Universidade
Carta aberta de discentes de pós-graduação da FFLCH rejeita “novo modelo” de doutorado e mestrado proposto por Capes, Fapesp e PRPG
Após reunião aberta realizada em 26 de maio último, estudantes de mestrado e doutorado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) elaboraram uma carta aberta que reflete a posição coletiva do grupo em relação ao Programa de Aperfeiçoamento da Pós-Graduação (PAPG), ou “novo modelo de pós-graduação”, proposto pelo Edital 4/2025 da Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG). O documento rejeita as alegações da PRPG e de outros proponentes do projeto, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O PAPG, explica o documento discente, foi precedido de um acordo entre Capes, Fapesp, USP e as demais universidades públicas paulistas estaduais e federais. O denominado “novo modelo” de Pós-Graduação “é apresentado como projeto-piloto, visando inicialmente apenas os Programas de Pós-Graduação de Excelência”, mas, a partir dele, “pretende-se uma transformação mais ampla da pós-graduação no Brasil, que não pode prescindir da análise e reflexão daqueles que serão diretamente afetados por ela”.
A carta aberta faz inicialmente uma exposição das justificativas apresentadas pela PRPG e instituições aliadas, seguida de análise minuciosa de tais alegações. Refuta, por exemplo, a ideia de que a realização de uma reforma na pós-graduação venha a facilitar a inserção de mestres(as) e doutores(as) no mercado de trabalho: “As dinâmicas de promoção de vagas de emprego dependem da disponibilidade das instituições contratantes — sejam elas empresas, universidades, ONGs etc. —, não sendo compreensível tal ligação com o PAPG”.
As instituições proponentes do “novo modelo”, acrescenta, alegam que a queda na procura pela pós-graduação no país deve-se à duração excessiva do ciclo formativo e à baixa inserção de doutoras(es) no mercado de trabalho, “mas chegam a tais conclusões sem ouvir as(os) próprias(os) estudantes e sem uma reflexão mais aprofundada acerca do contexto em que esta diminuição se deu”.
Além disso, o documento questiona a própria sinceridade de propósitos do programa da Reitoria: “Ao contrário do que afirmam os documentos em favor da reforma, o projeto-piloto desvaloriza a diplomação de ensino superior, na medida em que facilitaria a atuação de mestrandas(os) e doutorandas(os) da Universidade de São Paulo como estagiárias(os) em outras instituições, sob o argumento da maior ‘inserção na sociedade’ [destacado no original]”.
A carta aberta critica igualmente o reduzido número de bolsas de pesquisa previsto no PAPG: “No edital, as promessas de bolsa são pouco significativas e de curto prazo, mas estão condicionadas a mudanças definitivas na graduação. A distribuição de 90 bolsas de doutorado por ano, por cinco anos, para a USP é baixíssima, considerando a demanda real”. Observa ainda que, ao afirmar que “a Capes garantirá bolsa de doutorado para até 20% dos estudantes de mestrado com bolsa de mestrado Capes vigente no momento do Exame de Qualificação e que fizer a mudança de nível”, o edital da PRPG “deixa subentendido que 80% das pessoas bolsistas Capes não têm garantia de reajuste das bolsas na passagem para o doutorado direto”.
Por fim, avalia que, no “caso da bolsa de pós-doutorado da Capes, com valor complementado pela Fapesp, para cada programa aderente ao PAPG, a limitação é ainda mais evidente: trata-se de uma única bolsa disponibilizada após a realização da primeira mudança de nível do mestrado para o doutorado”. O que leva uma conclusão totalmente desfavorável: “Entendemos, assim, que a proposta não se justifica e não traz vantagens substantivas em termos de remuneração para as(os) discentes em nenhuma esfera”.
No entender do grupo discente, as instituições autoras do “novo modelo” enxergam o mestrado atual como “principal problema” da pós-graduação, entre outras razões porque, segundo o edital, ele tem se mostrado “finalístico, uma vez que dois terços dos seus titulados não ingressam no doutorado”. O edital, acrescentam, “baseia-se na ideia de que o mestrado tem sido desvalorizado por ser entendido apenas como obrigatoriedade formativa para a realização do doutorado, objetivo principal da formação”, ou seja: “por não existirem objetivos próprios do mestrado, além de permitir o acesso ao doutorado — embora muitos não cheguem de fato ao doutorado”.
