A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), uma das mais antigas fundações privadas ditas “de apoio” à USP, foi contratada em 2023 pela Companhia Paulista de Parcerias (CPP), vinculada à Secretaria de Parcerias em Investimentos do governo estadual, para prestar “serviços técnicos especializados de consultoria” na estruturação do projeto do túnel imerso Santos-Guarujá, por trinta meses, pelo valor de R$ 15,19 milhões.

Coube à FIPE, na realidade, a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) dessa obra, que terá apenas 870 metros de extensão, mas envolverá, além do túnel em si, acessos urbanos em Santos e no Guarujá, interligação com a rodovia Piaçaguera-Guarujá (SP-55), e edifícios de acesso a pedestres e ciclistas.

A página 1.286 do RIMA indica a Secretaria de Parceria em Investimento [sic] como “empreendedor”, e a FIPE como “empresa [sic] responsável pelo estudo ambiental”. Ocorre porém que a FIPE, mantida por docentes do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA-USP), é especializada em economia, não em meio ambiente ou geologia. Apesar disso, a CPP a escolheu e contratou sem realizar a devida licitação.

Como agravante, o valor do contrato foi reajustado pela CPP, na virada do ano, em 14,3%, subindo para R$ 17,366 milhões, como revelou o jornalista Sandro Thadeu na coluna “Por dentro da política”, do portal noticioso BS9, em 19 de janeiro último. Consultada pela coluna, a CPP alegou que o contrato “precisou ser modificado por causa do acréscimo no escopo dos estudos socioambientais relacionados à obra”, e que houve necessidade “de contratação de serviços complementares solicitados pelos órgão ambientais no processo de emissão da licença prévia do empreendimento”.

No entender da advogada Madeleine Hutyra de Paula Lima, mestra em Direito Constitucional, o contrato firmado entre a CPP e a FIPE já deveria contemplar os eventuais acréscimos e serviços complementares citados pela companhia governamental. “Se houve omissão, o responsável deveria ser punido e não os cofres públicos”. Ela também questiona o valor do reajuste: “Qual é o índice previsto no contrato para atualização, 14,3%?”.

Integrado ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, o projeto do túnel imerso prevê investimento total de mais de R$ 6 bilhões. União e Estado responderão por cerca de 86% desse montante e o restante deverá vir da iniciativa privada, por meio de uma “parceria público-privada” (PPP). O presidente Lula (PT) e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) promoveram o lançamento do edital da obra no último dia 27 de fevereiro, em Santos. O leilão a ser disputado por empresas interessadas na PPP deverá ocorrer em agosto próximo.

De acordo com o EIA-RIMA, a “proposta de uma ligação seca entre as duas margens do Canal, entre Santos e o Guarujá”, existe há quase um século. “Na última década a alternativa do túnel imerso recebeu a Licença Ambiental Prévia, emitida pela Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo]. No entanto, desafios técnicos e de orçamento acabaram por adiar a continuidade do licenciamento e a execução das obras”.

Serão suprimidos 10,5 hectares de Mata Atlântica (sendo 4,4 hectares de manguezais)

Em julho de 2024, o Diário do Litoral publicou reportagem de Carlos Ratton sobre possíveis impactos negativos para a população residente no entorno da obra: “Depois de inúmeras reuniões presenciais com representantes políticos de Santos e região para garantir zero desapropriações na implantação do túnel submerso que ligará o município a Guarujá, a comunidade, representada pela Associação Comunitária do Macuco (ACOM), descobriu que o novo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aponta para um novo traçado com 66 desapropriações”.

O próprio EIA-RIMA admite, ao abordar os impactos socioambientais do projeto, que, em razão de “tantas informações veiculadas na mídia sobre o projeto, os moradores ou proprietários ou ocupantes de imóveis com atividades econômicas, principalmente nos bairros do Macuco, em Santos, e de Vicente de Carvalho, no Guarujá, têm preocupações sobre a eventual necessidade de desapropriação ou deslocamento compulsório”. Por outro lado, pondera, “há também expectativas positivas, de ofertas de emprego, valorização dos imóveis, aumento da mobilidade, melhorias urbanísticas, entre outras” (p. 1.320).

As preocupações com a “eventual necessidade de desapropriação ou deslocamento compulsório” procedem, como se pode constatar ao avançar-se na leitura do EIA-RIMA. Centenas de famílias terão de deixar as atuais moradias: “Para estimar o número de imóveis a serem desapropriados, foi quantificado o número de telhados a partir das imagens de satélite do Google Earth. Foram contabilizados 59 telhados em Santos e 717 no Guarujá, sendo 645 correspondentes a ocupações subnormais. A ADA [Área Diretamente Afetada] se sobrepõe a aproximadamente 645 moradias em ocupações subnormais”, diz a p. 1.323.

“No entanto, tendo em vista os programas de remoção e reassentamento da população, atualmente em execução pela CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, extinta pelo governo João Doria-Rodrigo Garcia, mas ainda em plena atividade] e pela MRS Logística S.A. em parceria com a Prefeitura do Guarujá, o número de moradias afetadas pelo empreendimento deverá ser inferior à estimativa de 645 unidades”. Ainda assim, depreende-se dessas informações que centenas de famílias serão removidas.

Haverá também fortes impactos sobre os recursos hídricos. O EIA-RIMA aponta potencial interferência na qualidade das águas continentais, do canal do estuário e do local de destinação final do material dragado; interferência nos recursos hídricos subterrâneos para rebaixamento do lençol freático, o que poderá ocasionar contaminação das águas subterrâneas, em decorrência de vazamentos acidentais de combustíveis dos equipamentos utilizados; poluição gerada nos canteiros de obras e frentes de trabalho etc. (p. 1.320-21).

Haverá supressão de vegetação nos diferentes biomas envolvidos: “A implantação da obra ocasionará redução da cobertura vegetal de Mata Atlântica em 10,50 hectares, sendo 4,40 hectares de manguezais (6,79% das intervenções do empreendimento como um todo), 2,26 hectares de vegetação secundária da “Floresta Alta de Restinga em estágio avançado de regeneração” (3,49%), 2,66 hectares de vegetação secundária em estágio médio de regeneração da “Floresta Alta de Restinga” (4,10%), 1,00 hectare de vegetação secundária em estágio inicial de regeneração da “Floresta Alta de Restinga” (1,55%) e 0,19 hectare de formações pioneiras com porte herbáceo-arbustivo em áreas alagáveis (0,29%)” (p. 1322).

O documento reconhece que a supressão de 10,50 hectares de vegetação para implantação do túnel “ocasionará a redução de hábitats para a fauna, com potenciais consequências, entre elas a indisponibilização de recursos utilizados pela fauna, ou seja, alimento, locais para abrigo e reprodução”. Indica a possibilidade de afugentamento e perturbação da fauna, risco de acidentes com a fauna (inclusive a aquática), e alterações nas comunidades planctônicas e bentônicas em decorrência da dragagem.

Também serão afetadas as Áreas de Preservação Permanente (APP) existentes ao longo do empreendimento, as quais, “independentemente da existência ou não de cobertura vegetal nativa ou uso do solo”, somam 16,22 hectares e correspondem a 25% das intervenções da obra. “Considerando que as APP têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a intervenção nessas áreas pode potencializar os riscos de ocorrência e a magnitude dos impactos na qualidade da água e, indiretamente, em outros componentes ambientais”, adverte o EIA-RIMA (p. 1323).

EXPRESSO ADUSP


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