Defesa do Ensino Público
“Temos que dizer ‘não’ ao Future-se”, e comunidade acadêmica precisará lutar para recompor orçamento da educação, defende secretária-geral do Andes-SN
Projeto lançado pelo MEC em julho representa a privatização por dentro da educação superior pública no Brasil, com o incentivo às parcerias público-privadas, a gestão realizada por organização social, o fim da autonomia universitária, a subordinação da produção do conhecimento aos interesses do mercado e a desresponsabilização do Estado com as universidades, avaliou a professora Eblin Farage (UFF) em debate promovido pela Adusp
O projeto “Future-se” — lançado pelo governo em julho e que tem entre seus pilares o fomento à captação de recursos próprios e a autorização para que as universidades federais façam contratos com Organizações Sociais (OS) — deve ser rejeitado integralmente pela comunidade acadêmica. A posição foi defendida pela secretária-geral do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Eblin Farage, em debate organizado pela Adusp na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) no dia 22/8. O vídeo com a íntegra do debate está disponível aqui.
“Temos que dizer não ao ‘Future-se’ no seu conjunto. Não há o que negociar. O que temos que exigir é uma imediata recomposição do orçamento público das universidades”, afirmou. “Para nós não há alternativa que não seja o investimento público em educação pública, e existe verba para isso. É necessário que sejamos capazes de fazer esse enfrentamento e essa exigência ao governo.”
Professora do curso de Serviço Social na Universidade Federal Fluminense (UFF), Eblin situou o “Future-se” no quadro mais amplo da mercantilização e do crescente “empresariamento” da educação e da sua adaptação, no Brasil e na América Latina, aos padrões preconizados por organizações internacionais.
Foto: ADUFF |
Eblin Farage, secretária-geral do Andes-SN |
O “Future-se”, considera Eblin, é um dos projetos de contrarreforma do Estado que vêm sendo colocados em prática nos últimos anos, como as contrarreformas trabalhista e previdenciária, e vai servir de base para programas semelhantes na área da educação nos estados e municípios.
De acordo com a avaliação do Andes-SN, o “Future-se” representa a privatização por dentro da educação superior pública no Brasil, com o incentivo às parcerias público-privadas, a gestão realizada por OS, o fim da autonomia universitária, a apropriação privada do fundo público por meio dos fundos de investimento, a subordinação da produção do conhecimento aos interesses do mercado e a desresponsabilização do Estado com o ensino superior público.
“Para ser implantado, o ‘Future-se’ precisa alterar 17 leis federais. Não é pouca coisa”, diz Eblin. Entre elas, estão a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a Lei 12.772/2012, que trata da carreira do magistério superior. O projeto mexe também na Lei 12.550/2011, que trata da criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), para permitir o atendimento dos planos privados nos hospitais universitários.
O texto está em consulta pública na Internet até a próxima quinta-feira (29/8). O Andes-SN indica que as entidades não participem da consulta, “porque ela é uma maneira de legitimar o governo”. “Não há como dialogar com aquele documento, e o governo pode falar que a consulta deu o que ele quiser”, ressalta a secretária-geral.
Servidores técnico-administrativos não são citados no projeto
O Andes-SN analisa o “Future-se” a partir de quatro eixos. O primeiro é o da gestão institucional, com a entrada das OS e o ataque à autonomia universitária, determinada pelo artigo 207 da Constituição Federal. Uma diferença em relação ao quadro atual, segundo Eblin, é que as fundações ditas “de apoio” que já atuam nas universidades não têm autonomia na gestão, enquanto as OS terão.
No segundo eixo, o da gestão de pessoal, o projeto permite a contratação de pessoal pelas OS, em lugar dos concursos públicos, além de implantar a lógica do “professor empreendedor”. Um ponto crucial, ressalta Eblin, é que os servidores técnico-administrativos sequer são citados no texto, o que abre a porta para a terceirização.
