“Até hoje existem coisas debaixo do tapete”, diz professora que presidiu Comissão da Verdade da USP durante reinauguração de Memorial das vítimas da Ditadura Militar
Ana Lanna, Janice Theodoro, Sérgio Adorno e Paulo Vannuchi (foto: Daniel Garcia)

Foi reinaugurado em 9 de dezembro o Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram assassinados pela Ditadura Militar (1964-1985), construído em 2013 na Praça do Relógio, diante do Anfiteatro da USP. Como chovia no horário previsto para a reinauguração (14h), a solenidade foi realizada no “Espaço Integração & Memória”, mantido pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) no Prédio da Reitoria.

A reinauguração atendeu a uma recomendação do Relatório Final da Comissão da Verdade da USP para que fossem acrescentados nove nomes aos 38 que já constavam do Memorial. Composto de placas de concreto, com textos e nomes das vítimas grafados em letras de aço inox, o monumento passou ainda por uma limpeza e pela restauração de letras que haviam caído, segundo o Jornal da USP.

A cerimônia contou com a presença de convidados especiais e a participação de familiares e amigos das vítimas, bem como dos arquitetos responsáveis pela obra e de representantes do Diretório Central dos Estudantes “Alexandre Vannuchi Leme” (DCE-Livre) e da Associação de Moradores do Conjunto Residencial da USP (Amorcrusp).

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Familiares e amigos das vítimas participaram da solenidade de reinauguração

A pró-reitora de Inclusão e Pertencimento, Ana Lúcia Duarte Lanna, anunciou a criação, em 2025, de uma “escola de política pública avançada sobre memória, reparação e justiça”, com financiamento da Fapesp. “Esses são esforços importantes que atualizam os nossos desafios e trajetórias e mantêm presentes os nossos mortos. Enquanto os mortos são lembrados, eles estão vivos. Essa é a nossa tarefa”, afirmou, agradecendo aos convidados por terem se esforçado por entrar “em um prédio tão difícil” (a Reitoria, que foi cercada na gestão Zago-Agopyan — e assim permanece — e tem duplo controle de acesso).

“Na USP provavelmente as vítimas passam de milhares”, diz Paulo Vannuchi

Após relembrar suas passagens como estudante da USP, inicialmente na Faculdade de Medicina (FM) e depois na Escola de Comunicações e Artes (ECA), o jornalista, ex-preso político e ex-ministro Paulo Vannuchi, que esteve à frente da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República de 2005 a 2010 (nos dois primeiros mandatos de Luis Inácio Lula da Silva), disse considerar “programático” o evento de reinauguração do Memorial.

“O que nós estamos fazendo aqui é homenagear dezenas e dezenas de pessoas que foram assassinadas, centenas e centenas que foram perseguidas, prejudicadas, presas. Na USP muito provavelmente as vítimas passam de milhares, se contarmos os presos de Ibiúna, as várias invasões do Crusp. E mais do que essa necessária reparação, é programa, é compromisso, porque mostra que o nosso país ainda não deu o passo necessário, indispensável na construção da democracia. Uma clareza meridiana que nós não tínhamos anos atrás”, destacou, passando a chamar atenção para a conjuntura brasileira nos últimos anos.

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Apresentação da peça “Dora”, no TUSP, integrou a programação

“Agora nós estamos vendo diariamente no noticiário 800 páginas de inquérito [da Polícia Federal, sobre articulações golpistas em 2022]. Nós vimos o 8 de janeiro [de 2023]. Nós vimos quatro anos de uma Presidência da República rodeada de figuras de militares da mais alta graduação, oficiais-generais das três Armas” […]. A seu ver, “o mínimo que se exige, para que o Brasil se alinhe com os países que fizeram efetivamente a transição para uma democracia digna desse nome, é prepararmos — e pessoalmente vamos trabalhar para que seja ainda nesse mandato do Lula — um pronunciamento oficial das mais altas autoridades, um pedido de desculpas, pode ser o presidente da República, mas eu preferia que os três chefes militares fizessem um pronunciamento à nação, dizendo que reconhecem as violações massivas de direitos humanos que houve, marcadamente dos opositores políticos, não apenas, [uma vez que] povos indígenas foram dizimados, violentados, mal tendo noção do que era o Estado brasileiro”.

Ainda segundo o ex-ministro, as Forças Armadas “precisariam promover atos de reparação como este, porque queremos que o Brasil tenha Forças Armadas das quais possamos nos orgulhar, com as quais sentimos uma identificação”.

“Pensamento crítico foi combatido até dentro da própria USP”, lembra Janice

O professor Sérgio Adorno, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), lembrou que a ideia do memorial surgiu em 2008, durante a realização de uma conferência internacional sobre o direito à memória. Constatou-se então a ausência na USP, naquele momento, de “um símbolo publicamente reconhecível que rendesse homenagem às vítimas da ditadura dessa comunidade e que, deste modo, contribuísse para evitar o esquecimento dos trágicos acontecimentos daquele período e se prestasse à educação para os direitos humanos das futuras gerações”.

A professora Janice Theodoro da Silva, da FFLCH, que presidiu a Comissão da Verdade da USP (desativada após 2018), realçou a importância da universidade no contexto do enfrentamento do regime militar (dado o alto número de vítimas fatais entre estudantes e docentes: 47), e por outro lado a força dos apoiadores da Ditadura na instituição. “A USP era considerada um celeiro de pensamento crítico que precisava ser combatido e que, de fato, foi combatido ferozmente até mesmo dentro da própria universidade”, pontuou.

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Monumento recebeu mais 9 nomes e agora faz referência a 47 vítimas fatais da Ditadura Militar

“Essa comissão não obteve praticamente nenhum recurso para realizar o seu trabalho. Foi muito difícil realizar essa investigação dentro da USP”, revelou a docente. “E essa comissão tinha uma característica bastante específica. Muitas das pessoas envolvidas na comissão tinham uma história política. O Erney [Plessmann de Camargo], que era da Medicina, tinha sido perseguido e cassado mais de uma vez. O [Sílvio Roberto de Azevedo] Salinas, que era professor da Física. A Maria Hermínia [Tavares de Almeida], por exemplo, foi uma das pessoas perseguidas, um exemplo de ‘cassação branca’. O Dalmo Dallari, que todos vocês conhecem, foi um lutador incansável pelos direitos humanos. Enfim, cada um à sua maneira tinha um passado comprometido”, o que conferiu ao relatório final, no seu entender, características específicas.

A própria Janice também foi presa política. “Eu por exemplo tinha sido presa pela Operação Bandeirantes [OBAN], depois tinha sido interrogada lá, aliás interrogada por quem interrogou o Luiz Eduardo Merlino, que era meu colega de classe, sentava do meu lado. Sei bem da história do Merlino. Depois fui interrogada no DOPS, isso tudo em 1971. Depois fui cumprir pena no [presídio] Tiradentes. Então são pessoas que de alguma forma estiveram muito envolvidas”, reforçou.

“Quando eu escrevi e fiz todo esse esforço para realizar o relatório, muitas vezes com inúmeras dificuldades em algumas áreas da própria universidade, até hoje existem coisas embaixo do tapete, que precisam ser trazidas à luz, e creio que essa não é uma missão terminada, é uma missão iniciada”, advertiu.

EXPRESSO ADUSP


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