A cerimônia de diplomação honorífica póstuma da estudante Lígia Maria Salgado Nóbrega, realizada na Faculdade de Educação (FE) no último dia 3 de abril, foi marcada por depoimentos emocionados de familiares e ex-colegas e por muitas referências à situação política contemporânea do país – em vários momentos, os(as) oradores(as) e o público se manifestaram com palavras de ordem contra a anistia que a extrema-direita quer conceder aos e às golpistas do 8 de janeiro de 2023.

“Esta é a primeira vez que nossa faculdade concede um diploma honorífico à guisa de um ato de reparação, embora nós saibamos que tudo isso seja insuficiente para reparar a morte da nossa estudante. Sucede que o fantasma da ditadura, que deveria ser um entulho do passado, passa a cercar a nossa contemporaneidade”, afirmou na abertura da cerimônia a professora Carlota Boto, diretora da FE.

A solenidade integra o projeto “Diplomação da Resistência”, iniciativa da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e da Pró-Reitoria de Graduação (PRG), que assim respondem a uma das principais recomendações do relatório final da Comissão da Verdade da USP, publicado em 2018: a de conferir diplomas de graduação honoríficos a 33 estudantes que não puderam concluir seus cursos por terem sido assassinadas(os) pela Ditadura Militar (1964-1985). O projeto foi sugerido pela vereadora paulistana Luna Zaratini (PT) e pelo coletivo estudantil Vermelhecer.

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Olimpio Nóbrega, irmão de Lígia: “uma das de aço nos anos de chumbo”

Na abertura da solenidade, Carlota Boto lembrou a trajetória de Lígia Nóbrega, com base nos relatórios da Comissão da Verdade da USP e da Comissão Nacional da Verdade.

A estudante nasceu em Natal, em 1947, filha de Naly Ruth Salgado Nóbrega e Gorgônio Nóbrega. Em São Paulo, concluiu o curso de normalista e em 1967 entrou no curso de Pedagogia da USP, sendo uma das líderes estudantis no Grêmio do curso, além de se destacar também por sua capacidade intelectual e por seu empenho em modernizar os métodos de ensino.

Em 1969, deixou a faculdade para se dedicar à luta contra a Ditadura Militar. Foi assassinada no Rio de Janeiro em 29 de março de 1972, no episódio conhecido como “Chacina de Quintino”. “Morreu em virtude da ação intencional do Estado brasileiro. Tinha 24 anos e estava grávida de dois meses”, relatou Carlota Boto.

De acordo com a versão da Ditadura, Lígia foi morta num suposto tiroteio em que os agentes policiais teriam sido recebidos à bala. Porém, investigações posteriores derrubaram essa versão.

“A CEV-Rio [Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro] realizou uma diligência ao local da Chacina e coletou o depoimento de quatro vizinhos que presenciaram a ação. A Comissão apresentou ainda o conjunto de documentos utilizados na investigação. A partir dessa documentação, comprovou-se que não foram encontrados vestígios de pólvora nas mãos das vítimas. Assim, o núcleo de perícia da Comissão Nacional da Verdade pôde constatar a impossibilidade de ter havido troca de tiros e afirmar que se tratou de uma execução dos militantes”, diz o relatório da CEV-Rio.

Além de Lígia, foram assassinados na chacina Antônio Marcos Pinto de Oliveira, estudante, 22 anos, e Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, pedagoga, 33 anos.

“Não à Ditadura, não aos fascistas e não à anistia aos golpistas”, afirma diretora da FE

A família tomou conhecimento da morte da estudante pelo noticiário da televisão. Seu corpo foi reconhecido pelo irmão Francisco, médico, em meio a uma situação de dor indescritível, em 7 de abril de 1972. Foram constatadas, além de escoriações, marcas de tiros na cabeça e nos braços. O corpo só pôde ser recuperado para que a família pudesse lhe dar um enterro digno graças ao reconhecimento feito pelo irmão e ao empenho de um tio advogado.

