Universidade
Aprovada por 87 votos a 13 no Co, com 5 abstenções, decisão de doar barco “Alpha Delphini” à Marinha ignorou carta de repúdio de discentes do Instituto Oceanográfico
Paulo Sumida, diretor do IO e defensor da proposta da Reitoria, fez uma declaração surpreendente sobre a embarcação a ser doada: “É um barco que tem um problema de estabilidade muito grande” e por isso era utilizado “apenas 30 dias por ano”, alegou

“Nós, discentes do Instituto Oceanográfico [IO], gostaríamos de expressar o nosso repúdio pela doação do barco de pesquisa Alpha Delphini [que] faz com que um dos maiores institutos de pesquisa oceanográficas do país fique dependente de barcos terceirizados e sem equipamento próprio, além de depender da própria Marinha do Brasil que já mantém, antes mesmo da doação oficial, o barco em um porto no Rio de Janeiro”.
Durante a reunião do Conselho Universitário (Co) desta terça-feira, 26 de agosto, o cristalino protesto do Centro Acadêmico Panthalassa, do IO, contra o descarte do “Alpha Delphini” pela USP, na forma de uma “carta à Reitoria”, foi lido por Giovana Oliveira — estudante do Instituto de Química (IQ), representante discente da graduação e diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE-Livre) — mas ignorado pela maioria dos(as) integrantes do Co.

Também não foram levados em conta os pronunciamentos críticos da bancada de representantes dos(as) funcionários(as) técnico-administrativos(as), nem a sugestão da professora Mariana Cabral de Oliveira, representante suplente da Congregação do Instituto de Biociências (IB), que apresentou uma alternativa à proposta da Reitoria de doar o barco.
Assim, apesar da documentação inconsistente, o parecer da Comissão de Orçamento e Patrimônio (COP) favorável à doação do “Alpha Delphini” foi aprovado por 87 votos, contando-se 13 votos contrários e cinco abstenções. A votação superou, portanto, o mínimo de 82 votos exigido nas votações por maioria qualificada, como no caso de doação de bens da universidade.
A convicção difundida pela Reitoria e seus apoiadores de que o IO deverá manter sua maior embarcação, o navio de pesquisas oceânicas “Alpha Crucis”, certamente pesou no resultado final. Na sua carta, contudo, o centro acadêmico cita apenas o “Alpha Delphini”, ao que parece mais ligado às tarefas de pesquisa desenvolvidas por estudantes de graduação.
“Alunos que dependem de horas embarcadas para a conclusão de sua graduação estão desamparados e muitas pesquisas foram paralisadas”, denuncia o documento. “O navio não é apenas um meio de transporte feito para uso de vigilância, como é dado a entender na justificativa da doação […] é um laboratório de alto padrão, que permite o avanço da ciência em nosso país, e pouquíssimas universidades no mundo têm o privilégio de usufruir e possuir os recursos que a Reitoria pressiona o IO há anos a abrir mão”, continua a carta do Centro Acadêmico Panthalassa.
“Como a maior universidade do país, temos o dever e o compromisso de lutar pelo avanço permanente da atividade acadêmica independente do recurso militar ou estrangeiro. O navio ‘Alpha Delphini’ é um bem público civil e não precisa de administração militar para que seja útil e prestativo para a sociedade brasileira, como já foi provado pelos 12 anos de embarcação e pesquisa realizadas a bordo do ‘Alpha Delphini’ em nome e sob direção do Instituto Oceanográfico da USP”.
O documento do corpo discente lembra ainda que o IO desenvolve pesquisa oceanográfica “incessantemente” há 79 anos, sendo “antes de tudo, um instituto científico e não somente uma faculdade que oferece o curso de graduação em oceanografia”, razão pela qual “não nos contentaremos com o mínimo para a graduação quando o propósito sempre foi e sempre será o avanço científico para além das salas de aula”.
A bancada de representantes do funcionalismo, composta por diretores do Sindicato dos Trabalhadores da USP, vinculou o descarte do “Alpha Delphini” aos erros cometidos pela própria Reitoria por ocasião da contratação das tripulações das embarcações do IO — que ocorreu, na década de 1980, sem a realização de concurso público e intermediada por uma empresa privada — e à demissão de todos os tripulantes durante a atual gestão reitoral, seguida da terceirização da nova tripulação do “Alpha Crucis” (e de sua gestão) e da decisão de se livrar do “Alpha Delphini”.
