Durante décadas, as fundações privadas ditas “de apoio” a universidades públicas expandiram suas atividades, não raro ao arrepio das leis, contando com o beneplácito das autoridades universitárias e de governantes de todos os escalões. A ascensão dessas entidades coincidiu com o advento do neoliberalismo e portanto com os sucessivos processos de privatização dele decorrentes.

As duas vertentes que, historicamente, enriqueceram as fundações privadas “de apoio” foram: 1) a celebração de contratos sem licitação com o setor público federal e estadual para oferecimento de serviços de consultoria e projetos e 2) a criação de um mercado de cursos pagos (MBA e outros) em condições privilegiadas. Ambas viabilizadas pela apropriação indevida de bens materiais e simbólicos pertencentes às universidades públicas — bem como apropriação do trabalho e dos saberes de docentes e de funcionários técnicos e administrativos dessas instituições de ensino.

Supostamente “sem fins lucrativos”, essas entidades privadas são verdadeiras empresas, nas quais formalmente não há lucro, mas superávits. Geralmente dirigidas por docentes que exercem ou exerceram cargos diretivos nas universidades, elas dispõem de grande influência nas unidades de ensino das chamadas “áreas profissionais” e, ainda, nos principais colegiados, como as congregações e os conselhos universitários.

Tudo indica que, agora, as fundações privadas “de apoio” estão interessadas em um novo filão: as oportunidades abertas pelo chamado Novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação — lei 13.243/2016, cuja regulamentação, no plano estadual pelo Decreto 62.817/2017 e no plano federal pelo Decreto 9.283/2018, lhes reservou enorme espaço de ação.

“A captação, a gestão e a aplicação das receitas próprias das ICTESPs [instituições científicas, tecnológicas e de inovação do Estado de São Paulo] poderão ser delegadas a fundação de apoio, quando assim previsto em instrumento jurídico adequado, devendo ser aplicadas exclusivamente em objetivos institucionais de pesquisa, desenvolvimento e inovação, incluindo a carteira de projetos institucionais e a gestão da política de inovação”, define o artigo 11 do decreto estadual.

“No cumprimento das finalidades referidas neste decreto, poderão as fundações de apoio, por meio de instrumento jurídico próprio, utilizar-se de bens e serviços das ICTESPs apoiadas, pelo prazo necessário à elaboração e execução do projeto”, completa o artigo 12. Antes de entrar nesse tema, porém, vale a pena abordar rapidamente a trajetória das fundações privadas ditas “de apoio”.

Na sua exitosa escalada, elas se depararam com poucas resistências de natureza institucional, exercidas por órgãos fiscalizadores como os tribunais de contas (especialmente o Tribunal de Contas da União, TCU) e por alguns setores do Ministério Público Federal (MPF). Aos poucos, o lobby das fundações foi derrubando obstáculos legais que deveriam ser intransponíveis.

Em favor delas, o artigo 24 da Lei das Licitações (lei 8.666/1993) passou a ser interpretado de modo a facultar automaticamente a dispensa de licitação, garantindo-lhes assim um mercado cativo nos governos estaduais e no governo federal, que lhes permitiu auferir, em poucos anos, centenas de milhões de reais por meio da venda de projetos e serviços ao poder público.

Também em favor delas, a USP transferiu a aprovação e controle dos cursos pagos, antes a cargo da Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG), para a alçada da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU), aceitando a alegação das próprias fundações de que tais cursos configuram “extensão” e não ensino.

Mais recentemente, em abril de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela legalidade da oferta de cursos pagos nas universidades públicas, “interpretando” o cristalino artigo 206, inciso IV da Constituição Federal (“O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […] IV –  gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”) do modo que interessava a essas entidades privadas.

Outra vitória das fundações privadas “de apoio”, esta mais recente, se deu em dezembro de 2018, quando a Reitoria da USP decidiu realizar uma reforma-relâmpago do Estatuto do Docente, claramente destinada a atender a pressões e interesses dessas entidades. O Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), que já fora “flexibilizado” na gestão Goldemberg, em 1988 (com a liberação de oito horas da jornada semanal para atividades privadas), passou a comportar novas exceções, de modo a facilitar a venda de serviços de docentes a terceiros.

