Universidade
Carlotti usa arrecadação do ICMS para alegar que “não há folga no orçamento” para contratações; déficit de docentes é recorde e chega a 1.039, em relação a 2014
O reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. utilizou os dados de queda da arrecadação do ICMS no ano de 2023 para dizer a “todos os diretores que me abordam diuturnamente que não temos folga no orçamento para falarmos em contratação além daquilo que já combinamos, que são as 876 vagas de professores e em torno de 600 servidores, os 400 [previstos] mais a reposição de 2022”.
O “aviso” foi dado logo na manifestação inicial do reitor na reunião ordinária do Conselho Universitário (Co) da USP realizada nesta terça-feira (22/8).
Carlotti Jr. apresentou números demonstrando que a arrecadação definitiva do ICMS está abaixo do planejado pela Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023 e também abaixo dos totais de 2022, mas desconsiderou que a arrecadação do segundo semestre tende a aumentar, especialmente devido ao fim do desconto da tributação de impostos sobre combustíveis que passou a vigorar a partir de julho.
Até o momento, a arrecadação do ICMS chegou a R$ 80,2 bilhões, quando a previsão da LOA era de R$ 87,6 bilhões, o que significa uma diferença de -8,35%.
O reitor lembrou que a receita do ICMS está caindo desde o ano passado, quando o governo Bolsonaro (PL) limitou a cobrança das alíquotas sobre combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo.
A respeito do tema, o Fórum das Seis já reivindicou uma postura pública dos reitores na cobrança de repasse às universidades da compensação que o Estado recebeu da União por conta dessa limitação. A estimativa do Fórum, que já questionou formalmente o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) a respeito, é que as universidades deixaram de receber cerca de R$ 644 milhões apenas entre agosto de 2022 e janeiro de 2023.
Embora alegue preocupação com a arrecadação, o reitor não fez menção à proposta de Reforma Tributária e aos possíveis impactos sobre o orçamento das universidades, uma vez que, ao que tudo indica, o ICMS será substituído. Carlotti também não relatou o resultado das reuniões que o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) tem feito com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Carlotti Jr. apresenta números inflados pelo pagamento de prêmio e gratificação
Em relação ao comprometimento com a folha de pagamento na USP, Carlotti apresentou números inflados por conta dos pagamentos do “Prêmio de Desempenho Acadêmico Institucional” e da “Gratificação de Valorização, Retenção e Permanência” (GVRP) a docentes e servidore(a)s técnico-administrativo(a)s, os quais totalizaram R$ 199,9 milhões (acima da estimativa inicial da Codage de R$ 197,5 milhões).
Assim, o índice de comprometimento subiu de 68,88% em janeiro para 87,8% em julho. Nos meses de abril, maio, junho e julho, o comprometimento foi maior porque o prêmio e a GVRP foram incluídos na conta — o que contradiz afirmação do próprio reitor ao Jornal da USP, numa entrevista concedida em março: “Os valores propostos vêm de superávits da Universidade e não vão impactar na folha salarial. A folha é o nosso grande mecanismo de controle. Então, esse aporte é único e não terá repercussão na folha — o que impacta na folha é a contratação de servidores e os reajustes salariais”.
Na reunião do Co, Carlotti Jr. mostrou que, mantida a média da arrecadação atual, a Reitoria projeta um comprometimento médio com a folha em 2023, sem considerar o pagamento dos prêmios, de 84,3% — “no limite dos ‘Parâmetros de Sustentabilidade’, temos que respeitar os 85%”, salientou. “Se tivéssemos recebido o que está planejado na LOA, a folha ficaria em 79,8%, e acrescentando os valores dos prêmios iríamos para 82,3%”, apontou.
“Mas nós devemos ficar olhando esses valores para que não tenhamos nenhum risco de passar o que já passamos”, disse o reitor, fazendo uma referência velada à chamada “crise financeira” que, a partir de 2014, justificou medidas como o desmonte do Hospital Universitário (HU) e das creches da USP, a “desvinculação” do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC), os programas de incentivo à demissão (PIDV) e o congelamento das contratações de docentes e funcionários(a)s, cujos reflexos são sentidos agudamente em toda a universidade, além de uma política deliberada de arrocho salarial.
Carlotti Jr. concluiu sua explanação dizendo esperar “uma melhora desses números até o final do ano e o começo do próximo ano para que nós continuemos na nossa política de reposição inflacionária e de reposição de pessoal dos anos anteriores”. Porém, advertiu, “se esse quadro se prolongar ou piorar, vamos ter que tomar algumas providências, mas vamos deixar para o próximo ano”.
Por enquanto, “as contratações permanecem, tanto de professores como de servidores, os concursos permanecem, mas não vamos fazer nenhum outro movimento este ano além do que já estamos fazendo e além de observar esses números”.