Entre as consequências apontadas nesse eixo estão a competição entre os docentes, o esvaziamento do Regime Jurídico Único da União (RJU) e a intensificação do processo de desestruturação da carreira docente, com quebra da dedicação exclusiva, subordinação de professores e funcionários às OS e o fim do tripé ensino, pesquisa e extensão.
Figura entre as consequências apontadas no terceiro eixo, o da formação, a produção do conhecimento pautada pelos interesses da iniciativa privada, com imposição da lógica empresarial na formação dos alunos. No quarto eixo, o de acesso e permanência de estudantes, o projeto trabalha pela invisibilidade de negros e negras, quilombolas, indígenas, mulheres e população LGBT. Como consequência, avalia a entidade, será ampliada a competição entre os alunos e o acesso a bolsas em troca de serviços.
“Reitores vão tentar se adaptar e negociar uma coisa ou outra”
Várias universidades já anunciaram a recusa ao projeto — em julho, na cerimônia de apresentação, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que a adesão separaria “o joio do trigo” entre as instituições. Mas há uma armadilha, alertou Eblin. Em algumas delas, o conselho universitário lançou uma nota de repúdio, mas ainda não fez a votação sobre adesão ou não.
“Tem muita água para rolar ainda. Infelizmente não temos grandes expectativas de que os reitores vão estar de braços dados com a gente sendo contra o projeto. Eles vão tentar se adaptar por dentro e tentar negociar uma coisa ou outra. Por isso a nossa mobilização é com a comunidade acadêmica, com os professores e os alunos e em diálogo com a sociedade”, avalia. “Em especial num quadro em que pelo menos seis gestores foram indicados pelo governo à revelia da comunidade acadêmica, o que podemos esperar que esses reitores vão fazer? A nossa orientação é pressionar os conselhos universitários.”
A secretária-geral do Andes-SN sustenta que é um mito o suposto investimento de empresas na educação superior pública, como propalado no “Future-se”. “Eu tenho brincado: o professor vai disputar um patrocínio com a rede de supermercados ou de restaurantes da cidade. Não é nada que possa sustentar a educação pública”, afirma. “Quem vai investir no [curso de] Serviço Social? Vamos ter igreja evangélica querendo investir. É muito pior do que a gente pensa.”
“Não haverá investimento empresarial, e nós vamos destruindo a universidade por dentro, acabando com a livre produção do conhecimento e condicionando a nossa produção científica e a relação didático-pedagógica aos interesses da padaria da esquina. Isso é o mais grave”, continua Eblin. “De fato o projeto é um salto ao passado, um projeto de recolonização, porque é a total subordinação e destruição do que temos hoje no ensino superior público, como a carreira docente pública e o tripé ensino, pesquisa e extensão.”
A secretária-geral reconhece que a reação da comunidade acadêmica e dos setores sociais que se opõem ao projeto tem estado muito aquém do que seria necessário — “mas este é o momento histórico que estamos vivendo”, reconhece. “Tivemos uma mobilização fortíssima pela educação no mês de maio, mas o último ato [#13A] já não foi como os outros. Temos que romper com essa apatia e avançar em algum projeto que nos interesse.” Uma das oportunidades para fazer esse debate e essa disputa, cita Eblin, será o caminho que o “Future-se” terá que percorrer no Congresso Nacional, inclusive por conta das alterações exigidas em várias outras leis.
Assista aqui ao vídeo editado com a avaliação de Eblin Farage sobre o “Future-se”. (O Andes-SN acaba de publicar um material com 20 motivos para rejeitar o “Future-se”. Confira aqui.)
“Estamos voltando para a Idade Média”, diz Otaviano Helene
“O ‘Future-se’ é totalmente inaceitável e tem que ser combatido”, concorda o professor Otaviano Helene, docente do Instituto de Física da USP e ex-presidente da Adusp. No debate, Helene ressaltou que a pressão do governo para adesão ao projeto tem sido feita na forma de uma chantagem. “Os números falam em dezenas de bilhões de reais que saem das universidades com o ‘contingenciamento’ e só retornarão se a instituição aderir. Ou você adere ou fica sem limpeza, sem água, sem luz e é obrigado a fechar. Isso não é adesão, é chantagem”, definiu.
