Opinião
Acampamento Terra Livre 2023: ignorado, apesar da importância
“Marco Temporal” é uma das principais ameaças aos povos indígenas e, se aprovado, deverá agravar a crise socioambiental. Neste artigo, Marcos Bernardino de Carvalho, professor da EACH e atualmente pesquisador no IEA-USP, relata o que presenciou no ATL 2023, que reuniu na capital federal, por cinco dias, 6 mil indígenas de 180 povos originários
Motivado pela forte impressão em mim causada por breve participação no Acampamento Terra Livre – ATL – deste ano, resolvi compartilhar publicamente este igualmente breve, visual e descritivo relato.
Como costuma acontecer há já quase vinte anos, nos meses de abril, teve lugar em Brasília (Distrito Federal) entre os dias 24 e 28/4 de 2023, no estacionamento e terreno ao lado do Teatro Nacional, o 19º ATL.
O tema geral do ATL 2023 fala por si e já indica a centralidade dos debates que lá ocorreram: “O futuro indígena é hoje/Sem demarcação não há democracia”. O acampamento deste ano reuniu “cerca de 6 mil indígenas de mais de 180 povos”, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), organizadora do evento.
Participei dos dois últimos dias do ATL, para conhecer o acampamento e acompanhar as discussões sobre “Marco Temporal e suas implicações no direito dos povos indígenas” e “Marcha pela Terra: Movimentos Sociais em defesa da democracia”, programadas para 27/4. No último dia de atividades, 28/4, aconteceria a plenária de encerramento com a leitura da Carta Final do ATL 2023.
Manifestação de servidores(as) da Funai, insatisfeitos com as condições de trabalho
No debate sobre o “Marco Temporal”, as/os representantes indígenas argumentaram e demonstraram que a eventual aprovação dessa proposta é uma das principais ameaças aos seus povos, consequentemente, um possível fator de agravamento da crise socioambiental. A decretação da emergência climática por parte das e dos participantes do ATL 2023estabeleceu essa conexão, demonstrando a importância da demarcação das Terras Indígenas, da luta contra o Marco Temporal e do equacionamento da questão climática.
Em função disso, a plenária da qual participei convocou nova mobilização dos indígenas, de modo a estarem em Brasília entre os dias 5 e 9/6, pois a retomada do julgamento está prevista para o dia 7 de junho, no Supremo Tribunal Federal (STF).
A “Marcha da Terra”, prevista para acontecer após o debate sobre o Marco Temporal, foi impossibilitada pelas fortes chuvas que caíram sobre o acampamento na tarde de quinta-feira, que ensejou, inclusive, imediata mobilização para recompor barracas e minimizar as perdas dos acampados.
Um importante debate sobre povos isolados, seguido de manifestações de representantes dos movimentos sociais presentes no ATL, acerca da importância da solidariedade aos povos indígenas, além de reconhecer as suas causas e apoiar suas reivindicações, teve lugar no restante do dia na tenda principal de reuniões, mesmo ameaçada de vergar por causa do temporal.
Homologação de seis Terras Indígenas ocorreu em 28/4 no próprio ATL
Na sexta feira, 28/4, dia previsto para encerramento do ATL, a presença de comitiva presidencial, incluindo o próprio presidente da República, ministras de estado (dos povos indígenas e do meio ambiente), além da presidenta da Funai, entre outras autoridades, transformou o que estava programado (plenária de encerramento com leitura da Carta do ATL 2023) em evento de homologação de demarcação de terras indígenas e de debate e cobrança de atendimento de diversas reivindicações, principalmente daqueles representantes de povos cujas demarcações de território ainda não foram homologadas, e de servidores e servidoras da Funai que, além disso, manifestaram estar descontentes com a situação de suas carreiras e com as condições da fundação.
O presidente da República assinou no próprio plenário ato de homologação de seis Terras Indígenas (TIs): Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Arara do Rio Amônia (AC), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS), Avá-Canoeiro (GO) e Uneiuxi (AM). Concluiu, dessa forma, processos de demarcação que se arrastavam há anos e estavam parados no executivo, já com portarias declaratórias que permitiriam a homologação.
