O Marco Legal de CT&I é produto do lobby de grupos acadêmicos associados ao capital privado, bem como do esforço sistemático de setores do “mercado” de se apropriar da infraestrutura pública de pesquisa. É um instrumento destinado a privatizar o sistema público de pesquisa, pois permite “que a já insuficiente estrutura pública de C&T do país — fundamentalmente constituída pelas universidades públicas federais e estaduais e por algumas instituições públicas de pesquisa — seja integralmente apropriada por empresas e interesses privados nacionais e estrangeiros” (Adusp, 27/6/16).

Assim, a nova legislação coloca à disposição de grupos de interesse privados — sejam eles “Organizações Sociais” (OS), fundações ditas “de apoio” (qualificadas ou não como OS), ou empresas — o quadro permanente de funcionários públicos do setor, incentivando a complementação de salários por meio dessa atuação, ao mesmo tempo em que cria um mecanismo de punição dos servidores que decidirem resistir à entrega do patrimônio público.

Graças à nova redação do §6º do Artigo 6º da lei 10.973/2004, cientistas, técnicos e outros servidores públicos estão obrigados a transferir conhecimento ao capital privado, sempre que a instituição pública (“ICT”) celebrar contrato de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação por ela desenvolvida: “Celebrado o contrato de que trata o caput, dirigentes, criadores ou quaisquer outros servidores, empregados ou prestadores de serviços são obrigados a repassar os conhecimentos e informações necessários à sua efetivação, sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal”.

Nada disso impediu que, já na abertura do “Diálogo”, o então presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), José Goldemberg (ex-reitor da USP e ex-secretário nacional de C&T), e o reitor da Unesp, Sandro Valentini, fizessem elogios ao Marco Legal de CT&I. Logo se viu que a “inovação” é apenas um pretexto, pois rapidamente a conversa derivou para o tema “interação com o setor privado” e “receitas alternativas”.

Goldemberg, em cuja gestão reitoral a USP publicou a infame “lista dos improdutivos”, fez questão de lembrar que “aos poucos estabelecemos um sistema aqui no Estado de São Paulo que dá aos pesquisadores liberdade, para não só fazer pesquisas acadêmicas dentro da Universidade, como também interagir de uma maneira significativa com o setor produtivo”. Após destacar a pujança do sistema paulista de C&T graças à vinculação de receitas do Estado, ele foi ao ponto: “O problema é como fazer fluir os recursos de uma maneira que garanta a segurança jurídica”. “E as fundações [privadas] ainda têm dificuldades de caráter legal e isso acaba nas mãos aqui do Tribunal de Contas”.

Na visão cândida de Goldemberg, a privatização do setor público em curso é digna de comemoração, não devendo limitar-se às universidades públicas estaduais, mas enveredar pelos institutos estaduais de pesquisa: “A maior ênfase desse decreto recente [62.817/2017], então, é disciplinar as parcerias dos Institutos de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo com a iniciativa privada. As universidades, por exemplo, permitem que mesmo seus professores que trabalhem em tempo integral sejam autorizados, durante certa carga horária, a trabalharem em conjunto com as instituições privadas. Os institutos de ciência e tecnologia não fizeram isso ainda. Essas leis e decretos abrem caminho para isso, de modo que é um grande passo à frente”.

A universidade, disse por sua vez Valentini, “tem que fazer o seu papel na diversificação de receitas”, “não pode ficar apenas na dependência do Tesouro do Estado”. Em resumo, o modelo de financiamento das universidades públicas é muito sensível à atividade econômica, acrescentou o reitor. “Ou seja, quando nós temos a queda da atividade econômica, temos a queda no recolhimento do ICMS. Isso traz um impacto significativo para os gestores das universidades, é aí que nós precisaríamos ter essas receitas alternativas. Sem dúvida, essas receitas passam pela prestação de serviços, que as universidades fazem muito bem”.

Ele enalteceu expressamente a possibilidade de “estabelecer parcerias com o setor privado com o compartilhamento de infraestrutura e de recursos humanos”. “É exatamente o significado disso que está escrito, que o presidente da Fapesp colocou, nós precisamos encontrar uma compreensão, um entendimento conjunto com o Tribunal de Contas”.

