A Faculdade de Medicina (FMUSP) e a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) estão divulgando convites para “Sessão Solene de Diplomação Honorífica de Antonio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher e homenagem aos demais alunos da FMUSP perseguidos pela ditadura (1964-1985)”, a realizar-se no dia 28 de agosto próximo, às 19h30, na Sala da Congregação daquela unidade (Avenida Dr. Arnaldo, 455, Prédio Principal, 3° andar).

Militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), ambos foram assassinados pela Ditadura Militar em 1972, quando tinham 23 anos: Reicher em 20 de janeiro, Cabral em 12 de abril. Cabral foi presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) e Reicher diretor. Os dois tiveram forte envolvimento com o Grupo de Teatro da Medicina (GTM), dirigido por Reicher de 1969 até 1971.

O evento do dia 28 integra a programação da “Diplomação da Resistência”. Segundo vídeo produzido pela PRIP, “serão homenageados outros estudantes que, embora tenham sobrevivido, também sofreram violências praticadas por agentes do Estado”. No entanto, nos convites divulgados pela pró-reitoria e pela FMUSP, não há qualquer menção ao nome do médico e guerrilheiro Boanerges de Souza Massa, que obteve seu diploma pela faculdade em 1965, foi preso por agentes da Ditadura em Goiás em 1971 ou 1972, e oficialmente declarado como desaparecido pela Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) em 1997.

A exemplo do que está previsto para ocorrer na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), que atribuirá diplomas simbólicos a 15 ex-estudantes no dia 26 de agosto, mas deixará de homenagear Heleny Ferreira Telles Guariba, guerrilheira assassinada pelo Exército em 1971, Boanerges Massa provavelmente foi excluído pela PRIP da homenagem a ser realizada pela FMUSP em 28 de agosto pelo fato de que concluiu o curso de Medicina e foi diplomado. Heleny cursou Filosofia na FFLCH e recebeu seu diploma, no mesmo ano de 1965. Pela ótica da PRIP, eles não se “encaixam” no projeto.

A não ser que seja revertida de última hora, a deliberada exclusão de Heleny e Massa das homenagens preparadas na FFLCH e na FMUSP demonstra limites no formato adotado pela Reitoria. A “Diplomação da Resistência” ignora as e os militantes de grupos de esquerda que conseguiram concluir seus cursos e obter os respectivos diplomas antes de cair em poder dos aparatos militares de tortura e extermínio. Por envolver diplomas honoríficos de graduação, ignora, por definição, outros membros da USP assassinados pelo Terrorismo de Estado, entre os quais seis docentes. Espera-se que ações e projetos de memória, justiça e reparação considerem por completo os registros do período ditatorial, inclusive a retirada de qualquer homenagem rendida a agentes e apoiadores da Ditadura Militar.

“Corpos ultrajados e vilipendiados”, lembra Comissão da Verdade da USP

A documentação existente sobre os casos de Cabral, Reicher e Massa revela que os três foram submetidos a fortes torturas e depois executados. “Dos três jovens, dois estudantes e um médico, o que se sabe é a paixão e a convicção que os movia na época”, anotou o Relatório Final da Comissão da Verdade da USP (CV-USP). “Seus corpos foram ultrajados, vilipendiados, e suas famílias, privadas da intimidade da dor. Em que os três poderiam ter contribuído, caso não tivessem sido mortos, jamais será permitido saber”.

Cabral foi preso em 11 de abril de 1972, no Rio de Janeiro, e sua morte divulgada pelos jornais no dia 18. Seu corpo foi encaminhado ao Instituto Médico-Legal (IML-RJ) sem identificação, sob a guia nº 5 do Departamento de Ordem Política e Social. “Os pais e outros familiares o receberam em caixão lacrado, trazido por agentes policiais que tinham ordens de acompanhar o enterro de Antônio Carlos até o final”.

Relatórios dos ministérios da Marinha e da Aeronáutica, encaminhados ao ministro da Justiça em 1993, registram que Cabral teria morrido em 12 de abril de 1972, às 5h25, na rua Zizi, 115, bairro de Lins de Vasconcelos, “após intenso tiroteio, ao resistir à ordem de prisão”. Porém, o corpo de Cabral tinha escoriações e apresentava evidentes marcas de tortura, visíveis nas duas únicas fotografias encontradas nos arquivos do IML-RJ.