O pai de Lígia morreu menos de um ano depois do crime, enquanto a mãe passou por um profundo estado depressivo e a irmã caçula preferiu viver em outro país.

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Emocionado, o aluno Hiroito entregou o diploma a Maria de Lourdes, irmã de Lígia

“É preciso com todas as nossas forças lembrar esse passado não para nos reconciliarmos com ele, mas para podermos fazer frente a aventuras autoritárias que se apresentam em nosso tempo presente. Não à Ditadura, não aos fascistas e não à anistia aos golpistas. Não a qualquer tentativa de abolição do Estado de Direito”, afirmou a diretora da FE.

“Que a memória de Lígia possa acalentar os sonhos de uma juventude que clama por justiça social e por uma sociedade digna, igualitária e plural, na qual o direito à diferença possa brotar exatamente do compromisso com a igualdade. Lígia teve sua vida ceifada e foi dela retirada a utopia do futuro. Que todas as pessoas tenham o direito ao seu futuro, o futuro de uma sociedade mais justa, mais livre e mais igual.

Que tudo isso nunca mais aconteça. É por essa razão que ainda estamos aqui e, como professora que sou, concluo fazendo a chamada: Lígia Maria Salgado Nóbrega, presente!”.

Agentes da repressão invadiram a casa da família

Uma das manifestações mais fortes da cerimônia foi a do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que conhecia a estudante. “Minha fala aqui hoje não é só política, ela é afetiva”, disse, chamando ao palco Isabel e Michel, amiga e amigo que também conheciam Lígia e participavam da militância na época.

Valente relatou que conversava bastante com Lígia sobre as possibilidades de adesão às organizações políticas de resistência à ditadura. A entrada da estudante na clandestinidade se precipitou porque ela emprestou o carro a um militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).

Naquele mesmo dia, o carro “caiu” numa ação e os agentes do DOI-CODI foram para a casa da família, para onde Lígia não mais retornaria.

Um dos irmãos da estudante, Olímpio Salgado Nóbrega, contou na cerimônia que a chegada dos agentes na casa da família se assemelhou às cenas retratadas no filme Ainda estou aqui.

“A polícia entrou com tudo, carro parado na frente, ninguém podia sair de casa. A diferença é que ela não estava. Eles ficaram esperando ela chegar”, relatou. “Só que, antes de ir para casa, ela ligou, meu pai atendeu e deu a dica de que a polícia estava lá. Ele foi reprimido violentamente pelos policiais e ela nunca mais apareceu.”

Olimpio ainda encontraria a irmã em duas ocasiões. Numa delas, toda a família conseguiu se reunir na casa de um tio, e a preocupação dela era saber como todos estavam. “Ela se dizia ótima, que estava tudo bem. Mais tarde me procurou num curso onde eu dava aula para falar sobre a família, se estávamos bem, ou com algum problema”, lembrou.

No dia em que o carro foi interceptado, Lígia, Valente, Isabel e Michel se reuniram para discutir o que fazer. “A nossa proposta era sair do país”, relatou Valente. “Ela disse que ia pensar, estava bastante tensa. Coisa de um mês depois, nos reencontramos, e ela já chegou dizendo que estava envolvida com ações, já havia ido à Bahia, que a revolução iria sair no campo. E a gente tentando ‘puxar’ ela. Mas não deu mais, com o ímpeto, a voluntariedade da juventude, dessa figura espetacular, que me dá muita saudade. Era uma grande amiga de todos nós aqui, e ela virou uma mártir do povo brasileiro na luta armada”, prosseguiu o deputado.

Valente lembrou que o “corte” entre os(as) militantes que foram para a luta armada e os(as) que foram para a luta de massas se deu logo depois. “Eu fiz a opção pela luta de massas, que redundou mais tarde no Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP). Mas todos são os mesmos. Não tem discussão tática, tem a discussão de luta pela liberdade, pela construção de um Brasil livre, soberano e democrático.”

