Nas universidades e nas ruas, multiplicam-se eventos para relembrar sexagésimo aniversário do golpe que derrubou Jango, e repudiar crimes da Ditadura Militar
Concentração no local do antigo DOI-CODI, na rua Tutóia

A desastrosa decisão do presidente Lula de fazer calar o governo federal quanto aos crimes da Ditadura Militar, por ocasião do sexagésimo aniversário do golpe de Estado de março-abril de 1964, conseguiu retirar de cena, em plena conjuntura política de mobilização da extrema-direita e do bolsonarismo, o ator institucional mais decisivo no equacionamento das mudanças e reformas estruturais necessárias ao país para que seja superada a tutela militar sobre a sociedade civil: o poder executivo.

Por outro lado, a onda de sentimentos de frustração, indignação e justa revolta despertada pelas absurdas declarações de Lula sobre “remoer o passado” e por decisões suas igualmente inaceitáveis, como engavetar o decreto de recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e proibir a realização de atividades do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania relativas à memória e reparação das atrocidades cometidas pelo regime militar, parece ter se materializado na forma de uma extensa e rica programação de eventos, abertos ou fechados, que ocorrem em diferentes pontos do país, por iniciativa de movimentos sociais, grupos de direitos humanos, universidades e órgãos públicos.

Laura Petit e familiares na Caminhada do Silêncio: décadas de luta

Na capital paulista, no último domingo, 31 de março, realizou-se a 4a Caminhada do Silêncio, com a participação de centenas de pessoas. Inspirada na Marcha do Silêncio realizada há décadas em Montevidéu, no Uruguai, a caminhada teve início na rua Tutóia, 921, onde se localizava o famigerado DOI-CODI, ou Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, principal centro de torturas do país durante a Ditadura Militar, pertencente ao então II Exército (hoje denominado Comando Militar do Sudeste).

A caminhada terminou no Monumento dos Desaparecidos Políticos, na entrada número 10 do Parque do Ibirapuera. Além das bandeiras históricas do movimento de familiares dos mortos e desaparecidos políticos, como a punição dos torturadores e “Golpe nunca mais”, neste ano a manifestação trouxe também motes da conjuntura, como a reinstalação imediata da CEMDP e “Sem anistia para golpistas”, em referência aos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Representada por um grupo de docentes, a Adusp participou da manifestação.

Caminhada do Silêncio contou com a participação de docentes da USP

Entre os presentes, integrantes de famílias que lutam há décadas para localizar ou identificar os restos mortais de seus entes queridos, assassinados pelos aparatos repressivos das Forças Armadas ou da Polícia. Caso de Laura Petit, que perdeu três irmãos na Guerrilha do Araguaia (1968-1973), capturados e executados pelas Forças Armadas. Até agora, apenas o corpo de Maria Lúcia Petit foi identificado. Os restos mortais de Jaime e Lúcio Petit continuam desaparecidos.

Caso ainda de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado em janeiro de 1971 pelo DOI-CODI do I Exército (hoje Comando Militar do Leste) e cujo corpo jamais foi localizado. Irmã de Marcelo, a professora Vera Paiva, do Instituto de Psicologia (IP-USP), integrava a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) quando esta foi desativada pelo governo Bolsonaro. Nesta quarta-feira (3/4), a família recebeu uma boa notícia: o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) decidiu reabrir o caso.

Marcelo Rubens Paiva com a professora Michele Schultz, presidenta da Adusp

Outra manifestação importante ocorreu, no dia 1o de abril, entre o Rio de Janeiro (RJ) e Juiz de Fora (MG): foi a “Marcha Reversa” ou “Marcha pela Democracia”, uma espécie de desforra simbólica contra a Marcha realizada na noite de 31 de março pelas tropas do Exército comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, que partiram daquela cidade mineira e se dirigiram para a capital carioca, com a finalidade de derrubar o governo de João Goulart (Jango), desencadeando assim, antes do previsto, o golpe militar que vinha sendo arquitetado por chefes militares, grandes empresários e até alguns governadores, como Carlos Lacerda (Guanabara) e Magalhães Pinto (MG).

A “Marcha Reversa” reuniu cerca de duzentos manifestantes —representantes de entidades, “grupos de militantes e ativistas políticos, parlamentares, prefeituras, sindicalistas e profissionais diversos” —que partiram da Cinelândia, na capital carioca, e deslocaram-se por quase 180 quilômetros até Juiz de Fora, em ônibus, vans e carros particulares. Parte deles saiu de Vitória (ES), Petrópolis, cidades do interior de Minas e alguns de São Paulo. Houve uma parada na ponte que divide os dois estados, onde ocorreu manifestação a pé.

