A chefe da equipe de enfermagem do Centro Obstétrico (CO) do Hospital Universitário da USP (HU), que exercia essa função há 21 anos, foi retirada do cargo e transferida para o Setor de Compras, contra sua vontade, pela diretora do Departamento de Enfermagem, Yeda Aparecida de Oliveira Duarte. A mudança teria sido solicitada pela chefe técnica da Divisão de Obstetrícia e Ginecologia do HU, médica Rossana Pulcineli Vieira Francisco. O caso foi denunciado em 26 de fevereiro, por um manifesto da equipe de enfermagem do CO.

“A manobra foi realizada de forma repentina e justificada como necessária à sobrevivência do HU, mesmo após insatisfação manifestada pela equipe”, relata o manifesto. “No entanto, após dois dias, a professora doutora Rossana, chefe da Obstetrícia de Ginecologia do HU e também da FMUSP [Faculdade de Medicina], informou para seus colegas médicos que havia solicitado a mudança há alguns meses com a justificativa de avançar nas questões de humanização do parto”.

Assim, “a enfermeira chefe do CO foi retirada de seu cargo por influência do Departamento Médico, embora estes dois não tenham relação hierárquica alguma”, prossegue. “Este manifesto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre esse cenário e compartilhá-la com a comunidade de interesse. A influência e a força da categoria médica têm sido historicamente uma questão desafiadora para a autonomia da enfermagem obstétrica, não apenas no HU, mas em todo o Brasil. O cenário é consequência de conflitos de interesses por questões culturais, políticas, de espaço profissional e de reserva de mercado”.

A seguir o documento elenca marcantes diferenças entre o papel reservado à enfermagem em dois modelos de gestão hospitalar: o do Hospital das Clínicas e o do HU. “O Hospital das Clínicas pertence à Faculdade de Medicina da USP, atende predominantemente gestantes de alto risco e tem sua importância reconhecida nacionalmente. Tais características fazem com que seu modelo de gestão seja centrado no médico”, diz.

“A equipe de enfermagem, em sua maioria, tem vínculos de trabalho feitos por fundações e organizações sociais, e assim sofre as mesmas influências das dinâmicas dos setores privados”, continua. “A enfermagem é submissa, desvalorizada e assombrada pela instabilidade do emprego. Assim como a maioria das instituições de saúde, o departamento de enfermagem responde aos interesses da classe médica”, e a relação existente entre médicos e enfermagem envolve não somente o papel profissional, mas também uma questão de poder.

“Já o HU, além de ser uma plataforma de ensino para outras unidades da USP, é o principal campo de ensino teórico-prático e de pesquisa do curso de graduação, residência em enfermagem e pós-graduação da Escola de Enfermagem [EE-USP]. Seu Departamento de Enfermagem é próprio, independente e liderado por uma docente da EE-USP desde sua fundação em 1981. E tem seus funcionários concursados vinculados à Universidade de São Paulo”, esclarece.

O manifesto aponta outras características que distinguem acentuadamente o HU do HC. De menor porte, o HU atende gestantes de risco habitual (baixo risco). “Em seu quadro funcional, tem enfermeiras obstetras e residentes de enfermagem obstétrica que atuam na assistência da maioria dos partos naturais. Enquanto os médicos obstetras tendem a adotar um modelo mais medicalizado e intervencionista, muitas vezes necessário, as enfermeiras preferem uma assistência com menos intervenções e mais ênfase na autonomia da mulher durante o parto. Mesmo assim, médicos e enfermeiras do HU tendem a promover uma cultura colaborativa, de respeito mútuo, comunicação aberta e trabalho em equipe”, pondera.

“Além do mais, o conceito de assistência humanizada no parto não se resume apenas a tirar fotos e ter acompanhante. Esse movimento tem forte influência do feminismo, tem suas raízes no final do século XX e é uma resposta às práticas médicas padronizadas que se tornaram comuns no processo de dar à luz, especialmente nos países ocidentais”, argumenta. “Ele enfatiza a autonomia da mulher, buscando colocá-la no centro do processo de dar à luz, com respeito às suas escolhas e experiência emocional. Seu conceito tem sido utilizado equivocadamente em alguns contextos na medida em que foi se popularizando”.