Na sua fala, além de apontar a conduta truculenta da Reitoria frente aos tripulantes, Neli Maria Paschoarelli Wada citou a carta na qual o professor Michel Mahiques, ex-diretor do IO em cuja gestão foi adquirido o “Alpha Delphini”, denuncia como desastrosa a decisão de doar o barco de pesquisas. E advertiu que a decisão de doar essa embarcação à Marinha do Brasil permitirá que logo chegue ao Co “a venda do ‘Alpha Crucis’, ou a doação”.
Outro diretor do Sintusp, Marcelo Ferreira dos Santos (Pablito), lembrou que o Co aprovou recentemente, por proposta da Reitoria, a compra de um terreno do governo estadual em Ribeirão Preto (a ser imediatamente cedido ao próprio governo estadual) pela quantia de R$ 281 milhões, de modo que a USP tem recursos mais que suficientes para financiar suas embarcações de pesquisa.
“Como se pode querer justificar que a Universidade de São Paulo está entregando um laboratório de pesquisa, de ensino, que é o ‘Delphini’?”, questionou Pablito, que também mencionou o relato de Mahiques, dizendo “fazer coro” com o pronunciamento de Neli e com a carta do centro acadêmico do IO. “O que está acontecendo aqui é, sim, um retrocesso enorme, no fim, inclusive, da própria universidade, que é a pesquisa, o ensino e a extensão. É em defesa dessa pesquisa, desse ensino, da extensão, que nós somos contrários a que seja tomada uma decisão completamente absurda como essa”, destacou.

Quanto à professora Mariana Cabral de Oliveira, que conduz pesquisas com algas marinhas, ao intervir no debate observou, de início, que o “Alpha Crucis”, adquirido em 2012 em Seattle (EUA), custou US$ 4 milhões, ao passo que o “Alpha Delphini” foi construído no Ceará ao custo, na época, de R$ 5,5 milhões, “e foi adquirido como equipamento multiusuário da Fapesp”. Ela destacou o aspecto do financiamento como relevante na discussão: “Houve investimento da Fapesp e investimento da USP. São dois equipamentos que demandam uma infraestrutura. E a instituição disse que manteria esses equipamentos”.
A docente do IB pontuou que a votação ocorrida no IO foi de um protocolo de doação. “Então, seria interessante, talvez, a gente considerar que alternativas poderiam existir, de parceria, por exemplo, entre as três universidades, através do Cruesp [Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas] e junto com a Marinha, de preservar essa embarcação”.
Além do reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr., coube à presidenta da COP, Maria Dolores Montoya Diaz, e ao diretor do IO, Paulo Yukio Gomes Sumida, realizarem as principais defesas da proposta da Reitoria. Dolores fez a apresentação inicial da sessão, procurando justificar o interesse público da doação e o parecer favorável da COP, e Sumida fez duas longas intervenções.
De acordo com Dolores, a COP “analisou detidamente toda a documentação” enviada pelo IO, terminando por concluir que o navio “Alpha Crucis”, “agora totalmente regularizado em todas as suas dimensões, inclusive em relação à tripulação, permanecerá como navio principal” do IO; que a justificativa de interesse público “é endossada na minuta do contrato”; e que o diretor Sumida “informa que a doação contribuirá para a otimização do patrimônio público, uma vez que a embarcação atualmente não cumpre função social relevante, podendo ser melhor aproveitada pela entidade beneficiária”.
Dolores enfatizou informação que consta da página 46 da processo, segundo a qual a “redação final da minuta do contrato de doação foi fruto da conjugação de esforços entre a Procuradoria Geral da USP e a Assessoria Jurídica da Marinha” (destaques nossos). Segundo alegou, é importante fazer esse destaque “justamente porque todos esses aspectos, de certo modo, encontram-se refletidos na própria minuta”. No entanto, não obstante a “conjugação de esforços” e a citação, igualmente na página 46, da anuência do Comando do 8º Distrito Naval, não há um único documento da Marinha no processo.
