e vizinha do Butantan, lembrou que o PDDI afirma que haveria consulta à comunidade do entorno, o que nunca aconteceu. “Ao contrário, toda a intensa atividade das obras é efetuada sem nenhuma comunicação, esclarecimento ou discussão com a comunidade. O que temos visto é o aparecimento de pássaros e animais da floresta nas ruas, por sinal dentro dos laboratórios do IQ também, porque estão destruindo o seu habitat”, relatou.

A professora lamentou ainda que o PDDI aponte como fator positivo a previsão de que, com as novas instalações, o instituto passe a receber um milhão de visitantes por ano (quase 3 mil por dia), o que vai gerar mais impactos no trânsito.

“É inaceitável que o instituto considere aspectos positivos o aumento do fluxo de veículos particulares e o processo de verticalização da cidade, que só têm trazido problemas do ponto de vista ambiental e social”, afirmou. “A região deixará de ser uma zona residencial para se transformar num bairro industrial, algo com que a população não concordaria, se fosse consultada.”

Nas suas considerações finais, o procurador José Mendes Neto disse que no passado a fundação já fez pedido expresso para deixar de ser fiscalizada pelo TCE, mas depois desistiu desse pedido. “O argumento é justamente de que se trata de uma associação privada que não foi criada por lei e não recebe recursos do Estado. É uma ginástica retórica muito bem elaborada, mas que não colou”, afirmou.

De acordo com Mendes, as imposições dos conselheiros do TCE-SP repercutem e há avanços em termos de transparência que se devem a esse trabalho de fiscalização.

O procurador afirmou que sempre há dificuldades na fiscalização das fundações ditas de apoio. “O Estado foi penetrado por essas fundações de apoio e a cada fiscalização eu me surpreendo com o tamanho delas. Há fundações com um número tão grande de empregados em hospitais ou outros órgãos públicos que, se elas saírem amanhã, esses órgãos param”, disse.

Resolver esses problemas, considera o procurador, envolve ampla discussão e a adoção de outras políticas por parte do Estado.

EXPRESSO ADUSP


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