“A certidão de óbito registra hemorragia interna causada por ferimentos no tórax e no abdômen, com lesões no pulmão direito, coração e fígado. Nem todas as marcas de tortura e escoriações foram descritas. O laudo descreve dois tiros no pescoço, três na altura do coração e muitas escoriações, sem definir sua origem”, diz a CV-USP. Foi nessas condições que Maria Elizabeth Nanni encontrou o corpo do irmão para reconhecimento, conforme consta do procedimento administrativo 107/1996 da CEMDP, recolhido ao Arquivo Nacional.

Cabral presidiu o CAOC em 1970 e, segundo depoimentos de amigos, era uma liderança muito querida entre colegas. Participou do GTM, fundado anos antes pelo professor Walter Colli, com a montagem de “Noite de Guerra no Museu do Prado”, peça escrita por Rafael Alberti.

Notícia da morte de Reicher reproduziu versão oficial da Ditadura

Reicher entrou jovem na Faculdade de Medicina da USP. Cursava o quinto ano quando morreu, aos 23 anos. Seu corpo entrou no IML-SP com nome falso. “A notícia da morte, publicada dois dias depois, reproduziu a versão oficial dos órgãos de segurança. Foram três tiros na cabeça, três no tronco e um em cada braço e perna. O legista não pôde estabelecer a dinâmica dos tiros por falta de elementos: o edema e a equimose na região orbital direita e áreas circunvizinhas não se coadunavam “com o quadro comumente verificado em tiroteios, sendo possível que esta lesão contusa tenha sido produzida após as lesões anteriormente relacionadas, em circunstâncias que não estão esclarecidas, uma vez que a vítima provavelmente estava dominada […]”, relata a CV-USP.

“O legista Isaac Abramovitch, que conhecia Reicher desde menino, assinou o laudo e o óbito com nome falso. Poucos dias depois, avisou aos pais, permitindo que o corpo fosse resgatado e sepultado”, em cemitério pertencente à comunidade judaica, informa a comissão (Abramovitch é acusado de assinar laudos falsos de diversos militantes de esquerda assassinados pela Ditadura Militar, entre os quais Alexandre Vannucchi Leme, Antônio Benetazzo e Luiz Eduardo Merlino).

“Em 1969, Gelson Reicher, diretor do Caoc e militante da ALN, encarregou-se da direção do GTM. A encenação dirigida por ele naquele ano era uma composição de vários esquetes e poemas que tratavam da realidade política mais ampla, mas também do universo dos ingressantes no curso de Medicina”, conta o jornalista Eduardo Campos Lima na reportagem “Na USP, teatro foi palco de resistência à Ditadura Militar”, publicada na Revista Adusp 55, de outubro de 2013. “Reicher afastou-se do GTM em 1971, porque teve que passar à clandestinidade — e acabou assassinado em 1972”.

Alguns anos mais velho que Cabral e Reicher, Massa formou-se em Medicina na USP em 1965, e em Direito, em 1966, segundo a CV-USP. Juntou-se à ALN como integrante da rede de apoio. Entre os socorros que prestou, operou o guerrilheiro Takao Amano, baleado na coxa após um assalto a banco. Passou a viver na clandestinidade por ter socorrido Francisco Gomes da Silva, militante da ALN baleado durante uma ação realizada pela organização em São Paulo (e irmão de Virgílio Gomes da Silva, que foi um dos comandantes do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbright em 1968).

Clandestino, Massa viajou para Cuba, onde realizou treinamento de guerrilha e se organizou no chamado “Grupo dos 28”, ou “Grupo da Ilha”, que deu origem ao Movimento de Libertação Popular (Molipo). De volta ao Brasil, dedicou-se ao projeto do Molipo de implantar uma guerrilha rural em Goiás, na região de Araguaína, que atualmente pertence ao estado do Tocantins. Ele teria sido preso em dezembro de 1971, em Pindorama, então estado de Goiás, em circunstâncias nunca esclarecidas.

Seu nome não constou na primeira lista oficial de mortos e desaparecidos políticos, mas, em 1996, foram anexados documentos originados no Centro de Informações do Exército, nos quais consta que esteve preso em 21 de junho de 1972. Desde então foi reconhecido como preso e morto sob a responsabilidade do Estado, nos termos do decreto 2.318/1997.

Massa é citado pelo médico Drauzio Varella no livro O Exercício da Incerteza – Memórias (Companhia das Letras, 2022). Durante o curso na FMUSP, ambos se tornaram amigos. No livro Drauzio conta algumas histórias sobre o colega, reproduzidas pelo jornalista Euler França Belém em matéria publicada no site “Opção”.

EXPRESSO ADUSP


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