Reitoria avaliou que seria “um gasto muito alto” manter o “Delphini”
“Tudo começou lá atrás, quando o professor Carlotti começou a gestão dele, eu praticamente tinha começado a minha também, e a gente tinha que regularizar a situação da tripulação das embarcações. Então, essa situação já vinha perdurando por algum tempo, e coube a mim, e ao reitor, fazer esse processo difícil que todos devem ter acompanhado”, principiou Sumida. “Isso passou por uma extinção dos contratos dos então tripulantes do navio, e a solução foi terceirizar o serviço, obviamente porque a universidade não possui cargos como capitão de longo curso, marinheiro de convés, então esse serviço teria que ser terceirizado”.
Sem apresentar cifras referentes às despesas com pessoal, o diretor do IO endossou a tese da Reitoria de altos custos: “A terceirização tem que seguir a lei marítima, e para isso a gente tinha que ter duas tripulações para cada embarcação, porque eles revezam a cada 14 dias. Eles ficam 14 dias, sai todo mundo, e entra mais uma tripulação completa 14 dias depois, e assim por diante. Então, nós teríamos que ter quatro tripulações. A Reitoria considerou que seria um gasto muito alto a gente ter, por causa, principalmente, da utilização de um dos barcos, no caso, o ‘Delphini’. Então, como citou a professora Dolores, a gente continua com o ‘Alpha Crucis’, ele está sendo docado agora para uma revisão de cinco anos, então a gente continua com esse navio”.

Foi preciso escolher uma das embarcações, continuou. “Então a gente escolheu o grande, porque o IO sempre foi caracterizado por conseguir fazer pesquisas em oceano aberto, que é muito diferente de pesquisas costeiras, que é o que o ‘Alpha Delphini’ faz. É o diferencial do IO em relação a todas as outras instituições que estudam ciência do mar. Então a gente optou por ficar com essa embarcação maior, que é o mais DNA [sic] da instituição”.
Ainda segundo Sumida, o assunto foi a debate em “várias” reuniões da Congregação do IO, “e decidimos pela embarcação maior”. Como agravante, acrescentou, a reforma que vem sendo realizada no Porto de Santos incluiu justamente o setor onde as duas embarcações do IO estavam atracadas. “Então, nesse período de turbulência, ainda perdemos cais de atracação para o navio. Você imagina ficar com dois navios na mão, sem tripulação, sem cais. Foi uma fase bem difícil. Hoje, o ‘Alpha Crucis’ está com um cais de atracação no Porto de Santos, depois de muita negociação”.
O diretor do IO elogiou diversas vezes a Marinha, que no seu entender vem sendo “parceira fiel” da USP “desde os anos 1950, é o convênio mais antigo que a USP tem”. Porém, alegou, a Marinha “não sabia que íamos doar o barco para eles”.
Sumida procurou desencorajar votos contrários à doação, aludindo a uma série de situações negativas: “além de ter que trazer o barco para cá, nós não teríamos cais para atracar o barco”; seria preciso “fazer um novo edital complexo”; e “o pior de tudo é o constrangimento que a gente vai ter junto à Marinha, porque a Marinha fez todo esse processo de tentar convencer o Comando da Marinha [sic] a aceitar mais uma embarcação”; “vai ser um constrangimento que a gente não precisa passar com um parceiro de tão longa data”.
Na sua segunda intervenção, o diretor do IO chegou a fazer uma declaração surpreendente sobre o ‘Alpha Delphini’, que não aparece em momento algum na documentação submetida ao Co: “Eu gostaria de fazer um esclarecimento com relação a esse barco. É um barco que tem um problema de estabilidade muito grande. Ele era pouco utilizado, porque tem um problema de estabilidade muito grande”. Era utilizado, disse, apenas “trinta dias por ano”.
A “revelação” de Sumida foi reiterada pelo reitor Carlotti Jr., numa das suas falas finais, em tom depreciativo: “É um barco de 13, 14 anos. É um barco que tem instabilidade para navegar. É um barco utilizado 30 dias por ano”.
Caso se dê crédito a essa informação estonteante que surgiu minutos antes da votação no Co, poder-se-á chegar à conclusão de que a USP doará à Marinha do Brasil um verdadeiro “presente de grego”: um barco instável.
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