A Faculdade de Saúde Pública (FSP) e a Escola de Enfermagem (EE) da USP se somaram nos últimos dias ao movimento de apoio à professora Ligia Bahia, docente do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que sofre processo movido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

O CFM exige, em procedimento cível por dano moral em curso na 19ª Vara Federal de São Paulo, a retratação da professora e uma indenização de R$ 100 mil por críticas feitas por ela à postura do conselho em relação à vacinação contra a Covid-19 e ao apoio dado pela entidade ao uso de cloroquina durante a pandemia.

As declarações da professora foram dadas ao programa “Em detalhes”, no canal do ICL Notícias no YouTube, em agosto de 2024. A entrevista foi retirada do ar.

No mesmo programa, a médica também criticou a Resolução CFM 2.378/2024, publicada em março do ano passado, que proibia os(as) médicos(as)s de utilizar o procedimento da assistolia fetal para realização de aborto em casos de gravidez acima de 22 semanas resultante de estupro.

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Ligia Bahia é perseguida por críticas a conselho comandado por bolsonaristas

A resolução do CFM foi suspensa liminarmente em maio pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1411, movida pelo PSOL. O processo segue tramitando no STF.

Em relação aos procedimentos na pandemia, a nota da FSP diz que as posições expressas por Ligia “estão fundamentadas nas melhores e mais robustas evidências científicas do conhecimento internacionalmente reconhecido em saúde”.

Além disso, seu posicionamento “é consistente com as medidas de proteção preconizadas por organismos multilaterais da área de saúde, como a Organização Mundial de Saúde”.

A FSP, prossegue a nota, “vem se irmanar à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e à Academia Brasileira de Ciências para expressar solidariedade à Profa. Ligia Bahia, destacando sua trajetória exemplar na defesa da ciência e na luta incansável pela melhoria das condições de saúde da população brasileira”. “Consideramos este processo como um ataque não apenas à Profa. Ligia Bahia, mas a toda a comunidade científica brasileira e à democracia”, conclui o texto, assinado pelo diretor da unidade, José Leopoldo Ferreira Antunes, e publicado na última terça-feira (4/2).

A nota da Diretoria da EE, publicada nesta quinta-feira (6/2), reafirma os termos da manifestação da FSP e acrescenta que é necessário haver união “em defesa da ciência, essencial para o progresso e bem-estar da sociedade”.

Entidades criticam intimidação, perseguição e defesa de “perspectivas desumanas”

Desde o início da semana, muitas entidades acadêmicas e científicas têm se manifestado em defesa da professora. O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) divulgou nota na qual ressalta que a professora Ligia Bahia tem “uma trajetória marcada pela defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), pelo rigor científico e pelo compromisso com a pesquisa de qualidade”

“Nos causa profunda preocupação que o CFM, uma corporação com acesso a vultuosos recursos e assessoramento jurídico, esteja movendo uma ação judicial contra um indivíduo, a professora Lígia Bahia”, prossegue o IEPS. “O processo, que envolve pedidos de retratação e indenização, foi motivado por críticas feitas pela pesquisadora em um espaço público de debate. A tentativa de silenciar uma cientista por meio de intimidação judicial não apenas fere os princípios da liberdade acadêmica e da ciência, como também representa um precedente perigoso para o debate público.”

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) afirma que “o CFM tem historicamente adotado posicionamentos contrários ao conhecimento científico consolidado, como a admissão do uso de medicamentos ineficazes contra a Covid-19, incluindo a cloroquina”. “Além disso”, prossegue, “tem sustentado perspectivas desumanas ao defender a criminalização do aborto até mesmo em casos de gravidez infantil”.

“A professora Ligia Bahia é alvo desse processo por sua defesa das melhores práticas científicas e sanitárias, bem como por seu compromisso com princípios civilizatórios e de direitos humanos. Diante desse cenário, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva manifesta seu total apoio à professora e repudia as ações autoritárias e anticientíficas promovidas pela direção do CFM”, conclui a nota.