Historicamente, “enfermeiras obstetras têm sido pioneiras na defesa dos direitos das mulheres durante o parto e no desenvolvimento de práticas centradas na mulher e na família”, lembra o documento. “No HU, a enfermagem do CO desempenha um papel crucial na promoção da assistência humanizada durante o parto e o período perinatal”, diz, passando a elencar uma série de medidas adotadas pela equipe do hospital, tais como incentivar a movimentação e orientar sobre posições favoráveis no trabalho de parto; oferecer medidas não farmacológicas para alívio da dor e incentivar o banho como medida de conforto; dar apoio emocional.

“A enfermagem defende a tomada de decisão consciente pela paciente. A enfermagem coloca os bebês em contato pele a pele, mesmo nas cesáreas. A enfermagem assiste partos em ambiente intimista e em posições que não sejam a litotômica. A enfermagem incentiva a amamentação precoce. Entre muitas outras coisas”, entre as quais, acrescenta o manifesto, suporte para acompanhantes durante toda a internação, incluindo refeições, banheiro e poltronas reclináveis.

“A enfermeira-chefe do CO foi retirada do cargo sob a justificativa de dificultar a humanização da assistência, sendo que todos esses avanços foram feitos durante sua gestão. Este contrassenso nos traz algumas inquietações”, conclui o documento: “1. Sobre o uso equivocado da palavra humanização. 2. Sobre os altos gestores desconhecerem a realidade da prática. 3. Sobre a perda da autonomia do Departamento de Enfermagem. 4. Sobre o protecionismo velado da hegemonia do modelo biomédico. 5. Sobre a falta de reconhecimento dos esforços já realizados para a assistência humanizada. 6. Sobre tentar resolver problemas estruturais da instituição com soluções atitudinais individuais”.

O Informativo Adusp Online encaminhou e-mail a Yeda Duarte, chefe do DE-HU e professora do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da EE-USP, pedindo que comentasse as afirmações do manifesto. “A mudança de setor da funcionária foi devido a uma necessidade administrativa urgente da instituição e do Departamento. Ela está ciente da necessidade e concordou em auxiliar”, respondeu Yeda, sem explicar do que se trata.

“As questões relativas à doutora Rossana em nada influenciaram a decisão do DE, que foi anterior ao ocorrido. O manifesto contém informações equivocadas como já foi esclarecido junto aos manifestantes”, alega a docente. “Ressalto não ter havido nenhuma consulta ou conversa antes de ter sido divulgado, contribuindo com a disseminação de informações equivocadas”.

Também solicitamos à médica Rossana Pulcineli, chefe técnica da Seção de Obstetrícia do HU, citada no manifesto como autora do pedido de transferência da enfermeira-chefe do CO, que comentasse essa afirmação. Até o fechamento desta matéria não recebemos resposta de Rossana, que é docente e ex-chefe do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da FM (2021-2023). Caso sua manifestação chegue, a matéria será devidamente atualizada.

Íntegra do Manifesto de equipe de enfermagem do Centro Obstétrico do HU-USP

Este manifesto destina-se aos profissionais do Hospital Universitário (HU-USP), alunos, residentes e docentes da Escola de Enfermagem da USP (EEUSP).

Na última semana, a chefe da equipe de enfermagem do Centro Obstétrico (CO), que exerce a função há 21 anos, foi transferida para o Setor de Compras, contra sua vontade, pela atual Diretora do Departamento de Enfermagem, Profa Yeda. A manobra foi realizada de forma repentina e justificada como necessária à sobrevivência do HU, mesmo após insatisfação manifestada pela equipe.

No entanto, após dois dias, a Profa Dra Rossana, chefe da Obstetrícia de Ginecologia do HU e também da FMUSP, informou para seus colegas médicos que havia solicitado a mudança há alguns meses com a justificativa de avançar nas questões de humanização do parto.

A enfermeira chefe do CO foi retirada de seu cargo por influência do Departamento Médico, embora estes dois não tenham relação hierárquica alguma. Este manifesto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre esse cenário e compartilhá-la com a comunidade de interesse.

A influência e a força da categoria médica têm sido historicamente uma questão desafiadora para a autonomia da enfermagem obstétrica, não apenas no HU, mas em todo o Brasil. O cenário é consequência de conflitos de interesses por questões culturais, políticas, de espaço profissional e de reserva de mercado.

