Privatização da Sabesp vai na contramão da experiência internacional e visa o lucro, não o serviço público, dizem pesquisadores; partidos ingressam com ADPF no Supremo
Protesto contra a privatização em sessão da Câmara Municipal de São Paulo (Foto: Karla Boughoff/Sintaema)

A privatização da Companhia de Saneamento de São Paulo (Sabesp) – que, a depender do desejo do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD), caminha a passos rápidos para a sua conclusão – está na contramão da experiência internacional e não atende ao interesse público, afirmam pesquisadores ouvidos pelo Informativo Adusp Online.

“É importante considerar que a privatização de uma companhia de saneamento básico não contribui para o acesso a abastecimento de água e esgotamento sanitário para toda a população por um motivo principal: empresas privadas visam o lucro, e não sua oferta universal. De modo diverso, o Estado tem ou deveria ter o papel de oferta universal da água, bem comum necessário à vida”, diz a professora Ana Paula Fracalanza, docente do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam) da USP.

Alheio, no entanto, às análises de pesquisadores(as), aos protestos de diversos setores da sociedade e às ações judiciais que contestam a privatização, o governo do Estado mantém o cronograma previsto para a entrega da companhia ao setor privado.

Nesta terça-feira (16/7), a Equatorial Participações e Investimentos foi confirmada como acionista estratégica da Sabesp e, na próxima segunda-feira (22/7), está prevista a liquidação da oferta pública para encerrar o processo de privatização.

No último dia 26/6, a Equatorial já havia sido anunciada como única empresa a formalizar uma proposta pela posição de acionista de referência, uma espécie de sócia estratégica na gestão da companhia, com 15% das ações.

Em sua proposta, a Equatorial ofereceu R$ 67 por ação. Naquela quarta-feira, as ações da Sabesp fecharam a cotação em cerca de R$ 74. Já na tarde desta quarta-feira (17/7), a cotação ultapassava os R$ 83,00.

A Equatorial terá direito a compor um terço do Conselho de Administração, além de escolher o(a) presidente do conselho e outros(as) executivos(as).

A concessão de tantas prerrogativas, diz a professora Ana Paula, mais do que ser desproporcional, representa “um problema de gestão de um bem comum”. “Dado que a água é um bem essencial à vida e que deve ser provido para todos, a lógica de mercado que deverá ser intensificada na gestão da companhia não contribui para o acesso a esse bem natural, principalmente para populações vulnerabilizadas e sem acesso à água potável”, diz.

“Periferias estão fora dos planos das empresas privatizadas”

Flávio José Rocha, pós-doutor pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP e atualmente em novo pós-doutorado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), ressalta que o fato de não haver outros concorrentes “parece estranho quando sabemos que o mercado da água está em alta no Brasil, principalmente depois que o Novo Marco Legal do Saneamento [Lei 14.026/2020] foi aprovado”.

“A questão não deve ser a cotação baixa, mas a Sabesp estar na Bolsa de Valores como se fosse uma empresa que negociasse uma mercadoria qualquer. A Sabesp é uma gigante do saneamento e já tem operações até em outros setores da economia”, lembra.

Rocha aponta que a Sabesp já passa por um processo de privatização desde a década de 1990, com o mergulho do país nas políticas neoliberais. A companhia foi a primeira do setor de saneamento público a ter ações em bolsas de valores. Quase 50% das suas ações já pertencem à iniciativa privada, que tem muito poder dentro da empresa, enfatiza. “Claro que mais poder da iniciativa privada muda o contexto do controle, mas não a mentalidade que vinha guiando as direções da empresa.”

Na avaliação do pesquisador, “quando uma empresa como a Sabesp passa a ser gerida com um viés neoliberal, fazer com que o saneamento seja universalizado deixa de ser um objetivo, porque os mais pobres nunca vão dar o lucro esperado no mercado da água”.

“Uma coisa é certa: as periferias estão fora dos planos de empresas privadas de saneamento”, prossegue. O setor privado não deve ser condenado, ressalta, mas sua lógica para sobreviver é distinta daquela do setor público. “No caso da água, essencial para a vida, é muito sério pensar que a prioridade será o lucro em detrimento de um direito que deveria ser assegurado”, afirma.

Sem experiência em gestão da água, Equatorial acumula problemas no setor elétrico

A Sabesp é uma empresa altamente lucrativa, com metade de suas ações em bolsas de valores (no Brasil e em Nova Iorque), que distribui dividendos a seus acionistas e faz investimentos, diz a professora Ana Paula Fracalanza. A sua privatização “não traz benefícios à população já abastecida e não traz benefícios para aqueles que ainda não são abastecidos pela companhia, que devem ter maiores dificuldades de obtenção de abastecimento de água e de serviços de esgotamento sanitário”.