E por que é preciso citar a USP novamente? Pela simples razão de que a USP é uma das universidades públicas brasileiras mais afetadas pela existência de fundações privadas autproclamadas “de apoio”. São trinta e uma entidades desse gênero que se relacionam com essa universidade. Isso mesmo: 31 fundações, que cresceram à sombra da USP, apoiando-se nela (ao invés de apoiá-la), a maioria das quais utilizando-se a custo zero de instalações, docentes, funcionários e do prestígio e da logomarca da universidade. Quão longe foi essa situação é bem ilustrado pelo fato de que duas dessas fundações são hoje proprietárias de escolas privadas: Faculdade FIA e Faculdade Fipecafi.

A USP detém um nada louvável pioneirismo na matéria, pois as primeiras fundações privadas instituídas por docentes da universidade (Vanzolini, FDTE e FIPE) remontam às décadas de 1960 e 1970. Mas hoje o modelo disseminou-se pelo país. Entidades desse tipo foram criadas e atuam em praticamente todas as universidades federais, muitas vezes tornando-se protagonistas de escândalos, como a Finatec (UnB). Algumas adquirem grande poder econômico, como a Coppetec (UFRJ), cuja receita em 2017 alcançou R$ 155 milhões, com superávit de R$ 48,6 milhões.

Embora se baseie em falácias (“apoio [financeiro] à universidade”, “agilidade que a universidade não dispõe”), o discurso das fundações privadas encontrou amplo respaldo na mídia comercial, bem como na maior parte das estruturas dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Curiosamente, é nos tribunais de contas que elas continuam a encontrar algumas dificuldades, certamente graças ao compromisso do corpo técnico dessas instituições com o patrimônio público.

Exemplo disso foi a sessão plenária do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) realizada em 13/2/19, que tinha como um dos pontos de pauta o Recurso Ordinário TC 1469/026/13 da USP e do ex-reitor J.G. Rodas contra decisão que julgou irregulares as contas de 2013 da universidade “e de algumas unidades gestoras daquela autarquia”. O recurso foi relatado pelo conselheiro Renato Martins Costa (que, no ano anterior, presidira o tribunal), que, ao fundamentar seu voto, apoiando-se em relatórios de outros conselheiros, fez duras críticas ao comportamento da administração da universidade, inclusive ao que chamou de “relacionamento sem fronteiras jurídico-administrativas, e nada transparente, da Universidade de São Paulo com as fundações de apoio” (destaques nossos).

De um voto, em primeira instância, do conselheiro Sidney Beraldo, ex-deputado estadual (PSDB) e também ex-presidente do TCE, o relator leu trecho segundo o qual no ano de 2013 “unidades de ensino celebraram convênios com essas instituições para contratar docentes da própria USP, que por sua vez se valiam das instalações universitárias para cumprir as obrigações avençadas”, de tal sorte que “o estreito liame com as entidades de apoio não favoreceu o equilíbrio das contas da universidade e pode ter facultado desvio das finalidades precípuas e potencial vazamento de recursos financeiros” (destaques nossos; confira aqui a sessão do TCE de 13/2/2019).

A leitura de reprimendas tão severas (e tão recentes) a essas entidades privadas — que controlam, literalmente, várias das unidades de ensino da USP, bem como um terço dos assentos do Conselho Universitário — oferece um interessante contraste com o evento denominado “Diálogo TCE-Cruesp”, realizado em março de 2018 com a finalidade declarada de harmonizar os entendimentos do tribunal, das três universidades estaduais paulistas e das fundações privadas de apoio que com elas se relacionam acerca da regulamentação, no Estado de São Paulo, do Novo Marco Legal de CT&I. (O Cruesp é o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas.)

Portanto, tendo em vista o citado Decreto Estadual 62.817, de 4 de setembro de 2017, que regulamenta o Marco Legal de CT&I no plano estadual, o “Diálogo TCE-Cruesp” teve como objetivo declarado “aproximar o Tribunal de Contas das universidades, bem como suscitar a troca de informações técnicas a respeito dessa nova legislação”. Embora realizado um ano atrás, o evento passou desapercebido à época. Nas matérias a seguir, vamos reproduzir e examinar a parte substantiva dos debates nele travados, não sem antes fazer breves comentários sobre seu tema. Por serem textos extensos, esta foi a solução encontrada para facilitar a leitura. (Próxima matéria da série:Breve resenha do Marco Legal de CT&I. Narrativas pró-mercado abrem o ‘Diálogo TCE-Cruesp’”)

EXPRESSO ADUSP


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