Sob a alegação de que precisa cumprir as determinações da Lei Complementar (LC) 173/2020, a Reitoria está se recusando a contratar docentes aprovados em concursos de ingresso já devidamente homologados. Da mesma forma, não está efetivando promoções na carreira docente obtidas antes do advento dessa legislação. Com a finalidade de aplicar essa norma federal na USP, a Reitoria editou a Resolução 7.955/2020, que vem sendo usada para bloquear nomeações e progressões mesmo quando anteriores à LC 173.

Diversas denúncias a respeito de casos desse tipo chegaram à Adusp nas últimas semanas. Exemplo significativo é o de um professor que prestou concurso na Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP) e, uma vez aprovado, foi devidamente convocado pelo Departamento de Recursos Humanos (DRH). “Em novembro de 2019 realizei concurso para docente na EEFERP e fui aprovado — a homologação saiu em dezembro e a convocação pelo DRH em 9/1/2020. Desde então recebi alguns e-mails informando que minha documentação andou, mas não cheguei a ser nomeado. Veio a crise relacionada ao coronavírus e ontem fui informado pelo diretor da unidade que meu concurso está suspenso até 31/12/2021, seguindo o decreto federal”.

Estima-se que nas unidades do câmpus de Ribeirão Preto há pelo menos outros vinte docentes na mesma situação. Porém, sabe-se de um concurso realizado na mesma época, em outra unidade, no qual a nomeação para o respectivo cargo ocorreu em março de 2020 e foi publicada. O caso do docente concursado na EEFERP é especialmente grave porque ele foi orientado pelo DRH da USP a desligar-se dos empregos que tinha, e assim o fez, de modo que agora perdeu suas fontes de renda e não consegue ser nomeado na USP.

No Instituto de Química (IQ), um docente aprovado em concurso público para preencher um claro de Professor Doutor, homologado em 13/12/2019, e que pedira à unidade que a posse fosse postergada até julho de 2020 pois realizaria estágio de pós-doutorado no exterior até junho, surpreendeu-se ao saber da Circular SG/Co/38, que traz orientações da Procuradoria Geral (PG-USP) a respeito da LC 173/2020. “Estava pronto para dar prosseguimento aos trâmites de contratação, quando essa circular da Reitoria chegou ao meu conhecimento”, explica o professor.

Por outro lado, na reunião virtual de 23/6 do Conselho Universitário foi relatado que deixou de ser homologada a aprovação de pelo menos 30 concursos de livre-docência “e ainda não se sabe como vai se proceder”, segundo o representante dos associados, professor Marcílio Alves. Nos próximos dias, o Departamento Jurídico da Adusp ajuizará ação civil com a finalidade de garantir o direito à progressão funcional dos novos livres-docentes, bem como a contratação de docentes aprovados em concursos de ingresso já realizados e homologados.

PG-USP e seus “esclarecimentos” que pouco esclarecem

Frente às reclamações, a PG-USP elaborou um documento em dez tópicos, num esquema de “perguntas e respostas” em que procura esclarecer as principais dúvidas relacionadas à legislação proibicionista baixada pelo governo Bolsonaro a pretexto de combater a Covid-19. Trata-se do “FAQ sobre a Lei Complementar 173/2020”, anexado à citada Circular SG/Co/38, citada pelo docente concursado no IQ. No entanto, ele tem muitas lacunas, sob a desculpa de que, por ser muito recente a legislação e por “se utilizar, por vezes, de expressões amplas, ainda não há interpretação consolidada dos órgãos de controle externo sobre a matéria versada”.

De acordo com a PG-USP, as principais restrições estão elencadas no artigo 8º da LC 173/2020 e “dizem respeito a (i) conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a servidores e empregados públicos; (ii) criar cargo, emprego ou função, ou alterar estrutura de carreira aumentando despesas; (iii) contagem de tempo para efeitos de obtenção de quinquênios, sextas-partes e licenças-prêmio; (iv) admissão de pessoal e realização de concursos públicos, com as delimitações e exceções ali previstas”.

