Daniel GarciaDaniel Garcia
Ex-ministro Paulo Vannucchi foi um dos oradores da sessão solene

Centenas de pessoas lotaram o saguão do Instituto de Geociências (IGc), na tarde de 15/12, para participar e assistir à sessão solene de diplomação honorífica de Alexandre Vannucchi Leme e Ronaldo Mouth Queiroz, ambos estudantes do IGc assassinados pela Ditadura Militar há cinquenta anos, em 1973. A iniciativa reuniu a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), o IGc, a vereadora Luna Zarattini (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, e o coletivo estudantil “Vermelhecer”, inaugurando assim o projeto denominado “Diplomação da Resistência”.

Além de familiares de Alexandre e amigos de Ronaldo, estiveram presentes a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, os pró-reitores Aloysio Cotrim Segurado (Graduação) e Ana Lúcia Duarte Lanna (Inclusão e Pertencimento), o diretor do IGc, Caetano Juliani, familiares de desaparecidos(as) políticos(as) e ativistas da luta por memória, verdade e justiça.

O diploma de Alexandre foi entregue a suas irmãs Beatriz e Miriam. O diploma de Ronaldo foi recebido por Lilian Meyer Frazão, atualmente docente do Instituto de Psicologia (IP) e que foi sua colega e amiga, e por Alberto Alonso Lázaro, outro amigo.

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Beatriz e Miriam Vannucchi Leme recebem o diploma de Alexandre

Alexandre tinha 23 anos e era quartanista do curso de Geologia do IGc quando foi preso. Rapidamente foi assassinado sob tortura por agentes do DOI-CODI do II Exército, no dia 17 de março de 1973. Foi enterrado como indigente e a família só conseguiu transladar seu corpo para Sorocaba, sua cidade natal, dez anos depois. Seu atestado de óbito só foi retificado, para que constasse a verdadeira causa mortis, em 2014.

Ronaldo era um pouco mais velho: tinha 26 anos quando foi executado a tiros num ponto de ônibus, semanas depois, em 6 de abril de 1973. Ambos militavam na Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo armado de oposição à Ditadura Militar, e atuavam no movimento estudantil da USP. Ronaldo foi presidente do Diretório Central dos Estudantes (1970-1971). Perseguido, precisou abandonar o curso de Geologia em 1971, passando à clandestinidade.

As duas diplomações póstumas são as primeiras de trinta e três que a universidade pretende promover por meio do projeto “Diplomação da Resistência”, com a finalidade de “reparar as injustiças e honrar a memória dos ex-alunos”, segundo o Jornal da USP. Quarenta e sete pessoas ligadas à USP foram assassinadas pela Ditadura Militar, entre estudantes, ex-estudantes e docentes. Ainda segundo o Jornal da USP, o projeto foi inicialmente apresentado pelo “gabinete de Luna Zarattini, junto com o coletivo de estudantes Vermelhecer”.

A publicação reconhece, porém, que já em 2018 o jornalista e escritor Camilo Vannucchi havia proposto à Reitoria da USP a ideia de diplomar seu primo Alexandre. Nesse mesmo ano, por sinal, foi publicado o Relatório Final da Comissão da Verdade da USP.

Coube a Júlia Naomi, representante do Vermelhecer, fazer o pronunciamento inicial da cerimônia. “Em outros países que passaram por regimes ditatoriais se fala da pauta de memória, verdade e justiça. Aqui no Brasil a gente fala de memória, de verdade, mas muitas vezes esquece da justiça”, destacou a estudante da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), apontando o caráter contraditório do processo de anistia (1979), “que cumpriu um papel importante, de libertar os presos políticos e possibilitar a volta dos exilados, mas que ao mesmo tempo concedeu perdão a torturadores, assassinos e mandantes das ações de repressão”.

A impunidade não é um caminho para o combate às violações de direitos humanos, acrescentou Júlia. “Memória, verdade e justiça devem andar juntas, e o fortalecimento de uma fortalece as demais. O enfraquecimento da justiça enfraquece a memória e a verdade. A impunidade gera um processo de bloqueio da memória, mas perpetua uma outra recordação, repressiva e autoritária. As consequências disso a gente pode ver até hoje, principalmente nos sistemas de justiça e segurança, nos quais há naturalização dos atos de violência”. Ela disse enxergar o projeto de diplomação como uma ação de memória, verdade e justiça, capaz de reparar parte dos danos causados pelo Estado.

“Uma truculenta resposta do braço armado do Estado burguês” às propostas de desenvolvimento social, democracia, reforma agrária e outras reformas. Assim Denis, representante do DCE-Livre, ao se manifestar na cerimônia, definiu o golpe militar de 1964. A seu ver, nos dias de hoje a classe trabalhadora e o movimento estudantil estão desarticulados e impotentes, falta diálogo e falta projeto.

