Entidades como o Núcleo de Consciência Negra (NCN) da USP estão divulgando desde o último dia 4/6 um abaixo-assinado em apoio ao estudante Bruno Santos Silva, aluno do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e alvo de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) aberto na unidade em maio por conta de ocorrências registradas na realização do evento de slam “Batalha da USP” no dia 14/3. O abaixo-assinado reivindica que “as acusações individuais contra Bruno sejam retiradas e que a USP garanta o direito de seus estudantes de realizarem eventos culturais que tragam suas próprias vivências e realidades para nossos campi”.

De acordo com o PAD, se confirmadas “as infrações a ele atribuídas”, Bruno teria “com a sua conduta infringido o disposto no artigo 250, incisos IV e VII, do Decreto no. 52.906/1972, antigo Regimento Geral, vigente por força do disposto no artigo 4o. das Disposições Transitórias do Regimento Geral da USP, bem como ao que diz o artigo 4o., inciso II, do Código de Ética da USP, o que pode levar a sua eliminação do corpo discente da Universidade de São Paulo, de acordo com o artigo 249, inciso IV, do Decreto no. 52.906/1972”. A comissão processante tem prazo de 90 dias para concluir os trabalhos.

O decreto no qual o procedimento se baseia, recorde-se, é um dispositivo legal anacrônico que remonta ao período da Ditadura Militar e que, mais de 50 anos depois de sua edição, ainda é utilizado como “regime disciplinar” pela USP, incapaz até o momento de construir protocolos alicerçados em princípios democráticos.

A última tentativa de gerar um código do tipo foi o malfadado “Estatuto de Conformidade de Condutas”, iniciativa da gestão V. Agopyan-A.C. Hernandes. A proposta mantinha um viés fortemente autoritário e foi tão mal recebida pela comunidade que acabou abandonada pela própria Reitoria.

Na edição da “Batalha da USP” realizada em 14/3, teria ocorrido “ato atentatório à moral e aos bons costumes”. O evento também teria “perturbado” os trabalhos escolares e a administração da universidade, em meio a uma semana em que ocorriam diversas outras atividades, como aquelas relacionadas à recepção do(a)s aluno(a)s.

O texto do abaixo-assinado afirma que a instauração do PAD configura “uma absurda perseguição política e uma patente discriminação social velada” por visar “um encontro de poetas e artistas do ‘hip hop’ que busca trazer a cultura periférica para dentro dos muros da universidade, que tanto precisa de iniciativas como essa para o aumento da diversidade no seu corpo discente”.

“Entendemos que o ataque sofrido por Bruno não é apenas individual, mas sim a esse projeto que permite o acesso de uma cultura ainda pouco representada na USP. A quem interessa que nossa Universidade não abra suas portas para a periferia e para a cultura preta? Cabe expulsar um aluno por promover cultura?”, prossegue o texto.

Os slams são definidos pela professora Cynthia Agra de Brito Neves, docente do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, como “um novo fenômeno de poesia oral e performática”: são “competições ou batalhas de poesias que dão vez e voz a poetas da periferia, os quais versam sobre as adversidades do seu cotidiano, abordando temas como racismo, violência, drogas, machismo, sexismo, sempre de teor crítico e engajado, que requerem a escuta, a reflexão e a politização do seu público-ouvinte”.

Evento foi realizado sem autorização, diz Direção da unidade

Em nota divulgada à comunidade no dia 11/6, o professor Ricardo Uvinha e a professora Fabiana Evangelista, diretor e vice-diretora da unidade, dizem que “a ‘Batalha da USP’ vem sendo realizada quinzenalmente no nosso campus sem qualquer autorização da Direção da EACH e da Prefeitura do Campus” e que vêm tentando “dialogar com os participantes”.

“Assim como os inúmeros eventos que acontecem cotidianamente na EACH, há um conjunto de regras e procedimentos básicos que devem ser respeitados em prol da segurança da nossa comunidade interna e externa, da gestão adequada dos espaços e do melhor funcionamento das atividades de diferentes naturezas na EACH sem que uma prejudique a outra”, diz o texto.

A pedido do Informativo Adusp, o diretor e a vice-diretora enviaram uma nota na qual afirmam que “a realização de eventos na Unidade envolvendo a comunidade interna e a externa sempre foi valorizada, incentivada e acolhida pela Direção da EACH”.

O diretor e a vice-diretora reiteram que “todos os eventos realizados na Unidade seguem o mesmo rito de tramitação, independente da natureza do evento, com entrega de projeto pelo responsável, avaliação pelas instâncias competentes e, finalmente, a autorização para a realização”. “Procuramos fazer tal procedimento sempre de forma organizada, pois somos uma comunidade interna de quase 6 mil pessoas e temos a responsabilidade de manter a segurança de todos e do patrimônio público”, diz a nota enviada à reportagem.