Porém, paradoxalmente, diz a carta aberta, ao “tentar encurtar o tempo de formação da pós-graduação e promover o doutorado direto, o PAPG acaba por minar a qualidade do mestrado, diminuindo drasticamente o tempo de formação e pesquisa”. As(os) estudantes teriam apenas seis meses a um ano para a realização da pesquisa e escrita da dissertação, o que levaria à perda de qualidade dos projetos.
“Com isso, o projeto-piloto faz justamente o contrário do que afirma: torna o mestrado uma etapa para o doutorado (para aqueles que conseguirem), sem objetivos próprios, e ainda desvaloriza-o profundamente, ao considerar plausível que a(o) discente cumpra as exigências acadêmicas em um tempo tão reduzido. Vale lembrar que este será o caso da maioria, que terá que seguir tal cronograma apertado, considerando-se a limitação na quantidade de bolsas que serão convertidas de mestrado para doutorado pelo acordo com Capes e Fapesp”.
Adicionalmente, a distribuição de bolsas para mestrandas(os) “não está especificada no PAPG, já que as garantias são explicitamente para o doutorado”. Por outro lado, a Fapesp “não apresentou qualquer indicativo de mudança nos padrões de análise de concessão de bolsas, baseados na análise do projeto e currículo acadêmico de orientanda(o) e orientador(a)”. Assim, conclui o documento, a reforma dificultará severamente o acesso de mestrandas(os) ao financiamento Fapesp, “faltando tempo hábil para que o processo seja analisado e aprovado”.
“Ênfase no ‘empreendedorismo’ e ‘inovação’ revela vocabulário neoliberal”
Um dos motes do PAPG é a “formação de competências da pós-graduação”, que merece atenção especial da carta aberta. “Percebe-se que, nos documentos citados [edital e outros], existe a compreensão de que os conhecimentos adquiridos durante o percurso formativo da pós-graduação não estão em consonância com as demandas sociais”. O edital sustenta que “o sistema não deve ser escalonado, mas ramificado e finalístico, oferecendo aos estudantes objetivos distintos em sua trilha formativa mais voltada para a academia, docência, institutos de pesquisa, inovação, desenvolvimento, políticas públicas”, e ainda: “A formação na pós-graduação deve oferecer competências e habilidades optativas para além do projeto de pesquisa — respeitando-se objetivos do estudante — fornecendo aprendizagem humanística, ética, de empreendedorismo e com maior integração com a sociedade”.
Durante o seminário “As transformações esperadas na pós-graduação brasileira”, promovido pela PRPG em 20 de fevereiro de 2025, foi reforçada “a necessidade de maior interação entre a universidade e as instituições públicas e privadas, permitindo maior desenvolvimento científico com intervenção na sociedade”, lembra o documento discente. “A relação universidade-indústria foi muito citada, ressaltando-se o interesse de empresas do ramo na contratação de pós-graduandas(os), dada sua alta qualificação, e a dificuldade de encontrar pesquisadores adequados às suas demandas. Promover tal contato seria, nesta argumentação, essencial para o desenvolvimento econômico do Brasil”, acrescenta.
O PAPG, aponta a carta aberta, propõe que os mestrandos possam ingressar com ou sem projeto de pesquisa e orientador definidos. “No novo modelo, os primeiros 12 meses do mestrado estariam focados na realização de disciplinas, na aquisição de habilidades e competências; sendo que no primeiro trimestre deve-se identificar o orientador e iniciar a construção do projeto, caso isso não tenha sido feito anteriormente”. O edital da PRPG incentiva a oferta de matérias interdisciplinares, e ressalta que “os programas poderão propiciar trilhas formativas diversas: o modelo tradicional voltado prioritariamente à pesquisa e docência pode ser complementado com trilhas ligadas à inovação e desenvolvimento, empreendedorismo, políticas públicas, estágios extramuros, a depender dos objetivos e vocação de cada PPG”.
Porém, no entender do grupo discente da FFLCH, considerando-se as habilidades que devem ser desenvolvidas pelas(os) pós-graduandas(os) segundo os proponentes da reforma, não fica evidente como elas deveriam se refletir no novo modelo. “O incentivo a matérias interdisciplinares, por exemplo, não é acompanhado de qualquer aprofundamento em relação aos seus objetivos e à maneira pela qual os programas devem formá-las, ficando a cargo das(os) docentes a tarefa de renovar toda estrutura curricular estabelecida, em tempo curto, para atender a demandas de instâncias reguladoras”.