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) divulgaram nota de repúdio aos ataques movidos pelo CFM contra Ligia Bahia. “Ao buscar puni-la por defender estratégias baseadas em evidências científicas, o CFM se afasta dos princípios básicos da ciência e da liberdade de expressão, que fundamentam a vida acadêmica e as sociedades democráticas”, diz o texto, endossado por mais de 50 entidades.

O Conselho Universitário da UFRJ publicou moção de desagravo na quarta-feira (5/2), na qual reafirma o teor da nota da SBPC e da ABC ao dizer que a postura do CFM “se afasta dos princípios de liberdade de expressão que caracterizam a vida universitária e as sociedades democráticas”.

Na avaliação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), “estar ao lado de Lígia Bahia nesse momento representa a defesa contra o avanço de discursos negacionistas e da anticiência no Brasil”.

Um abaixo-assinado online de apoio à professora foi lançado por professores(as) titulares da UFRJ e já contava, na tarde desta sexta-feira (7/2), com mais de 14 mil assinaturas.

Diretoria do CFM é alinhada ao bolsonarismo

O processo do CFM foi aberto em agosto de 2024. O órgão pedia concessão de liminar para obrigar Ligia Bahia a se retratar e ainda abster-se de “fazer qualquer tipo de publicação vexatória, leviana ou difamatória nas redes sociais em relação ao CFM, sob pena de multa diária”.

O juiz José Carlos Motta, da 19ª Vara Cível Federal de São Paulo, indeferiu o pedido por avaliar que as manifestações da professora Ligia Bahia na entrevista “devem ser compreendidas como abarcadas pela liberdade de expressão e de crítica política, ainda que contundentes”.

“Com efeito, o que se ventilou na mencionada entrevista também foi alvo de críticas à atuação do CFM em outros veículos de imprensa, seja no que tange à sua tolerância na utilização de tratamentos sem eficácia comprovada durante a pandemia de Covid-19, seja no que concerne à recente Resolução CFM nº 2.378/2024, que proibiu aos médicos a interrupção de gravidez nos casos de aborto previsto em lei. Por fim, a entrevistada deixou evidenciada sua orientação política em relação aos alvos de suas críticas, incluindo o Sr. Conselheiro Presidente e seu colega de magistério na instituição federal de educação superior, o que permite ao telespectador interpretar suas declarações com as devidas reservas”, prossegue o magistrado.

Na sequência do processo, houve a apresentação da defesa e a réplica do CFM, que passou a mencionar, de acordo com a defesa da professora, “atos de intolerância praticados pela Ré, em que ela ou o seu grupo utilizam a violência para amedrontar e coagir os Conselheiros” e mesmo “ameaça à vida de Conselheiros”.

O CFM tem se caracterizado nos últimos anos pelo alinhamento político ao bolsonarismo e às pautas caras à extrema-direita. O atual presidente, José Hiran da Silva Gallo, publicou um artigo na página do Conselho Regional de Medicina de Rondônia, sob o título “A esperança venceu o medo”, para saudar a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Em 2020, procurou isentar o então presidente de responsabilidades pelas mortes na pandemia, defendeu a adoção do falacioso “tratamento precoce” e atribuiu ao Judiciário e à imprensa responsabilidades pela “catástrofe” que até então ceifara a vida de 100 mil brasileiros(as) – o Brasil perderia mais de 700 mil vidas para a Covid-19 em toda a pandemia.

Já a segunda vice-presidenta do conselho, Rosylane Nascimento das Mercês Rocha, presidenta em exercício em janeiro de 2023, fez postagens exaltando as manifestações golpistas de Brasília no 8 de Janeiro.

Uma das notícias em destaque no site do CFM nesta sexta-feira (7/2) aborda reunião da Diretoria com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), na qual se discutiu “a necessidade de criação de uma delegacia especializada em crimes contra a saúde”.

“É preciso debater e defender a saúde com muita coragem e o CFM reconhece a atuação do governador Caiado, em toda a sua trajetória política, sempre em defesa da medicina e de melhorias na Saúde para toda a população”, afirmou José Hiran Gallo – aparentemente, a sério.

EXPRESSO ADUSP


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