Embora haja processos demarcatórios envolvendo nada menos que quatorze TIs, a homologação de seis delas durante o próprio ATL 2023 já significa uma mudança grande e uma predisposição radicalmente diferente do que se passou nos últimos seis anos de governos federais.
As atitudes tomadas pelo governo Lula atendem assim, mesmo que parcialmente, as reivindicações de um movimento que não cessou nem durante os problemáticos anos recentes e prosseguirá, como o plenário fez a comitiva presidencial saber, ao interromper por diversas vezes o discurso de Lula, exigindo mais demarcação, contratação de pessoal para a Funai, mais recursos e plano de carreira na Fundação.
Em consonância com a emergência climática decretada e dando consequência ao próprio lema do evento (“Sem demarcação não há democracia”), extraíram de Lula compromissos nesse sentido. Respondendo às manifestações do plenário, ele afirmou em seu breve discurso: “A gente vai ter que trabalhar muito para fazer a demarcação do maior número possível de Terras Indígenas. E não apenas porque é um direito de vocês, mas porque se a gente quer chegar em 2030 com desmatamento zero na Amazônia, a gente vai precisar de vocês”.
“Não existe solução para a crise climática sem Terras e Povos Indígenas”
Os povos indígenas e suas representações têm consciência disso. Ou seja: não só da gravidade da situação, mas do papel que podem desempenhar para enfrentar e solucionar essa crise. Na “Carta do Acampamento Terra Livre ao presidente Lula”, declaram: “As principais lideranças globais debatem saídas para enfrentar as mudanças climáticas e nós, povos indígenas, afirmamos: ‘Não existe solução para a crise climática sem Terras e Povos Indígenas’. A nossa principal força está na união da nossa diversidade de povos e é justamente essa diversidade que garante a preservação dos nossos biomas”.
“Nós povos indígenas não somos responsáveis pela crise climática, mas nos colocamos à frente para defender o planeta e convocamos nossos aliados para partilhar a luta. Por esse motivo, decidimos decretar emergência climática durante o 19º Acampamento Terra Livre (ATL), pois somos nós, povos e Terras Indígenas, a reserva para a vida no planeta.”
Nesse sentido, atribuem ao julgamento previsto para ser retomado em 7 de junho próximo o correto peso de responsabilidade socioambiental, e na escala planetária, que recaiu sobre o STF, as instituições brasileiras e seus gestores, pois se, como afirmam em outro trecho da carta, “o julgamento do Marco Temporal vai definir o futuro dos povos indígenas do Brasil”, o resultado desse julgamento definirá igualmente o destino da crise socioambiental que nos assola.
Por fim, uma exortação ao compromisso político, cobrando da autoridade máxima do país, tal qual os povos que reivindicam a importância de suas ancestralidades, que lembre de suas origens e firme um acordo recíproco de futuro: “certos de sua ética e caráter forjados na esteira da linha de produção metalúrgica; certos da sua capacidade de governar este país para todos os povos que o ergueram sobre o derramamento de sangue e suor, firmamos aqui este compromisso mútuo de retomar a direção da nossa democracia e demarcar a trilha que nos levará à pátria dos trabalhadores e trabalhadoras, à nação pluriétnica do Bem Viver”.
Fiquei com a sensação de estar participando de um grande evento, o ATL, que, considerando as chamadas crise ambiental e “emergência climática”, emitiu alertas e planejou mobilizações (das quais deveríamos continuar a participar) que vão do próprio acampamento de final de abril aos dias iniciais de junho, com o julgamento do Marco Temporal. Sem falar na profundidade dos debates desenvolvidos, tomou medidas e firmou compromissos de superlativa importância.
Mas nem de longe isso traduziu-se em repercussão ou atenção minimamente semelhantes a outros eventos e iniciativas que, apesar de não serem tão eficazes do ponto de vista socioambiental, usufruem, por serem comercialmente atrativos, de enorme espaço, inversamente proporcional às suas importâncias socioambientais, nas redes e nas mídias. Como algumas dentre as diversas COPs; o mercado de compensações de carbono; as ESGs da vida e demais eventos que, na verdade, ou são promotores de greenwashing, ou apenas dinamizam o mundo dos “negócios e oportunidades verdes”.
Todo mundo em Brasília no dia 7 de junho de 2023!
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