O Hospital das Clínicas pertence à Faculdade de Medicina da USP, atende predominantemente gestantes de alto risco e tem sua importância reconhecida nacionalmente. Tais características fazem com que seu modelo de gestão seja centrado no médico. A equipe de enfermagem, em sua maioria, tem vínculos de trabalho feitos por fundações e organizações sociais, e assim sofrem as mesmas influências das dinâmicas dos setores privados. A enfermagem é submissa, desvalorizada e assombrada pela instabilidade do emprego. Assim, como a maioria das instituições de saúde, o departamento de enfermagem responde aos interesses da classe médica. Ou seja, a relação não é apenas sobre o papel profissional, mas também sobre o poder.

Já o HU, além de ser uma plataforma de ensino para outras unidades da USP, é o principal campo de ensino teórico-prático e de pesquisa do curso de graduação, residência em enfermagem e pós-graduação da Escola de Enfermagem. Seu Departamento de Enfermagem é próprio, independente e liderado por uma docente da EEUSP desde sua fundação em 1981. E tem seus funcionários concursados vinculados à Universidade de São Paulo.

O HU possui características bastante distintas do HC. Com porte menor, atende gestantes de risco habitual (baixo risco) e possui o selo da Iniciativa Hospital Amigo da Criança desde 2009. Em seu quadro funcional, tem enfermeiras obstetras e residentes de enfermagem obstétrica que atuam na assistência da maioria dos partos naturais. Enquanto os médicos obstetras tendem a adotar um modelo mais medicalizado e intervencionista, muitas vezes necessário, as enfermeiras preferem uma assistência com menos intervenções e mais ênfase na autonomia da mulher durante o parto. Mesmo assim, médicos e enfermeiras do HU tendem a promover uma cultura colaborativa, de respeito mútuo, comunicação aberta e trabalho em equipe.

Além do mais, o conceito de assistência humanizada no parto não se resume apenas a tirar fotos e ter acompanhante. Esse movimento tem forte influência do feminismo, tem suas raízes no final do século XX e é uma resposta às práticas médicas padronizadas que se tornaram comuns no processo de dar à luz, especialmente nos países ocidentais. Ele enfatiza a autonomia da mulher, buscando colocá-la no centro do processo de dar à luz, com respeito às suas escolhas e experiência emocional. Seu conceito tem sido utilizado equivocadamente em alguns contextos na medida em que foi se popularizando.

Historicamente, enfermeiras obstetras têm sido pioneiras na defesa dos direitos das mulheres durante o parto e no desenvolvimento de práticas centradas na mulher e na família. No HU, a enfermagem do CO desempenha um papel crucial na promoção da assistência humanizada durante o parto e o período perinatal. A enfermagem incentiva a movimentação e orienta sobre posições favoráveis durante o trabalho de parto. A enfermagem oferece medidas não farmacológicas para alívio da dor e incentiva o banho como medida de conforto. A enfermagem dá apoio emocional. A enfermagem defende a tomada de decisão consciente pela paciente. A enfermagem coloca os bebês em contato pele a pele, mesmo nas cesáreas. A enfermagem assiste partos em ambiente intimista e em posições que não sejam a litotômica. A enfermagem incentiva a amamentação precoce. Entre muitas outras coisas. O acompanhante não apenas permanece durante toda a internação, como também recebe todo o suporte para possibilitar sua presença, incluindo refeições, banheiro e poltronas reclináveis. Muitas melhorias ainda são necessárias, principalmente as que dependem de alterações na estrutura física e ambiental da unidade. Mas que dependem de iniciativa da gestão e de recursos financeiros.

A enfermeira chefe do CO foi retirada do cargo sob a justificativa de dificultar a humanização da assistência, sendo que todos esses avanços foram feitos durante sua gestão. Este contrassenso nos traz algumas inquietações:

1. Sobre o uso equivocado da palavra humanização.

2. Sobre os altos gestores desconhecerem a realidade da prática. 3. Sobre a perda da autonomia do Departamento de Enfermagem.

4. Sobre o protecionismo velado da hegemonia do modelo biomédico.

5. Sobre a falta de reconhecimento dos esforços já realizados para a assistência humanizada.

6. Sobre tentar resolver problemas estruturais da instituição com soluções atitudinais individuais.

É com pesar que vivenciamos o enfraquecimento da enfermagem obstétrica. Nessa história, não houve vitoriosos. Todos perderam: o HU, o CO, as residentes, os alunos e principalmente as mulheres.

Equipe de enfermagem do Centro Obstétrico do HU-USP São Paulo, 26 de fevereiro de 2024

EXPRESSO ADUSP


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