“Vale lembrar que os valores pagos com vales e auxílios não deveriam ser contabilizados como gastos com folha de pagamento. Tais valores são de caráter indenizatório, enquanto os gastos com salário são remuneratórios. Ao prestar contas anualmente ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP), a Reitoria utiliza essa distinção, de acordo com o preconizado pelo órgão, incluindo os valores de vales e auxílios como verba de custeio”, diz a presidenta da Adusp, professora Michele Schultz. “Qual a intenção de somar tais gastos na folha? Parece-nos que tentam construir um cenário para justificar uma política de austeridade financeira. Essa maquiagem dos dados compromete qualquer projeção. No âmbito do Cruesp, só a Unesp cumpre o definido pelo TCE-SP na divulgação dos dados com folha de pagamento.”
Subindo ou caindo, arrecadação é argumento para negar benefícios
A fala inicial de Carlotti Jr. só foi rebatida por conselheiro(a)s no final da reunião, quando a palavra foi aberta às manifestações do(a)s representantes das unidades e das categorias.
Reinaldo de Souza, representante do(a)s servidore(a)s técnico-administrativo(a)s, afirmou que os dados trazidos pelo reitor “são números verdadeiros, mas há uma tendência pelo menos parcial de recuperação no segundo semestre”.
“Além disso, há um círculo vicioso nessa discussão, porque no ano passado, na negociação da nossa pauta específica, o cenário econômico era outro, a arrecadação foi maior do que o previsto pela Fazenda e foi negado todo o conjunto da pauta específica com diferentes argumentos”, lembrou. “Ou seja, quando a arrecadação é maior, isso não pode se reverter em conquistas efetivas para os trabalhadores porque vai comprometer o orçamento etc. Quando a arrecadação é menor, aí barra.”
Túlio Ferreira Leite da Silva, representante discente (RD) da pós-graduação, tocou em algumas das feridas provocadas pelo período de quase dez anos de contratações a conta-gotas e precarização do trabalho, citando que aluno(a)s de diferentes cursos preparam uma mobilização contra a falta de docentes e a suspensão de disciplinas.
Alguns casos críticos vêm sendo noticiados pelo Informativo Adusp em unidades como a Escola de Comunicações e Artes (ECA), a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH).
No ano passado, estudantes dos cursos de Pedagogia e Biblioteconomia e Ciência da Informação ocuparam o Bloco Didático da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) para exigir a contratação de professore(a)s.
“Temos alunos que estão deixando de conseguir cumprir o chamado ‘período ideal’ [para a formatura]. Não dá mais para falar nisso com essas dificuldades que temos no oferecimento das disciplinas”, disse Silva, lembrando que o termo “período ideal” consta de regulamentos da própria universidade, como o do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE).
“O que não dá é para os alunos ficarem sem aulas. Isso é um problema endêmico da universidade e precisamos pensar em soluções”, reivindicou,
A publicação de um edital de seleção “por mérito” também foi criticada pelo RD da pós-graduação. “É complicado fazer um sistema daquele. Como definir mérito? O quanto tem de política por trás daquilo? O Co está aderindo a isso e acho muito perigoso.”
Déficit de docentes efetivo(a)s aumenta, “bate recorde” e chega a 1.039
Levantamento da Adusp com base nas folhas de pagamento e no Portal da Transparência da USP demonstra que, mesmo com o início das contratações previstas pela Reitoria — os 876 claros serão distribuídos até o final da gestão, em 2025 —, o déficit de docentes efetivo(a)s da universidade foi agravado e hoje está em 1.039, em relação ao corpo docente existente em setembro de 2014. É um número recorde. O levantamento anterior da Adusp, realizado em abril de 2022, indicou um déficit de 1.000 docentes.
As políticas de desmonte da gestão M.A. Zago-V. Agopyan tiveram início numa reunião do Co de agosto de 2014. Em setembro seguinte, a universidade contava com 5.999 docentes, do(a)s quais “apenas” 65 eram temporário(a)s. Em julho de 2023, o total é de 5.090, sendo 195 temporário(a)s.
O número de temporário(a)s teve um pico em 2021, durante a gestão V. Agopyan-A. Hernandes, com 557 contratações. Já o total de docentes efetivo(a)s vem caindo consistentemente: de 5.934 em 2014 para 4.895 em 2023 — queda de 17,5%.
Os indicadores do Anuário Estatístico da USP de 1995 — quando passou a vigorar a destinação de 9,57% da Quota-Parte do Estado do ICMS para o financiamento das três universidades estaduais paulistas — até 2022 também apontam claras discrepâncias.
A USP ampliou em 79,6% o número de estudantes na graduação; em 49,5% o de estudantes na pós-graduação; e em 109,2% o número de títulos de mestrado e doutorado outorgados por ano. Tudo isso com praticamente o mesmo número de docentes e, ainda, com 14,9% funcionário(a)s a menos: eram 15,1 mil em 1995 e 12,8 mil em 2022. O resultado disso, para docentes e demais servidores(as), é precarização, sobrecarga, assédio e adoecimento.