Na sequência da abertura do “Diálogo”, o conselheiro Renato Martins Costa (citado acima), então presidente do TCE, fez um pronunciamento mais cauteloso, advertindo que a nova legislação de CT&I estabelece mudanças que “ampliam o leque de opções da administração na transferência de recursos públicos”, e portanto “geram perspectivas novas” para o tribunal, responsável técnico pelo controle externo, e para o poder legislativo, “titular do controle externo político”.

Órgãos públicos, explicou, poderão contratar “entidades de direito privado sem fins lucrativos [fundações], empresas isoladas ou em consórcios, para a solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador, desde o inventor individual, passando pelo desenvolvimento de startups e tudo que eventualmente se apresente como passível de estudo e desenvolvimento”. Da mesma forma, continuou, o Estado poderá participar de fundos de investimento “ou mesmo em capital social de SPEs, sociedades de propósito específico de inovação tecnológica”.

“Vejam que são papéis bastante distintos da nossa realidade jurídica e principalmente da expertise e da formatação da atuação no controle externo técnico”, enfatizou, em referência à fiscalização exercida pelo tribunal. “Quantas adaptações, quantas reuniões talvez em sequência às que hoje iniciaremos terão de ser empreendidas”.

Também mencionou as fundações privadas, mas advertiu, dirigindo-se ao reitor da USP, que os objetivos dessas entidades podem ser incompatíveis com as novas finalidades que lhes são atribuídas: “Também vejo em relevância o papel das fundações de apoio, já que cabe ao Tribunal uma fiscalização geral das suas atividades. Porém, especificamente dentro da nova formatação do Marco Legal, temos de verificar se haverá compatibilidade entre os objetivos, professor Vahan, que determinaram o estabelecimento dessas fundações e as suas novas e relevantes atribuições nesta área”. (Que diria Costa se soubesse que, não obstante tenham prosperado e até adquirido imóveis dizendo-se “de apoio à USP”, com o passar do tempo algumas fundações privadas alteraram seus estatutos de modo a diluir tal “apoio”?)

A defesa irrestrita do Marco Legal foi retomada por Álvaro Toubes Prata, representante do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), chamado a se manifestar em seguida. Após apontar o Brasil como “um dos países que mais detém conhecimento científico”, exemplificando que na área de medicinas tropicais o país produz “18% do conhecimento gerado do mundo”, Prata declarou ser “inadmissível que este país que está entre as dez [maiores] economias do mundo e que possui conhecimento científico não consegue fazer uso desse conhecimento científico para se tornar mais competitivo, para inovar, para avançar no seu desenvolvimento econômico, e sobretudo no seu desenvolvimento social”.

Feita a declaração de princípios, Prata tratou de explanar sobre as palavras-chave do vocabulário inovacionista, tais como “negócio” e “segurança jurídica”. “Me agrada a palavra montar um negócio, estruturar um negócio que possa a partir do conhecimento científico, a partir do esforço, produzir um novo produto e impactar a sociedade de uma maneira que não era impactada”. Porém, “não é simples inovar”, disse. “Precisamos ter infraestrutura, laboratório, instalações, equipamentos. Precisamos ter recursos financeiros, públicos e privados, ligados a isso. Precisamos ter segurança jurídica, administrativa, política, econômica e social. Quem inova, arrisca. E para que a pessoa possa arriscar ela precisa ter o mínimo de segurança. Se a insegurança é muito grande o empreendedor não vai arriscar”.

Na visão do representante do MCTIC, frente à nova legislação “a política de inovação passa a ser uma prerrogativa de cada instituição, ela precisa estabelecer sua própria política de inovação”. Ele citou um aspecto do qual pouco se tem falado, “a parte da internacionalização, o estímulo à inovação nas empresas, esse é um capítulo [da legislação] particularmente longo que dá uma série de condições para que as empresas possam inovar mais”. Infelizmente não entrou em detalhes, mas o recado é claro: trata-se de “compartilhar” o conhecimento acumulado pelas instituições brasileiras de ensino e pesquisa com o capital estrangeiro.

