Conjuntura Política
Outorga do título de domínio é vendida como sonho pelo governo Doria, mas ameaça futuro das terras dos assentados
Encaminhado pelo governador João Doria (PSDB), PL 410/2021 determina titulação compulsória para quem ocupa o lote há mais de dez anos, estabelece preço alto a ser pago pela família e pode representar privatização e entrada do agronegócio nas terras destinadas à reforma agrária. “Assentado não é fazendeiro, não pegou uma terra nua, devoluta, e ficou lá usufruindo. Assentado recebeu essa terra numa política social e investiu seu sangue, seu suor, suas lágrimas para transformar o que era pasto sujo em áreas produtivas e belíssimas como as que são os assentamentos hoje”, diz Tânia Andrade, ex-diretora-executiva da Fundação Itesp
Encaminhado em regime de urgência pelo governo João Doria (PSDB) à Assembleia Legislativa (Alesp) no final de junho, o projeto de lei (PL) 410/2021 introduz mudanças na situação dos produtores rurais nos assentamentos do Estado ao determinar a outorga de título de domínio e transferir a propriedade resolúvel dos lotes às famílias assentadas.
Na cerimônia de assinatura do projeto, ao lado de Doria, o secretário estadual de Justiça e Cidadania, Fernando José da Costa, afirmou que com os títulos de domínio os produtores rurais não terão somente a posse, mas se tornarão “os verdadeiros donos dessas terras”. Na atualidade, as áreas são permissionadas ou concedidas pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” (Itesp).
O custo do título será de 10% do valor da terra nua, e a titulação é compulsória se o assentado é beneficiário do Itesp há mais de dez anos. O texto também permite a venda do lote depois de dez anos da outorga do título.
As disposições alteram as leis 4.957/1985, que trata dos recursos fundiários, e 10.207/1999, que criou a Fundação Itesp. Com as mudanças, a família passa a ser autônoma em relação aos “planos públicos de valorização e aproveitamento de seus [do Estado] recursos fundiários”, ou seja, o poder público fica desobrigado de incluí-la em “programas e ações voltadas para a reforma agrária e para o desenvolvimento da agricultura familiar”, conforme determina o texto da lei 4.957/1985.
A proposta alcança todos os 140 assentamentos estaduais — 99 deles na região do Pontal do Paranapanema, marcada historicamente por conflitos fundiários —, abrangendo 150 mil hectares e um total de 7.133 famílias. O objetivo do governo, defende o secretário Costa, “é dar independência ao produtor rural para que ele tenha autonomia e possa assumir definitivamente a sua propriedade em gestão e produção”.
Na avaliação de estudiosos da questão, no entanto, na forma em que foi encaminhado pelo Executivo, o projeto “é um tremendo lobo em pele de cordeiro e pode trazer muito sofrimento para os assentados”. É assim que o define a engenheira-agrônoma Tânia Andrade, primeira pessoa a exercer o cargo de diretora-executiva da Fundação Itesp, no período 1996-2002. Graduada em Engenharia Agronômica e em Direito pela USP, Tânia tem ainda mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Numa série de vídeos que gravou para comentar os pontos do texto que considera mais problemáticos, Tânia afirma que o PL 410 “aparentemente iria atender a um antigo sonho de todos os assentados, que é possuir o seu título de domínio da terra”, porém “tem armadilhas embutidas que podem transformar esse sonho em pesadelo”.
Entre os problemas, está a redação do novo artigo 12-B, a ser incluído na lei 4.957, que determina que o título de domínio transferirá ao beneficiário, “de forma onerosa e em caráter definitivo, a propriedade resolúvel do imóvel”.
“Essa contradição precisa ser resolvida, porque, se a propriedade é resolúvel [passível de extinção em determinadas circunstâncias], não é definitiva e pode ser cancelada e devolvida para o patrimônio do Estado. Se o assentado não cumprir todas as condições que o texto estabelece, pode perder tudo o que pagou, perder sua terra e o título pode ser cancelado”, afirma.