O deputado afirmou que na atualidade é preciso continuar a resistir. “A luta pela liberdade e pela democracia é bandeira nossa. Não é de quem atacou a democracia, quem teve por duas décadas a tortura como política de Estado, o assassinato, o desaparecimento, o fechamento do Congresso, a desorganização dos movimentos sociais e a prisão dos seus líderes. Isso tudo não pode voltar”, defendeu.

“Esse movimento, o bolsonarismo, ainda não voltou para o bueiro mesmo depois de derrotado. Eles estão aí. Nós também estamos aqui e sempre estaremos aqui. Esse embate entre a narrativa e a verdade continua”, prosseguiu.

Valente afirmou ainda que o projeto de anistia aos e às golpistas do 8 de Janeiro “não vingará”. “Nós estivemos por um triz, mas agora eles não têm mais condições de dar um golpe de Estado. Nós devemos aproveitar este momento para dizer que a liberdade no Brasil é um valor maior. Nós temos muito pela frente para construir um Brasil livre, soberano, democrático e igualitário”, concluiu.

“Luta é para aprimorar nossa democracia”, diz irmã de Lígia

Olimpio Nóbrega revelou que falar sobre a sua irmã “é ao mesmo tempo triste e alegre porque me faz lembrar uma menina extremamente doce, mas que infelizmente foi tirada do nosso convívio de uma maneira cruel pela Ditadura Militar”. “Eu penso no samba-enredo da Mangueira de 2019 [‘História pra ninar gente grande’] porque ela foi ‘uma das de aço nos anos de chumbo’, e isso é um orgulho enorme que eu tenho”, disse.

Olimpio relatou que Lígia sempre se preocupou com a educação e, ao concluir o curso Normal, participou de iniciativas de alfabetização com crianças carentes e começou a trabalhar num cartório de Registro de Imóveis para ajudar no sustento da família.

A partir da entrada na USP, militou no movimento estudantil, de forma generosa e ao mesmo tempo firme. “Naquilo em que ela acreditava, ela iria lutar até o fim. Todo mundo sabia disso”, ressaltou.

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Cerimônia lotou auditório da FE

Olimpio citou ainda outro samba, “Delegado Chico Palha”, gravado em 1938, que fala de um policial carioca que reprimia violentamente rodas de samba e terreiros das religiões afro-brasileiras. “Esse samba mostra que na verdade, mesmo na democracia, os mais pobres sofrem violência. A tortura e os assassinatos acontecem sempre. A ditadura piora violentamente, aí atinge a classe média, atinge todo mundo, mas infelizmente isso vem acontecendo há muito tempo. A luta não é só contra a ditadura, é para aprimorar a nossa democracia, isso é fundamental. Eu tenho certeza de que a minha irmã gostaria disso”, afirmou.

A gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1993) criou a Praça Comunitária Lígia Maria Salgado Nóbrega, no Jardim Miriam, zona sul de São Paulo, “homenagem extremamente delicada porque ela sempre defendeu o povo e quis que os mais simples tivessem oportunidades que nem sempre têm”, ressaltou Olimpio.

Movimento estudantil continua a sofrer perseguição e repressão

Bastante emocionada, a estudante Nicoli Tedeschi, diretora do Centro Acadêmico Professor Paulo Freire (CAPPF), lembrou que o movimento estudantil brasileiro foi vanguarda na resistência à Ditadura Militar, “enfrentando perseguições, prisões, tortura e morte”. “Atualmente, mesmo após uma suposta redemocratização, o movimento estudantil continua sofrendo pressão policial em suas manifestações”, ressaltou.

“Aqui em São Paulo, com a polícia de Tarcísio de Freitas e a prefeitura de Ricardo Nunes, enfrentamos ameaças constantes de privatizações, militarização de escolas, com nossos protestos, manifestações, paralisações e greves sendo atacadas pela Polícia Militar. Pra quem acabou a Ditadura Militar?”, questionou.

Mariana Dias, representante da Direção do DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”, lembrou da importância de reconhecer o papel das gerações de estudantes que lutaram pela democracia e afirmou que todas as diplomações que vêm ocorrendo na USP “cumprem esse papel tão importante da luta por memória”.