É problemático, considera, entregar a gestão de um bem comum, a água, a uma companhia privada que ainda tem pouca experiência no setor de saneamento e, principalmente, “que tem como finalidade a obtenção de lucro, e não a universalização da oferta do abastecimento público à população”.

A Equatorial tem entre seus principais acionistas o Banco Opportunity, de Daniel Dantas, e o fundo de investimentos norte-americano BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, com inacreditáveis US$ 10,646 trilhões – sim, trilhões – sob sua administração.

A única experiência da Equatorial em serviços de água e saneamento é no Estado do Amapá, onde começou a operar em 2022. A empresa tem forte atuação no setor elétrico e está presente em vários Estados, especialmente do Norte e do Nordeste, cobrindo praticamente um quarto do território brasileiro.

Porém, mesmo no setor elétrico a atuação da empresa é contestada. No Rio Grande do Sul, por exemplo, onde começou a operar em 2021, a Equatorial acumula cerca de R$ 60 milhões em multas aplicadas pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados (Agergs).

Em junho, o Conselho Superior da Agergs indeferiu recurso da empresa e manteve a multa de R$ 24,3 milhões aplicada em outubro do ano passado pela baixa qualidade dos serviços prestados nos reparos aos danos causados por temporais no segundo semestre.

Nesta segunda-feira (15/7), uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada na Câmara Municipal de Porto Alegre para investigar a Equatorial concluiu seus trabalhos e aprovou relatório no qual aponta, entre outros problemas, que houve deficiência na transição operacional da privatização. A empresa reduziu em quase a metade – 46% – o seu quadro funcional com um plano de demissão voluntária, “sem a devida contraprestação de mão de obra com o conhecimento técnico de campo”.

Em entrevista ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, no último dia 1/7, o presidente da Equatorial do Estado, Riberto Barbanera, terceiro a ocupar o cargo em três anos, reconheceu os problemas, mencionou investimentos futuros e admitiu: “Apanhamos e merecemos, vamos tentar sair dessa situação”.

“Aprendam com a nossa experiência e não privatizem”, diz professor inglês

“Há uma forte tendência global de distanciamento da privatização, não em direção à privatização. Tanto no Norte global quanto no Sul global, aconteceram quase 400 casos de remunicipalização para serviços de água, incluindo metade das cidades francesas que privatizaram nos anos 1980. Então, há boas razões para aprender com a experiência da Inglaterra e boas razões pelas quais outros países em outros lugares estão remunicipalizando, não privatizando”, diz, em depoimento em vídeo publicado pelo Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), o pesquisador David Hall, professor visitante da Universidade de Greenwich, no Reino Unido.

Hall afirma que a privatização da água na Inglaterra, iniciada sob o governo de Margareth Thatcher na década de 1980, foi “uma experiência muito ruim”. O professor, que já dirigiu a unidade de Pesquisa Internacional em Serviços Públicos da universidade, relata que estudos feitos dez anos após a privatização mostraram que as empresas que assumiram os serviços não eram tecnicamente ou financeiramente mais eficientes do que as empresas do setor público.

“Não houve melhorias na eficiência. Uma razão para isso é que os novos proprietários das companhias de água na Inglaterra não sabiam nada sobre água. Simplesmente eram instituições financeiras que compraram as empresas para comprar os direitos do investimento”, afirma.

“Em 35 anos as empresas não investiram quase nada. Elas compraram as empresas [públicas], inicialmente por meio de compras de ações, e desde então elas até retiraram boa parte desse dinheiro. Então, em termos de investimentos, os acionistas não investiram quase nada. Mas o que fizeram foi retirar enormes quantias em dividendos. Nos últimos 35 anos os acionistas retiraram dividendos no valor de quase 80 bilhões de libras. Isso é bem mais de US$ 100 bilhões. São de US$ 2,5 bilhões a US$ 3 bilhões por ano sendo retirados do sistema, e não colocados no sistema”, diz.

Hall afirma que 90% da água global estão sob gestão do setor público, incluindo os Estados Unidos, onde 89% da gestão é pública.

“Então, por favor, aprendam com nossa experiência que a Sabesp não precisa de privatização. Ela precisa de um forte planejamento democrático voltada para o serviço público”, finaliza o professor.