Helene contestou a visão propagandeada pelo ministro da Educação de que as universidades terão grandes fundos patrimoniais a partir da interação com as empresas. “São poucas as universidades norte-americanas que têm fundos patrimoniais significativos, e o projeto cita algumas delas. São dez ou quinze, reunindo um percentual muito pequeno do total de cerca de 20 milhões de alunos do país”, disse.
O docente lembrou que os fundos não existem como regra internacional, mas são presentes basicamente no mundo anglo-saxão — não em todo ele e não em todas as instituições, ressaltou. Nos Estados Unidos, 75% das matrículas no ensino superior são públicas, e o mesmo ocorre na maior parte do mundo. “Temos extremos em que, de um lado, os cursos são pagos e, de outro, não apenas são gratuitos como os alunos recebem para estudar. Mas o ‘meião’ é público e gratuito”, esclareceu.
Na avaliação de Helene, muitos docentes acham que com com as parcerias propostas pelo projeto vai entrar dinheiro na universidade. “Não vai entrar. O que as empresas querem é fazer negócio com a universidade, e não financiá-la. Em qualquer interação com o setor privado nós vamos sair perdendo e eles ganhando”, disse. “No governo Temer tínhamos a ‘Ponte para o Futuro’ e agora o ‘Future-se’. De futuro em futuro estamos voltando para a Idade Média.”
USP já aplica ideias da “privatização por dentro”
O presidente da Adusp, professor Rodrigo Ricupero, relacionou as propostas do “Future-se” ao “processo de privatização da universidade por dentro” que já ocorre na USP com exemplos como a reforma do Estatuto do Docente e a recente permissão para compartilhamento dos laboratórios da universidade com empresas privadas. O caso mais emblemático foi o projeto “USP do Futuro”, desenvolvido na gestão do reitor M. A. Zago (2014-2018) em parceria com a consultoria McKinsey&Company.
As conexões desse processo com a atual gestão do governo estadual são claras: a responsável pelo projeto na consultoria, Patrícia Ellen, tornou-se a secretária estadual de Desenvolvimento Econômico, à qual estão subordinadas as universidades públicas estaduais. Também ligados ao projeto, o professor Américo Sakamoto, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), e o chefe de gabinete da Reitoria na gestão Zago, Thiago Liporaci, são agora, respectivamente, secretário-executivo e chefe de gabinete da secretaria estadual.
“No fundo essa ênfase no empreendedorismo, inovação e startups é a tônica do projeto ‘USP do Futuro’ e se casa completamente com o [governo] Doria. Com isso vai-se impondo a ideia do professor empreendedor e do professor captador de recursos. Os docentes não vão mais ser avaliados pelos papers, mas por captação de recursos, por startups, royalties, patentes, inovação etc.”, disse Ricupero.
Uma diferença entre o “Future-se” e o que já ocorre na USP está na relação das fundações privadas com a universidade, apontou o presidente da Adusp. “Na USP atuam 33 fundações privadas. Como vai entrar uma OS aqui?”, perguntou.
O presidente da Adusp registrou também que na atualidade cada vez mais a pesquisa e a tradução, submissão e publicação de artigos têm sido pagas “pela vaquinha produtivista”. “Quem financia a pesquisa e a participação em eventos? Mesmo o acesso às agências de fomento não resolve a questão totalmente. No fundo quem está financiando a universidade, a pesquisa e as publicações somos nós, com nosso salário cada vez menor”, afirmou. “E com um detalhe: se não fizermos isso, quando chegar a avaliação e não tivermos as publicações, nós é que seremos penalizados. Essa é a triste situação que a gente está passando.”
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