Não é de espantar que, como disse o próprio Carlotti Jr. na reunião, diretore(a)s de unidade o procurem “diuturnamente” para pedir mais contratações ou, pelo menos, a antecipação daquelas previstas. Também não surpreende que algumas unidades estejam literalmente apelando para soluções como a precarização da precarização: a Congregação da FFLCH, por exemplo, acaba de aprovar resolução que permite que o(a)s professores(a)s seniores (aposentados e aposentadas que permanecem atuando em pesquisa e orientação) assumam carga didática nas áreas carentes da graduação em todos os departamentos. Essa medida já foi adotada em outras unidades, como a EACH, e agrava a precarização do trabalho docente.
Contratações podem ser aceleradas, e distribuição fica a cargo das unidades
O representante da categoria de professores(as) associados(as), Rodrigo Bissacot, fez dois questionamentos a Carlotti Jr. O primeiro era se há um plano da Reitoria para “acelerar as contratações” uma vez que o número de docentes temporário(a)s foi reduzido em muitas unidades. O segundo era se o Programa de Atração e Retenção de Talentos (PART) “foi descontinuado por algum problema jurídico”. (Ilegal, o PART foi objeto de ação judicial da Adusp, que chegou a obter em primeira instância a suspensão do programa, como se relatará adiante.)
Bissacot disse ainda que está preparando “um apanhado de iniciativas, digamos, emergenciais” adotadas pelas outras universidades estaduais paulistas e por instituições do exterior “onde alunos tanto de doutorado quanto de pós-doc possam ter alguma experiência didática”, o que explica a referência ao PART. “Isso entra na conta de não podermos oferecer certos cursos porque não temos professores. Isso acontece no mundo inteiro”, apontou.
Os docentes “reclamam muito que a USP paga muito mal a seus temporários”, acrescentou o conselheiro. “A primeira coisa que a pessoa consegue [fora da universidade], vai embora.”
Bissacot registrou ainda que a categoria que representa pretende convidar o reitor para participar do Encontro de Docentes da USP, programado para o próximo dia 24/10, e quer incluir o tema do assédio na pauta de discussões.
Carlotti Jr. respondeu que as contratações podem ser antecipadas, como no caso da ECA, que já havia recebido 27 claros docentes e receberá mais nove, que estavam previstos para o próximo ano.
As contratações na ECA serão distribuídas por uma comissão formada pela Diretoria, da qual fazem parte todo(a)s o(a)s chefes de departamento. A destinação das vagas será feita por essa comissão, e por isso não se pode prever se o Departamento de Artes Plásticas (CAP), que suspendeu 11 disciplinas deste segundo semestre e tem previsão de outras 11 canceladas no próximo, terá esses e outros problemas resolvidos.
Em relação ao PART, Carlotti disse “achar” que o programa havia sido interrompido por um problema legal, mas comprometeu-se a falar sobre o assunto numa próxima reunião do Co.
O PART aguarda, de fato, uma nova decisão judicial quanto aos questionamentos apresentados pela Adusp. Em janeiro de 2021, a juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti, da 9ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça (TJ-SP), julgou procedente a ação da entidade e, em decisão de junho do mesmo ano, determinou que a USP se abstivesse de promover contratações temporárias de docentes por meio do programa e cancelasse aquelas já efetuadas.
Mesmo assim, em afronta à decisão judicial, a universidade seguiu efetivando contratações pelo PART.
Em fevereiro de 2022, a juíza deferiu a “apelação interposta [pela USP] no efeito suspensivo, relativamente à antecipação dos efeitos da tutela”. Desde então, as contratações pelo PART estão provisoriamente autorizadas. Em maio de 2023, a 1ª Câmara de Direito Público do TJ-SP acolheu recurso da USP e revogou a liminar. A Adusp interpôs recurso extraordinário, que aguarda julgamento.
“Se todo mundo só der oito horas na graduação, vai ser melhor contratar temporário”, diz Carlotti
Ainda na resposta a Bissacot, Carlotti Jr. aproveitou a deixa para reafirmar uma posição que, a pretexto de favorecer critérios didáticos, acaba fomentando a precarização. “Eu sou favorável à presença do aluno de pós-graduação e de pós-doc no ensino de graduação, só que isso não pode ser entendido como substituição de professor. Tem que ser uma atividade formadora do aluno de pós-graduação e de pós-doc”, disse.
“O aluno de pós-doc está aqui em grande parte para ser professor, aí a gente diz que não pode chegar perto de aluno. Como [ele] vai ser professor?”, disse. “Essa é uma opinião pessoal, sei que não é todo mundo que pensa assim”, completou.
O reitor fez ainda uma observação que qualificou como “só um desabafo do reitor”: mencionou “uma coisa interessante”, sobre a qual disse haver conversado na véspera com a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda — que, por sinal, não estava presente na reunião do Co.
O “desabafo” se refere ao suposto fato de que “um docente definitivo, de 40 horas (…) só dá oito horas [de aula] na graduação, porque se entendeu que oito horas não é o mínimo, é o teto agora da graduação”. “Então vai chegar uma hora que vai ser esquisito. Se todo mundo só der oito horas na graduação, vai ser melhor contratar temporário. Não tem sentido isso. O docente de 40 horas tem que ser mais produtivo do que o temporário, senão fica esquisito”, afirmou Carlotti Jr., sinalizando mais um ataque da Reitoria ao Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP).
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