Universalização do saneamento sempre foi feita com dinheiro público, lembra pesquisador

Ana Paula Fracalanza cita alguns fatores que colaboraram para a reestatização em diversas partes do mundo: aumento expressivo de tarifas; falta de transparência na gestão; pouco investimento em infraestrutura; não atendimento de cláusulas de universalização na prestação do serviço. “São fatores que vêm sendo observados na experiência internacional e que apontam o alto risco de processos de privatização do setor de água e esgotamento sanitário”, ressalta a docente da EACH.

Flávio Rocha cita Paris, Berlim, Buenos Aires, Manila e Cochabamba como alguns dos exemplos mundiais mais conhecidos de reversão das privatizações. “A Inglaterra passa por uma grande crise e já se fala em reestatização do saneamento naquele país. Há cidades, a exemplo de Baltimore, nos Estados Unidos, que disseram não à privatização.”

Na avaliação do pesquisador, as parcerias público-privadas também não representam uma solução, porque “se parecem mais com uma forma de privatização disfarçada’.

“É interessante que os que defendem a privatização da água argumentam que o Brasil não tem dinheiro para financiar a universalização do saneamento. No entanto, o dinheiro público acaba indo parar nas empresas privadas do setor em forma de empréstimos subsidiados pelo BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]”, critica.

Historicamente, nenhum país que universalizou o saneamento o fez através de empresas privadas, porque o custo é muito alto, prossegue Rocha. “Sempre foi o dinheiro público que custeou todo o processo. Isso mostra a importância estratégica de se ter o Estado como o gerenciador deste setor, até porque o saneamento é um monopólio natural e isso também é uma questão de soberania para um país.”

O pesquisador aponta a contradição de a Sabesp ser uma empresa que nasceu para servir a população paulista, mas que agora visa principalmente o lucro. “Equilíbrio fiscal não significa esquecer a função social, especialmente sendo uma empresa de serviço público que deveria levar esta missão a sério. Basta lembrar que durante a crise hídrica de 2014, a pior dos últimos anos, a Sabesp distribuiu em dividendos para os seus acionistas mais de R$ 500 milhões, e conseguiu autorização da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) para aplicar um aumento de tarifas de mais de 6%”, lembra. “Não dá para continuar com a ideia de que a água deve gerar lucro, principalmente depois da pandemia. O seu acesso deve ser uma prioridade do Estado de São Paulo para todas as pessoas que habitam o seu território.”

Partidos entram com ação no STF para suspender privatização

Nesta segunda-feira (15/7), um conjunto de partidos de oposição ao governo Tarcísio – PSOL, PT, Rede Sustentabilidade, Partido Verde e PCdoB – ajuizou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a lei municipal que autoriza a prefeitura de São Paulo a contratar serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, o contrato de concessão firmado com a Sabesp e o cronograma de privatização da companhia.

Os partidos apontam que a privatização traz risco de perda de investimentos antes obrigatórios, não observou o dever de licitar, teve falta de transparência, não possui plano de contingência em caso de eventos climáticos severos, não deixou clara qual será a política tarifária e tem uma previsão de adoção de instrumentos provisórios para domicílios situados em área de alto risco, o que consideram irregular.

A ação sustenta que há uma situação de insegurança econômico-jurídica aos cofres municipais, uma vez que, ao fim do contrato, a Sabesp estará sob o controle da iniciativa privada e é possível que a prefeitura se torne devedora dos investimentos eventualmente feitos e não amortizados durante a sua vigência.

Os partidos afirmam ainda que a celebração de contrato com uma companhia prestes a sair do controle acionário do poder público viola a exigência constitucional de abertura de licitação.

A ação foi distribuída ao ministro Cristiano Zanin. O ministro Edson Fachin, vice-presidente no exercício da Presidência do STF, abriu prazo de três dias para que a Câmara Municipal e o prefeito de São Paulo prestem informações. Fachin também solicitou pareceres do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.

A iniciativa se junta a outras cerca de 50 ações judiciais movidas por partidos, entidades e cidadãos que contestam a privatização da Sabesp.

No início do mês, a federação PT-PCdoB-PV na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) encaminhou representação ao Ministério Público (MP-SP) na qual solicita a apuração “de conflito de interesse e dano ao interesse público na participação da Sra. Karla Bertocco Trindade, Presidente do Conselho de Administração da Sabesp, no Conselho de Administração da Equatorial, único grupo a participar da oferta pública para se tornar acionista de referência” da companhia.

Karla Bertocco Trindade integrava até dezembro de 2023 o Conselho de Administração da Equatorial e, a partir de setembro, participou de reuniões do Conselho Diretor do Programa de Desestatização e do Conselho Gestor do Programa de Parcerias Público-Privadas nas quais “foram deliberadas matérias críticas relacionadas ao processo de privatização”, afirma a representação.

EXPRESSO ADUSP


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