Frente à resistência do corpo de servidores(as) e de seu sindicato, IBGE e governo federal recuam e suspendem a criação de “fundação de apoio”
Faixa apresentada durante manifestação de servidores no Rio de Janeiro faz trocadilho com nome da "fundação de apoio" (foto: Assibge)

Depois de meses de crise institucional, provocada por tensões crescentes e finalmente por um conflito — tornado público — no relacionamento entre a direção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de um lado, e seu corpo funcional, de outro lado, o governo federal finalmente interferiu, nesta quarta-feira (29 de janeiro), ao anunciar, por meio de nota pública conjunta do Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO) e do próprio IBGE, a suspensão temporária da criação da “fundação de apoio” denominada “Fundação IBGE+”.

A pretendida implementação no IBGE de uma fundação dita “de apoio”, dado o histórico desse tipo de entidade nas universidades públicas (federais e estaduais) e em institutos públicos de pesquisa em geral, foi objeto de repúdio e forte rejeição pelos(as) servidores(as) e pelo Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística (Assibge-Sindicato Nacional).

O conflito repercutiu na mídia, “escalou” e a direção do IBGE decidiu retaliar a Assibge, “ordenando” a esse sindicato, de modo insólito, que deixe de usar o nome do instituto, além de tomar outras medidas de natureza antissindical. Assim, no mesmo dia 29 de janeiro, os(as) servidores(as) do IBGE realizaram uma grande manifestação pública de protesto diante da sede nacional do instituto, no Rio de Janeiro.

A “nota conjunta informativa” MPO-IBGE, após ressalvar que o instituto, embora vinculado àquela pasta, dispõe de “autonomia administrativa”, comunica que ambos decidiram, “em comum acordo, suspender temporariamente a iniciativa da Fundação de Apoio à Inovação Científica e Tecnológica do IBGE (IBGE+), proposta apoiada pelo MPO, para o desenvolvimento institucional e a ampliação das fontes de recursos para o IBGE” (destaques nossos).

“Frente a esse desafio”, prossegue a nota, “estão sendo mapeados modelos alternativos que podem ensejar alterações legislativas, o que requererá um diálogo franco e aberto com o Congresso Nacional. Desta forma, o MPO e o IBGE esclarecem que qualquer decisão que oportunamente for tomada seguirá o debate no IBGE e com o Executivo e o Legislativo”.

A decisão do governo reduz as tensões, mas a pacificação entre as partes dependerá ainda de diversas variantes. “A presidência do IBGE aceitou receber o sindicato em reunião agendada para 4 de fevereiro, ocasião em que cobraremos maiores esclarecimentos e reforçaremos nossa oposição a qualquer solução privatista e/ou adotada sem consulta aos servidores”, declarou a Assibge em seu site no mesmo dia em que foi anunciado o recuo quanto à “Fundação IBGE+”.

A Assibge considera que a “suspensão temporária” da fundação de apoio “é uma vitória da mobilização dos trabalhadores do IBGE e da sociedade civil, que nos foi solidária”. O anúncio da medida, diz, “é um passo importante, porém insuficiente, por si só, para pôr fim à crise enfrentada pelo Instituto, marcada por decisões autoritárias da direção também em outros campos, incluindo graves medidas antissindicais ao longo dos últimos meses”.

Ainda segundo o sindicato, a “suspensão temporária do funcionamento da fundação havia sido apresentada como reivindicação do sindicato à direção do IBGE em reunião realizada em 25 de outubro”, ocasião em que a proposta foi recusada pela direção do IBGE. “No momento, é preciso que a direção do IBGE esclareça o que efetivamente quer dizer com ‘suspensão temporária’, e garanta que os servidores terão voz no debate do arranjo institucional que a direção afirma que buscará com o Executivo e Legislativo. A Assibge manterá sua oposição a qualquer proposta que mantenha os riscos institucionais que permeiam a ‘IBGE+’”.

A decisão de criar uma “fundação de apoio público-privada”, com a finalidade declarada de captar recursos de outros entes públicos e de empresas privadas mediante venda de serviços, de modo a “ampliar a fonte de recursos” do IBGE, não havia sido comunicada previamente aos pesquisadores e ao corpo funcional do instituto. A “Fundação IBGE+” foi reservadamente criada em 12 de julho de 2024 no 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, pelo presidente do IBGE, Márcio Pochmann, e demais diretores do instituto. Sua instituição só foi dada a conhecer publicamente em setembro seguinte, quando o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) aceitou uma solicitação do IBGE e o declarou “instituição científica e tecnológica” (ICT).