“Ainda há coisas em vigor daquela ditadura. Ainda há PM sangrenta, violenta, todo dia matando gente. Os próprios prédios da USP, a arquitetura que vigora na USP, é uma arquitetura gestada pelos militares. Não fomenta convívio. O projeto arquitetônico da USP é antissocial, não ajuda a formar diálogo, a reaquecer nossa organização”, apontou. No seu entender, as motivações de Alexandre e Ronaldo seguem atuais e é preciso romper o aparato repressivo montado pela burguesia.

“A USP demorou 50 anos para reconhecer os dois”, protestou, no seu pronunciamento, o ex-deputado estadual Adriano Diogo (PT), que presidiu na Alesp a Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, repetindo e enfatizando a expressão “50 anos”. Diogo foi estudante do curso de Geologia do IGc e colega de Alexandre e Ronaldo. “Como nós esperamos 50 anos para diplomar duas pessoas, esperamos que a Reitoria, a USP, não espere mais 50 anos para reconhecer os outros 31 [estudantes assassinados pela Ditadura Militar]. Porque talvez a USP não fez a leitura do Relatório da Comissão da Verdade da USP”, provocou ele.

Emocionado, Diogo prosseguiu cobrando uma mudança de atitude da USP em relação aos mortos e desaparecidos políticos. Citou que Pedro Dallari, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) que integrou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e foi um de seus coordenadores, apresentou “o relatório mais importante da história do Brasil moderno”, que é o Relatório Final da CNV, de 2014.

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Adriano Diogo: “a USP demorou 50 anos para reconhecer os dois”

O ex-parlamentar lembrou que Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química assassinada pelo Exército, foi demitida pela USP por abandono de cargo (em 1975), “como se Ana Rosa Kucinski tivesse saído para dar um rolê, e passado lá em Petrópolis, na Casa da Morte, sendo incinerada na Usina Cambahyba”, ironizou. “Esta cerimônia é importantíssima. A USP vai fazer a sua lição de casa? Vai reentronizar os professores, todos os punidos? Vai dar o diploma para Helenira [Resende] de Souza Nazareth, que nem a República achou seu corpo, até hoje?”, questionou.

Renato Cymbalista, coordenador de Direitos Humanos e Políticas de Memória, Justiça e Reparação da PRIP, informou que, em conjunto com o gabinete da vereadora Luna Zaratini, estão sendo iniciados os procedimentos para diplomação honorífica de outros(as) 31 estudantes da USP, pertencentes a catorze unidades. “Nós já temos preparados os ofícios de sugestão às 14 congregações, e as famílias das vítimas já chancelaram. Nós fizemos esses ofícios baseados nos relatórios da Comissão da Verdade e no ano que vem vamos iniciar esses processos”, disse Cymbalista, que é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).

“Em todos os momentos, e foram muitas as etapas burocráticas e administrativas”, enfatizou, “posso garantir a vocês que nós fomos capazes de qualificar, em nenhum ponto ele passou de forma burocrática, mecânica, automática. Todas as pessoas que fizeram parte do processo estão conscientes do significado desse ato, e absolutamente orgulhosas daquilo que foi feito”.

Aloysio Cotrim Segurado, pró-reitor de Graduação, descreveu brevemente as trajetórias de Alexandre e Ronaldo na USP e as circunstâncias em que foram assassinados — inclusive as versões fraudulentas forjadas pela Ditadura, de suicídio e atropelamento no caso de Alexandre, e de resistência à prisão e tiroteio no caso de Ronaldo, baseando-se nos dados apurados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão da Verdade da USP. Evocou a missa de sétimo dia da morte de Alexandre, celebrada por dom Paulo Arns na Catedral da Sé, e que reuniu milhares de pessoas.

O pró-reitor observou que se trata da primeira outorga de diplomas honoríficos post-mortem desde que, em maio deste ano, o Conselho de Graduação aprovou normativa a respeito, a Resolução 8.430, e apontou a importância da reparação simbólica da “violência avassaladora” que ceifou a vida dos jovens estudantes do IGc: “A cerimônia da diplomação, que ora celebramos, e o lançamento do projeto ‘Diplomação da Resistência’, na presença de professores, colegas, amigos e familiares queridos de Alexandre e Ronaldo, reveste-se desse propósito”.

Beatriz Vannucchi Leme, irmã de Alexandre, falou a seguir. “Estamos aqui hoje [refere-se também à irmã Miriam] representando toda a família, meus pais José e Egle, minhas irmãs Maria Regina, Maria Cristina e meu irmão José Augusto”, declarou. “Essa diplomação honorífica concedida ao Alexandre é uma satisfação a todos nós. É a conquista simbólica de um diploma da maior universidade da América Latina, e ele seria o primeiro dos filhos a receber, se sua trajetória não fosse interrompida”, disse, comovendo-se.