Conforme o item 2 do documento, a LC 173 impede também a continuidade dos concursos para Professor Doutor e para Professor Titular abertos antes da publicação da Lei: “Não há exceção específica para concursos já iniciados, motivo pelo qual, em atendimento à LC nº 173/2020, a Resolução USP 7.955/2020, em seu artigo 4º, determinou que ‘fica suspensa de 28 de maio de 2020 a 31 de dezembro de 2021 a realização de concursos públicos para o provimento dos cargos de Professor Doutor e de Professor Titular’”.

Porém, no tocante à questão da nomeação “de candidatos já aprovados em concursos para Professor Doutor e para Professor Titular que tenham tido o relatório final da Comissão Julgadora homologado pela Congregação antes da publicação da Lei”, bem como a de “candidatos já nomeados, que só tenham pendentes a realização de exames e a entrega de documentos”, ambas previstas no tópico 6 do documento, a posição da PG-USP é titubeante.

“Em ambos os casos, infelizmente, entende-se, por ora, não ser possível proceder à posse. O processo de investidura no cargo público só termina com a assinatura do termo de posse e o início do exercício. Assim, como a lei veda não apenas a realização de concursos, mas também a admissão de pessoal até 31/12/2021, não parece ser possível dar continuidade ao processo de admissão dos aprovados, nem mesmo daqueles já nomeados, durante esse período”, diz o documento, para em seguida fazer uma ressalva: “Contudo, a Procuradoria Geral da Universidade está atenta aos desenvolvimentos interpretativos dos órgãos federais, estaduais — notadamente da PGE-SP, do Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas e do Ministério Público —, bem como das nossas universidades coirmãs”.

Em outras palavras, a PG-USP não consegue ter uma posição a respeito! A mesma situação se repete no tópico seguinte. À pergunta, formulada no próprio documento, “Os candidatos já indicados e os eventualmente já nomeados para Professor Doutor ou para Professor Titular poderão ser empossados a partir de 1/1/2022? O processo de admissão deles será retomado ou perderá a validade?”, ela responde novamente de maneira vaga, em verdadeira tergiversação: “Assim como referido no item anterior, a Procuradoria da Universidade está atenta aos desenvolvimentos interpretativos sobre a questão”. Mas ainda acrescenta, do modo quase absurdo, na medida em que remete a solução do problema para daqui a um ano e meio: “Não obstante, em qualquer hipótese, não haverá óbice a que o processo de admissão dessas pessoas seja retomado a partir de 1/1/2022”.

Para PG, “não é possível” aplicar exceção para vacâncias na USP

Outra intrigante interpretação da PG-USP pode ser encontrada no tópico 8 do documento, que trata exatamente das questões levantadas pelo docente concursado no IQ. À pergunta “A LC 173/2020 abre exceção para a realização de concurso e admissão de pessoal em casos de reposição de vacância?”, responde-se claramente: “Sim, tanto o inciso IV quanto o inciso V do artigo 8º da LC 173/2020 admitem a mesma exceção, a saber: a possibilidade de realizar concurso e admitir pessoal para “as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios”.

Parece simples, porém a partir daí as coisas se complicam: “Ocorre que os cargos docentes da USP, tal como criados pela lei estadual 11.164/2002, Lei Complementar estadual 1.009/2007 e lei estadual 14.782/2012, não foram pré-vinculados pelo legislador a determinada Unidade, retornando sempre à Parte Geral (PG) do Quadro de Pessoal Docente da USP quando da sua vacância”, diz o documento.

Nesse momento, o grau de formalismo da PG-USP chega ao auge: “A redistribuição às diferentes unidades tem obedecido a critérios acadêmicos variados, razão pela qual é questionável se seria possível, nesse contexto, rastrear vacância pretérita aos cargos concedidos”. A conclusão não poderia ser outra: “Até o momento, vige o entendimento de que não é possível nos valermos dessa exceção legal. Contudo, como referido anteriormente, a Procuradoria da Universidade está atenta aos desenvolvimentos interpretativos sobre a questão”.