Também representando o DCE-Livre, Juliana Lopes Chaves Fiorese defendeu que não deve haver apenas responsabilização individual pelos crimes cometidos na Ditadura, mas também das instituições que participaram da repressão, como as Forças Armadas e as polícias militares.

“A pressão popular e a mobilização são sim capazes de arrancar vitórias para o nosso lado”, afirmou, citando episódios Jair Bolsonaro ter sido pronunciado réu nos processos referentes ao 8 de Janeiro no Supremo Tribunal Federal (STF) e a própria diplomação de Lígia.

“A memória não é suficiente. A gente quer justiça, a gente quer reparação. A memória é sim um primeiro passo, e a gente vai estar nas ruas dizendo que queremos e precisamos de mais”, concluiu.

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Deputado Ivan Valente, amigo de Lígia, foi um dos oradores da cerimônia

A pró-reitora de Inclusão e Pertencimento, Ana Lúcia Duarte Lanna, salientou que a diplomação honorífica “não é só um ato de relembrar, mas é um ato que aponta para o futuro, que nos oferece diretrizes e que instaura novos desafios”.

Aluisio Cotrim Segurado, pró-reitor de Graduação, registrou que “a violência que resultou de forma extrema na perda prematura de sua vida e de outros mais de 30 jovens estudantes da USP em decorrência de suas convicções políticas e sua militância no movimento estudantil da nossa universidade é certamente inaceitável”.

A vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda disse em sua manifestação que “o pais ainda não superou isso que parecia um acontecimento do passado” e que há muitos setores que continuam defendendo a barbárie, como a praticada na Ditadura Militar.

A resposta a isso, considera, “é reafirmarmos o nosso repúdio ao acontecido, é afirmarmos que não aceitaremos, dentro das nossas forças, os perigos que nos rondam, e eles não desapareceram, sabemos muito bem disso.”

A memória e o direito de estar vivo

O vice-diretor da FE, Valdir Heitor Barzotto, fez a leitura do termo de formatura, e o diploma foi entregue a Maria de Lourdes Salgado Nóbrega, irmã de Lígia, por Hiroito Salomão da Silva, aluno da FE e diretor do CAPPF, que não conteve as lágrimas.

Ao encerrar a cerimônia, Carlota Boto abriu a palavra ao público. O ex-deputado federal José Genoino, amigo da família, se manifestou para ressaltar que homenageava Lígia e também “todos aqueles e aquelas que praticaram o maior ato de sua vida, que é dar a vida por causas, por sonhos”. “A memória ilumina o futuro para que no presente não fiquemos perdidos”, afirmou.

Francisca Paludetto Silva Sarto, aluna da FE e diretora do CAPPF, disse que Lígia “é uma grande inspiração para nós, do movimento estudantil”. “Ela não lutava por uma sociedade como a gente vive hoje, uma sociedade que oprime o povo pobre, que coloca o povo da periferia para ser assassinado novamente pela mesma Polícia Militar. A Lígia lutava por uma sociedade muito melhor do que esta, por uma sociedade socialista, porque é nisso que ela acreditava, que a educação fosse um direito garantido para cada pessoa, e não uma mercadoria como querem fazer hoje, como o nosso governador tanto defende à base de cassetete, bomba de gás e spray de pimenta”, ressaltou.

Hiroito, o aluno que entregou o diploma à irmã de Lígia, disse que sempre se emociona ao lembrar que o perfil do corpo discente da FE na atualidade é bastante diferente daquele do período em que Lígia estudou na escola, resultado da ação das gerações anteriores. “Aqui é um espaço de luta, da gente estudar, se educar, trabalhar. Eu mesmo já cuidei de 28 crianças hoje e estou aqui porque acredito num futuro possível, acredito em esperançar, como o nosso querido patrono Paulo Freire”, disse. “Quando falamos da Lígia, falamos também do direito de estar aqui, do direito de estarmos vivos, de poder permanecer nessa realidade que tem sido tão cruel para com os estudantes.”

EXPRESSO ADUSP


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