O Informativo Adusp Online apontou que o processo de instituição da “Fundação IBGE+” apresentava sérios problemas legais, porque, embora se baseie no decreto-lei 200/1967, citado na sua ata de fundação, a nova entidade, por ser “pública”, ainda que de direito privado, não cumpre o requisito de autorização legislativa prevista naquela norma, nem outras exigências apontadas em parecer do próprio procurador-chefe do IBGE: lei complementar e aprovação de seu estatuto por decreto presidencial.

No último dia 23 de janeiro, o diretor-executivo da “Fundação IBGE+”, Marco Cícero Noce Maciel, que fora nomeado por Pochmann apenas quatro meses antes, pediu demissão do cargo. No comunicado sobre sua saída, a direção do IBGE admite, pela primeira vez no decorrer da crise, que a “Fundação IBGE+ ainda está em fase de estruturação e estudos, aguardando a manifestação conclusiva do TCU [Tribunal de Contas da União]”.

Dispensa de licitação nos contratos com setor público favoreceu fundações

As primeiras “fundações de apoio” surgiram na USP, ainda nas décadas de 1960 e 1970, durante a Ditadura Militar. Nas décadas de 1980 e 1990, com o advento do neoliberalismo, ganham grande impulso, especialmente a partir de 1994, no governo Itamar Franco (MDB), com a edição da lei 8.958, que autoriza a celebração de contratos e convênios entre essas entidades privadas e as instituições federais de ensino (IFES) e demais instituições científicas e tecnológicas.

Também as favorece o ambiente institucional permissivo criado pela “reforma gerencial do Estado”, implantada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), entre 1995 e 1998, conforme proposta do então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser-Pereira.

Em 2010, no segundo mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva (PT), a lei 8.958/1994 é atualizada pela lei 12.349 e passa a permitir que as fundações “de apoio” celebrem contratos com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), “como secretaria executiva do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-FNDCT”, com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e com “as agências financeiras oficiais de fomento”, sendo que o “apoio” às IFES e outras ICTs poderia incluir a “gestão administrativa e financeira dos projetos”.

Em 2013, no governo Dilma Rousseff (PT), nova atualização (pela lei 12.863) amplia a lista de possibilidades para incluir entre os contratantes e convenentes “empresas públicas ou sociedades de economia mista, suas subsidiárias ou controladas”, e sempre “nos termos do inciso XIII do caput do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993” [Lei das Licitações]. Este é um detalhe relevante, uma vez que esse dispositivo determinava ser dispensável a licitação “na contratação de instituição nacional sem fins lucrativos, incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, científico ou tecnológico, desde que a pretensa contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional”.

Posteriormente a antiga Lei das Licitações foi substituída pela lei 14.133/2021, cujo artigo 75, no inciso XV, define que a licitação é dispensável para “contratação de instituição brasileira que tenha por finalidade estatutária apoiar, captar [sic] e executar atividades de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e estímulo à inovação, inclusive para gerir administrativa e financeiramente essas atividades […] desde que o contratado tenha inquestionável reputação ética e profissional e não tenha fins lucrativos”.

Assim, graças ao beneplácito da legislação federal, ao apoio ou omissão de sucessivos governos e ao sucesso das políticas de desresponsabilização e redução do Estado, atualmente existem cerca de 500 “fundações de apoio” em atividade no território nacional, vinculadas a universidades federais e a diversos outros entes públicos, e credenciadas conjuntamente pelo Ministério da Educação e pelo MCTI.

No atual governo Lula, parece haver uma orientação para conversão de entes públicos federais em ICTs, com a ideia de justificar a criação de respectivas “fundações de apoio”. Assim, em novembro último soube-se que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) foi enquadrada pelo MCTI como “instituição científica e tecnológica” (ICT), nos moldes previstos pela Lei da Inovação e pelo assim chamado Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, segundo notícia publicada no site oficial do governo brasileiro.

“A ABIN é uma instituição de Estado responsável pela inteligência do Brasil. É um papel de pesquisa, de inteligência, de inovação e de produção do conhecimento. Logo, o órgão se qualifica como ICT”, asseverou o secretário-executivo do MCTI.

Em dezembro, nova surpresa, como informou o portal Gov.br: “A Advocacia-Geral da União (AGU) foi reconhecida, por ato do [próprio] advogado-geral da União, Jorge Messias, como uma Instituição de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICT), nos termos do Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação”.

A explicação para tal iniciativa é desconcertante: “O Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação atribui à AGU a competência para fazer a análise jurídica dos requisitos legais das instituições que pleiteiam o reconhecimento como ICT. Por esse motivo, a declaração da AGU como ICT foi realizada por ato do advogado-geral da União, após processo interno de análise instruído por pareceres do Labori/AGU e da Consultoria-Geral da União (CGU)”.

EXPRESSO ADUSP


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