Quanto aos concursos de livre-docência, considera a PG-USP que eles “não são propriamente concursos públicos no sentido vedado pela lei”, porque não se trata de concorrência entre competidores na qual o primeiro colocado é investido em um cargo público. “Trata-se, antes, de processos de obtenção de título acadêmico, ausente o elemento de disputa por um cargo. Assim, a realização dos ‘concursos’ de livre-docência não está vedada pelo artigo 8º, inciso V, da LC 173/2020”. Porém, continua, uma vez que o Professor Doutor que obtém o título de Livre-Docente passa à categoria de Professor Associado, “esta passagem, por sua vez, pelo que comporta de aumento de despesa, está vedada temporariamente por força do artigo 8º, inciso I, da LC nº 173/2020”.

Por essa razão, explica, o Conselho Universitário aprovou a suspensão dos artigos 84 do Estatuto da USP e 124 do Regimento Geral até 31.12.2020. “Assim, os concursos de livre-docência poderão prosseguir para que, ao final, os títulos sejam concedidos, sem que, para os candidatos Professores Doutores, isso implique na progressão funcional para Professor Associado, vedada temporariamente pela legislação”.

LC 173 não veda progressões e promoções, diz análise do governo federal

O entendimento da PG-USP para os casos descritos acima é contraditório com análises de setores do próprio governo federal. Assim, a Nota Técnica SEI 20.581/2020, elaborada pelo Departamento de Carreiras e Desenvolvimento de Pessoas da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal (Desen-SGP), pertencente à Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, interpreta de forma diferente alguns dispositivos da LC 173/2020.

Assim, no tocante às proibições estabelecidas no artigo 8º inciso I dessa lei (conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração), após observar que “são excepcionalizadas duas situações: a. quando derivado de sentença judicial transitada em julgado; ou b. quando derivado de determinação legal anterior à calamidade pública”, a nota técnica assinala: “Em relação ao item “b” acima, entende-se que qualquer concessão derivada de determinação legal anterior à calamidade pública, desde que não seja alcançada pelos demais incisos do art. 8º, podem ser implantadas [sic], ainda que impliquem aumento de despesa com pessoal. Encontra-se no rol dessas concessões, por exemplo, a concessão de retribuição por titulação, o incentivo à qualificação e a gratificação por qualificação, visto que os critérios para a sua concessão estão relacionados à comprovação de certificação ou titulação ou, ainda, ao cumprimento de requisitos técnicofuncionais, acadêmicos e organizacionais” (destaques nossos).

Prossegue: “Entende-se, ainda, que essas concessões não se enquadram no inciso VII do art. 8º (criar despesa obrigatória de caráter continuado), pois trata-se apenas da implantação de despesa prevista em Lei anterior à calamidade, e não de sua criação, e, também, não se enquadram no inciso VIII (adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação), ainda que o valor individual a ser percebido supere a inflação do período, considerando que a despesa global não alcançará esse limite” (destaques nossos).

Diz ainda esse documento que, ao analisar-se conjuntamente o disposto no inciso I e no inciso IX do artigo 8º da LC 173, “entende-se que as progressões e promoções, por exemplo, não se enquadram na vedação apresentada em tais dispositivos, uma vez que tratam-se de formas de desenvolvimento nas diversas carreiras amparadas em leis anteriores e que são concedidas a partir de critérios estabelecidos em regulamentos específicos que envolvem, além do transcurso de tempo, resultado satisfatório em processo de avaliação de desempenho e em obtenção de títulos acadêmicos” (destaques nossos). E reforça: “Conclui-se, portanto, que para essa situação, tal vedação não se aplica”.

EXPRESSO ADUSP


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