Em Juiz de Fora, as atividades de rememoração do golpe militar começaram pela manhã, com a abertura, no câmpus da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), do II Seminário Nacional de Jornalismo, promovido pela Faculdade de Comunicação e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). À tarde, no Museu de Arte Murilo Mendes (MAMM), no centro da cidade, a UFJF concedeu a Jango, por meio de sua família, o título in memoriam de “Doutor Honoris Causa”. Depois, um ato na Praça Antonio Carlos reuniu cerca de mil pessoas, segundo o portal noticioso G1.

Diversos seminários acadêmicos, ou organizados por entidades da sociedade civil, sobre a Ditadura Militar e temas correlatos, foram realizados em março ou estão agendados para os próximos dias. O Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (Cedhal-USP) realizará, nos dias 17 e 18 de abril, um seminário internacional online sobre os 60 anos do golpe militar. A programação desse evento prevê dez mesas redondas, com a participação de pesquisadores de diferentes países e instituições.

Nesta quarta-feira, 3, estavam previstas as seguintes atividades: na Universidade Federal Fluminense (UFF), no câmpus Gragoatá, em Niterói (RJ): “Seminário 60 anos do Golpe: História, memória e novas abordagens da Ditadura no Brasil”; na capital paulista, na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), a 2ª Semana Nacional de Jornalismo, por iniciativa da ABI, e na sede estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o seminário “60 anos do Golpe de Estado de 1964: os legados e o futuro”; em Guarulhos (SP), a oficina literária “60 anos do golpe de 1964: Sem história não há democracia”, organizada pelo câmpus da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); em Recife (PE), mesas redondas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), bem como na Assembleia Legislativa; em Brasília (DF), depoimento de Clarice Herzog na Comissão de Anistia, no auditório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados.

Nesta quinta-feira, 4 de abril, às 18 horas, no Auditório do Teatro-Laboratório da ECA, o Diretório Central dos Estudantes “Alexandre Vannucchi Leme” (DCE-Livre) promove o evento denominado “Debate Homenagem Alexandre Vannucchi vive!”, do qual devem participar a professora Michele Schultz, presidenta da Adusp; a militante política e ex-operária metalúrgica Lena Souza; e Renata Aparecida Cotrim, mestra em História e especialista em preservação documental do movimento operário.

Ainda nesta quinta 4, conforme a programação compilada pela Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia e outras informações, devem ser realizadas atividades em cidades em vários outros Estados. Por exemplo, no câmpus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, ocorrerá debate intitulado “60 anos depois (1964-2024) a reedição do golpe: semelhanças e diferenças”. No câmpus central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a atividade intitula-se “60 anos do Golpe Civil-Militar – pensar o passado é pensar o futuro”. No câmpus Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, tem lugar o evento “60 Anos do Golpe: Memórias, Lutas e Resistências”, que inclui mesas redondas, exibição de filmes e outras atividades. Em Belém, no câmpus do Guamá, um extenso seminário conjunto do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do governo estadual do Pará promove, nesta quinta 4, a apresentação de dissertações e teses com o tema “Ditaduras militares na Amazônia”.

Questões do presente também foram lembradas na Caminhada

Também nesta data, em São Luís (Maranhão), no Auditório Setorial do Centro de Ciências Sociais, ocorre o debate “60 anos da Ditadura Militar: golpes nunca mais”, convocado pela Associação de Professores da Universidade Federal do Maranhão (Apruma). Em Fortaleza, no câmpus Itaperi da Universidade Estadual do Ceará (UECE), onde os docentes estão em greve por melhores salários e condições de trabalho, acontece o debate “Ditadura Nunca Mais – lembrar para não esquecer!”, promovido pelo Sindicato de Docentes (SindUECE). Devem ocorrer atividades, ainda, em Petrópolis, Volta Redonda, Rio de Janeiro e Recife. Confira aqui a programação dos dias 4 a 8 de abril.

A Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP (PRIP) lançou, em 31 de março, um vídeo de cinco minutos de duração intitulado “60 anos de 1964 e a USP”, em que anuncia que a gestão atual da Reitoria pretende cumprir as recomendações da Comissão da Verdade da USP, apresentadas em 2018. A TV Unicamp, por sua vez, lançou o vídeo “Sequestrados políticos falam sobre torturas sofridas no DOI-CODI”, que traz relatos deEmilio Ivo Ulrich, Michel Labaki, Ana Maria Estevão, Aton Fon Filho e Antônio Carlos Fon. A edição de 18 a 31 de março do Jornal da Unicamp é inteiramente dedicada ao tema, com a manchete “Golpe, 60 (e o que não houve)”.

EXPRESSO ADUSP


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