No caso da “Batalha da USP”, prossegue a manifestação, “o aluno comunicou a Direção na sexta-feira 10/03/23 que realizaria o evento na terça-feira 14/03/23, durante a Semana de Recepção dos Calouros”. “Informamos ao aluno que a programação da Semana já estava planejada pelo Grupo de Trabalho que se debruçou por mais de dois meses na preparação. O aluno também foi informado que a atividade não poderia ser realizada no dia 14/03/23, mas que ele poderia encaminhar novamente o pedido para uma data posterior pois assim teríamos tempo hábil para avaliar e autorizar. No entanto, à revelia, o aluno e a comunidade externa foram à EACH e realizaram a Batalha.”

“Novamente, o aluno foi orientado para encaminhar o projeto, tanto via e-mail quanto presencialmente, em reunião realizada com a Direção. Informamos mais uma vez que, enquanto o projeto não fosse aprovado, a atividade não estava autorizada. A primeira versão do projeto foi entregue apenas no dia 27/04/23. O projeto foi enviado para o parecerista, e no dia 17/05/23, o aluno recebeu o parecer com solicitação de complemento de informações no projeto (sequer tinha a identificação dos organizadores do evento, público estimado, entre outras). Somente no dia 12/06/23, após o PAD ser instalado, que o aluno enviou a segunda versão do projeto com as respostas solicitadas pelo parecerista. Na sequência, o parecerista reavaliou o projeto em menos de 24 horas, e no dia 13/06/23 já foi aprovado oficialmente pela Direção”, continua a comunicado.

De acordo com o diretor e a vice-diretora, “desde o primeiro momento, a Direção da EACH entendeu que a proposta da Batalha seria muito importante para a comunidade, e prova disso, foi que solicitamos e orientamos o aluno para que fizesse o caminho institucional de oficialização do evento na EACH. Assim como todos os outros projetos que são realizados de forma institucional, a realização do mesmo somente é autorizada após a aprovação do projeto”.

“Ocorre que a Batalha continuou a ser realizada, num primeiro momento sem sequer a identificação dos responsáveis e, posteriormente, sem a aprovação do projeto, mesmo o aluno sendo informado por diversas vezes. Diante dos fatos e da consulta feita à Procuradoria Geral da USP, nos foi recomendado a instalação do PAD”, prosseguem.

Assim como na nota divulgada à comunidade no dia 11/6, Ricardo Uvinha e Fabiana Evangelista afirmam na resposta enviada ao Informativo Adusp que “em seus mais de 18 anos a EACH mantém uma longa tradição na realização de eventos com a participação da comunidade externa” e que desde o início de sua gestão na Direção da EACH têm “apoiado a realização de diversas atividades culturais protagonizadas por estudantes, professores e funcionários, fato que pode ser facilmente constatado nas inúmeras iniciativas devidamente registradas e disponíveis na nossa seção de eventos”, com “o compromisso do diálogo, da transparência e da valorização dos direitos humanos e da diversidade” (leia aqui a íntegra da manifestação).

É preciso revogar dispositivos criados pela Ditadura Militar, defende presidenta da Adusp

Reportagem publicada pelo Jornal da USP no último dia 29/3 – depois, portanto, da realização do evento que levou à instauração do PAD – aborda o movimento Bloco na Rua, criado por estudantes universitário(a)s de todo o Brasil e do qual fazem parte atividades como o “Slam Marginal” e a “Batalha da USP”.

Integrante do movimento, Bruno Santos afirmou à publicação que o projeto tem o objetivo de fortalecer a cultura hip hop e periférica na comunidade acadêmica. “É uma forma de conectar os alunos aos movimentos de resistência e fazer com que seja uma luta construída de forma coletiva, tendo em vista a defesa de pautas importantes como a ampliação dos espaços estudantis e as políticas de permanência”, disse.

O estudante foi procurado por meio de aplicativo de mensagens pelo Informativo Adusp, mas não retornou o contato.

A presidenta da Adusp, professora Michele Schultz, defende que deve ser revogada a vigência na USP de dispositivos como o Decreto no. 52.906/1972 e de quaisquer outros que remontem à Ditadura Militar e representem a manutenção do seu entulho autoritário.

“É preciso construir protocolos e procedimentos baseados em princípios da democracia, dos direitos humanos e não punitivistas”, diz. Um bom exemplo a ser seguido, cita a professora, é o debate em torno do Manual de Convivência da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A professora é a favor da suspensão imediata do PAD e do acionamento de vias de escuta e intermediação para o caso, como a Comissão de Inclusão e Pertencimento (CIP) da EACH. Na avaliação da presidenta da Adusp, é necessário “construir espaços de discussão sobre a cultura periférica” e ampliar o entendimento de permanência estudantil como uma política que deve ir muito além de oferecer auxílios e bolsas.

EXPRESSO ADUSP


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