“O Alexandre era um ótimo aluno. Explorava, vivia e participava de tudo que a universidade oferecia. Partilhava de todas as lutas comuns aos estudantes naquela época, isto é: contra o ensino pago, a falta de verbas na educação. Era extremamente preocupado com os recursos naturais do país, com as empresas exploradoras de ferro, [questão] tão atual, e com o modo como a Transamazônica estava sendo feita”.

Beatriz registrou os esforços de seus pais para descobrir as verdadeiras circunstâncias da morte de Alexandre. “Essa reparação também é, como já foi falado, mais uma reparação à memória do meu irmão, assim como foi a retificação do atestado de óbito, e também quando ele foi considerado anistiado político. Neste momento, lembramos demais da luta dos nossos pais para que a verdade sobre o assassinato de Alexandre fosse conhecida, lembrada, e que a justiça fosse feita. Lamentamos que eles não estejam mais vivos para participar dessa homenagem”.

Depois de décadas, “ainda há muito para ser revelado sobre um dos períodos mais obscuros da nossa história: o regime militar estabelecido após o golpe de 1964”, aduziu. “A justiça só será feita quando os responsáveis pela tortura e morte de Alexandre e de tantas vítimas forem julgados e condenados”.

Do ponto de vista da PRIP, criada em maio de 2022, “a questão dos direitos humanos e da política de memória e reparação é um tema central”, disse a pró-reitora Ana Lanna, apontando o “compromisso da USP com os direitos humanos e a democracia”. Ela mencionou que a diplomação dos estudantes mortos ou desaparecidos é uma das recomendações do relatório final da Comissão da Verdade da USP.

“Hoje vivemos momentos difíceis para a humanidade em nosso país e no mundo, e pessoas como Alexandre e Ronaldo, dentre muitos outros, fazem enorme falta. Não apenas por terem sido alunos brilhantes, mas por terem sido idealistas, preocupados com o bem-estar da população e por buscarem um mundo melhor e mais justo”, disse o diretor do IGc, Caetano Juliani, acrescentando que eles “jamais serão esquecidos”.

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Arminda e Juliani entregam diplomas às irmãs de Alexandre e a amigos de Ronaldo

Outros familiares de vítimas da Ditadura Militar se fizeram presentes, entre os quais Helenalda Nazareth, irmã de Helenira Rezende, que foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e, posteriormente, lutou na guerrilha do Araguaia, sendo torturada e assassinada pelo Exército. “Minha irmã fazia o curso de Letras na USP, também estudei na USP, estou aqui representando a Comissão de Familiares, que foi organizada antes da Anistia. Em 1979 já entramos com o primeiro recurso contra o governo federal, pelas mortes e desaparecimentos de muitos. É muito importante este projeto”, declarou sobre a diplomação.

A professora Vera Paiva, do Instituto de Psicologia (IP), filha do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado pela Ditadura Militar em 1971 (e que permanece como desaparecido político ainda hoje), saudou os participantes do evento e convidou a juventude a “entrar mais fortemente” na luta por memória, verdade e justiça. “O nosso luto, e o meu pela perda do meu pai, não é substantivo, é verbo e se transforma em luta. Essa luta alimenta a nossa elaboração, alimenta a nossa solidariedade com aqueles que sofrem esse tipo de violência até hoje”, explicou, citando os casos de Bruno Pereira e Dom Phillips, “que quase viraram desaparecidos políticos”, e de Marielle Franco.

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Vera Paiva: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos precisa ser reinstalada

“A gente está ficando velho. A gente não pode só contar com filhos e netos de desaparecidos assassinados, presos e torturados políticos”, sustentou Vera, que fazia parte da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos quando ela foi extinta pelo governo Bolsonaro, em 2022. A docente do IP convidou as entidades estudantis a participarem da luta pela reinstalação da Comissão Especial, porque, embora tudo esteja preparado, “o presidente Lula ainda não assinou [as nomeações] e a Comissão ainda não foi [re]instalada”. Ela exortou os jovens, ainda, a tomarem parte de atividades como a Marcha do Silêncio, realizada anualmente no dia 31 de março.

Também se manifestaram no evento, entre outros, a vice-reitora Maria Arminda, o ex-ministro Paulo Vannucchi (Direitos Humanos), a vereadora Luna Zaratini, e o presidente do centro acadêmico do IGc, Thiago Viana Tavares.

Em 2024, o golpe que depôs o presidente João Goulart (Jango) e abriu caminho a vinte e um anos de Ditadura Militar (1964-1985) completará sessenta anos. Será uma boa oportunidade para a USP rever a atitude de distanciamento e omissão frente ao tema, que prevaleceu até agora e que não se sabe se será de fato revertida.

EXPRESSO ADUSP


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