Há também, dizem, pouca clareza quanto à contribuição esperada das “atividades extramuros” para o desenvolvimento das pesquisas, “especialmente nas Ciências Humanas, área na qual as temáticas têm baixo interesse mercadológico e empresarial”. Mesmo sendo atividades de extensão, “o eixo historicamente menos valorizado do tripé ensino-pesquisa-extensão”, prosseguem, “é preciso considerar o tempo de elaboração e execução de projetos pertinentes e socialmente responsáveis”, bem como a necessidade de construção dos vínculos com a formação e a pesquisa.
“Além disso, deve-se rever a acentuada ênfase no ‘empreendedorismo’, na ‘eficiência’ e na ‘inovação’ presentes no edital do PAPG, que revela um vocabulário típico do neoliberalismo e pouco compatível com as práticas de pesquisa nas Ciências Humanas. Percebe-se que, ao incentivar tais ‘habilidades’ próprias a uma lógica dos negócios, o PAPG deixa evidente seus objetivos: formar trabalhadoras(es) hábeis e adaptáveis ao mercado de trabalho contemporâneo em detrimento de acadêmicas(os) dotadas(os) de pensamento crítico e erudito em relação à realidade”.
Dentro dessa lógica, destaca a carta aberta, entende-se a afirmação do professor Ésper Cavalheiro no citado seminário da PRPG: “Fomento das relações [com o setor industrial e a sociedade] é quebrar muro, gente. Mostrar pro aluno que ir pra um congresso da área profissional é muito bom! Não vai pro congresso acadêmico… pega seu dinheiro da bolsa da Fapesp e vai pra um congresso da área profissional… vai pra onde tão os empresários, vai ouvir o que eles falam. O professor fala sempre a mesma coisa… (inaudível) E por que que nós não colocamos empresários como co-orientadores? Qual é o nosso medo? Por que não têm título de doutor? Quem precisa de título de doutor? Tem gente que sabe muito mais sem nunca ter feito isso” (destaques no original).
No mínimo, continua, “isso deixa evidente uma postura de desvalorização para com a formação acadêmica, e o interesse em transformar o mestrado e o doutorado em meios de desenvolvimento de habilidades aptas ao mercado de trabalho”. O uso de habilidades profissionais do FMI [Fundo Monetário Internacional] como parâmetro para a reforma, exemplifica, reforça o argumento. “E se em áreas ligadas à tecnologia, nas ciências exatas e biológicas, há efetivamente uma demanda por mais doutores no mercado de trabalho — o que contribui para a compreensão dos motivos para a implementação do PAPG —, nas ciências humanas a situação é bastante diferente”, pontua.
“Ainda que a justificativa apresentada para reduzir o tempo de mestrado e formar doutores mais rapidamente seja a de atender às necessidades de estudantes das classes populares — que precisariam ingressar mais rapidamente no mercado de trabalho a fim de sustentar suas famílias —, o que o novo modelo prevê é uma retirada das condições destes estudantes de seguirem a carreira acadêmica, acirrando e antecipando a concorrência para tanto já na etapa do mestrado. Afinal, são justamente os estudantes vindos de contextos periféricos, que precisam trabalhar junto à realização dos estudos desde a graduação, os maiores prejudicados pelo encurtamento da pós-graduação, tendo ainda menos tempo para a formação e realização de pesquisas. Tais questões intensificam-se quando consideramos a ausência de políticas de permanência pelo PAPG”.
A preocupação “com a realização de pesquisas críticas e não imediatamente ‘aplicáveis’ ou ‘úteis’ do ponto de vista do mercado e das políticas públicas também escapa ao novo modelo de pós-graduação, colocando em xeque um papel histórico das Ciências Humanas na USP e no país como um todo”, diz a carta aberta. “Com menos tempo e novas exigências de formação básica interdisciplinar, são tolhidas as condições para a realização de pesquisas aprofundadas e relevantes, que levantem questionamentos sérios quanto ao funcionamento de nossa sociedade”.
Por fim, avalia o documento, “priorizar a disponibilidade de tempo hábil para realização de pesquisas de qualidade e adequar as bolsas às necessidades econômicas da realidade atual” são caminhos mais pertinentes para o “aprimoramento” da pós-graduação na USP do que promover uma diminuição no tempo de formação de pesquisadoras(es). Por outro lado, o “tratamento diminuto” conferido pelo PAPG às questões de inclusão e pertencimento “não pode ser naturalizado, sendo necessária a articulação de discentes em defesa de condições mais igualitárias na pós-graduação”. Assim, “a construção e manutenção de uma pós-graduação de excelência na USP é perfeitamente viável, mas caminha num sentido muito distinto daquele sugerido pelo PAPG, especialmente no caso das Ciências Humanas”.
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