Chegou, então, o auge da exposição de Prata, aquele momento em que, com sinceridade de estarrecer, ele descreveu o tipo de “coisas incríveis” que o novo Marco Legal de CT&I permite, emendando com as frases anteriores: “Então esse aspecto, junto com o aspecto anterior, permite coisas incríveis como, por exemplo, nós pegarmos um espaço público, chamarmos uma empresa privada para ocupar aquele espaço público fazendo várias coisas, inclusive criando a outra empresa e eu, como entidade pública, posso ser sócio dessa outra empresa criada”.

Como entender o júbilo de um servidor público que celebra a possibilidade de “pegarmos um espaço público e chamarmos uma empresa privada para ocupar aquele espaço público”? De fato, é incrível. Bem, não terminou aí a narrativa desse admirável mundo novo — nem tão novo assim, para quem conhece a realidade de certas unidades da USP dominadas por fundações privadas.

“Se eu sou o reitor da Unesp [exemplificou], eu posso autorizar essa terceira empresa que foi criada, onde a instituição pública é parceira”, prosseguiu o representante do MCTIC. “Claro que há condições, essa parceria deve ser minoritária, mas imagina, um professor pode inclusive cuidar dessa empresa, e pode fazer isso junto com a sua atividade, se ele quiser fazer integralmente, até isso é permitido, pede uma licença e pode fazer isso”. Não é uma maravilha?

Depois dessa entusiasmada exposição, o à época presidente do TCE achou por bem voltar a fazer uso da palavra. Naquele peculiar estilo de “soprar antes de bater” daquela casa, Costa chamou a atenção para os riscos envolvidos no tipo de “negócio incrível” ardorosamente descrito por Prata.

“Professor Álvaro, apesar de a exposição que o senhor fez não constar inicialmente da nossa agenda de trabalhos, eu ousaria dizer que ela foi fundamental, ela foi importantíssima para situar todo o espectro que será debatido a seguir”, disse Renato Martins Costa.

“Desde logo, até pela complexidade dos aspectos envolvidos, eu realço que não obstante o papel do controle externo seja importantíssimo, tenha seus contornos estabelecidos na Constituição e nas leis, me parece que, pelas peculiaridades das questões envolvidas, se não houver um controle interno em relação à entrega desses recursos e a checagem dos resultados, e a verificação da pertinência do emprego de um dinheiro que é público, por parte da universidade e dos seus organismos, fatalmente nós teremos problemas”.

Esta passagem merece um breve comentário, afinal de contas o debate nem começara ainda e o presidente do tribunal viu-se impelido a lançar um sinal de alerta: “se não houver um controle interno [das universidades], fatalmente teremos problemas”. Apesar da polidez britânica com que foi enunciada, a advertência é clara: não será permitida a “farra do boi” com recursos públicos. Mas será que foi entendida?

Iniciado o primeiro painel (“Tramitação de convênios, gestão e execução de recursos”), a exposição do mediador, procurador do Estado Fábio Augusto Daher Montes, seguiu a mesma linha deslumbrada, superficial de Prata. Para ele, o Marco Legal de CT&I “veio a calhar porque tem muitos instrumentos e parcerias com a iniciativa privada que podem fomentar o desenvolvimento”, “os pesquisadores públicos vão ter um grande ganho tanto porque vão poder participar tanto recebendo royalties do resultado da pesquisa, quanto bolsa na efetivação da própria pesquisa”.

Em resumo: “No momento em que também todo mundo pressiona por salários e não tem dinheiro para dar esses reajustes, eu acho que é bem importante agora termos instrumentos específicos para essa área para fazer isso, ou seja, estamos respaldado para ter um aumento via parcerias com a iniciativa privada”. Enfim: “É uma coisa supernova. Todo mundo que está acostumado com Direito Administrativo aqui não está acostumado, quem é da área, se fala para alguém de fora nem acredita que tem isso, então a gente tem uma responsabilidade muito grande de fazer isso dar certo” (destaque nosso). Não seria de se pensar que, se há quem “nem acredita”, é porque há algo de errado na nova legislação? (Próxima matéria da série:Maria Paula Dallari Bucci propõe ‘autocontrole’ e defende fundações ‘de apoio’ e cursos pagos”)

EXPRESSO ADUSP


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