“Além desse problema, outro trecho diz que é beneficiário do assentamento estadual aquele que foi assentado diretamente pelo Estado, mas também aquele que a qualquer tempo vier a adquirir a propriedade ou a posse do lote”, diz. Na sua avaliação, “isso estimula a violência e a especulação imobiliária, porque evidentemente vai haver uma pressão em cima desses lotes para que sejam vendidos antes da titulação”.
“Se o assentado for obrigado a deixar o seu lote por conta da violência e da pressão política, perde o lote porque outro que tem a posse é que vai poder ser titular e considerado beneficiário do assentamento”, prossegue Tânia.
Assentados podem ficar num “limbo jurídico”
A ex-diretora defende que o artigo 2º do texto, que altera o objeto de trabalho da Fundação Itesp em relação aos assentados, deve ser excluído do PL. “Na lei que criou a fundação, o Itesp deveria prestar assistência técnica às famílias assentadas, quaisquer que fossem. Com essa mudança, somente os assentados estaduais estarão previstos. Isso é péssimo porque temos muitos assentamentos do Incra [federais], ou que podem vir a ser criados por outras entidades, reassentamentos, por conta de empresas ou de municípios, e todos esses assentados ficarão desassistidos se essa proposta passar como está”, aponta.
Tânia Andrade também critica o novo artigo 12-C, que estabelece condições que podem levar ao cancelamento do título de propriedade. O dispositivo cria uma situação muito grave, analisa, “porque as condições colocadas para o assentado cumprir nem sempre dependem do próprio assentado e misturam questões importantes, como não transferir [o lote] para uma pessoa jurídica e não permitir a reconcentração da terra, com questões administrativas que muitas vezes sequer estão regularizadas pelo Estado”.
Entre essas condições está a obrigatoriedade de o assentado fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e registrar o título no Cartório de Imóveis, enquanto o Estado não tem a obrigação de providenciar o georreferenciamento ou regularizar a matrícula do imóvel, sem o que não é possível registrar o imóvel. “Para o assentado é uma penalidade e ele pode vir a perder a terra, mas o Estado não tem a obrigação prévia de entregar a propriedade livre e desimpedida”, diz.
Grande parte das áreas em assentamento, sobretudo os antigos hortos florestais, não está ainda regularizada e escriturada em nome do Estado, disse ao Informativo Adusp o geógrafo Fernando Amorim Rosa, vice-presidente da Associação dos Funcionários da Fundação Itesp (Afitesp). “São áreas que ainda permanecem em nome dos antigos ocupantes, e assim os títulos emitidos não serão passíveis de registro em cartório”, ressalta.
“Com isso, o beneficiário vai deixar de ser assentado da reforma agrária e de acessar uma série de políticas públicas a assentados e também não vai ser proprietário. Vai ficar nesse limbo, sem conseguir registrar o título. O PL 410 está direcionando os assentados para uma armadilha, e isso é muito perverso”, considera.
Outro problema é a cobrança de 10% do valor da terra nua a ser pago pelo assentado, considerado muito alto, especialmente levando-se em conta o preço das áreas em regiões muito valorizadas. O texto também não prevê forma e prazo de pagamento, estabelecendo que um futuro decreto do governo vai determinar as condições e encargos financeiros.
“Isso é muito poder na mão de um governo que não tem se mostrado tão amigo dos assentamentos e que recentemente tentou até extinguir o Itesp”, afirma Tânia Andrade, referindo-se ao PL 529/2020, pacote que promoveu uma espécie de “reforma administrativa” no Estado e incluía a fundação entre dez instituições públicas condenadas à extinção. Um acordo do governo com alguns parlamentares tirou o Itesp e outros três órgãos da lista, permitindo, ao lado de outras concessões, a aprovação do projeto por margem apertada de votos.
“É preciso que esse texto seja alterado, que as condições de pagamento sejam estabelecidas na própria lei e que o preço seja reduzido a 1% ou 2%, porque assentado não é fazendeiro”, diz a ex-diretora do Itesp. “Assentado não pegou uma terra nua, devoluta, e ficou lá usufruindo. Assentado recebeu essa terra numa política social e a transformou, investiu seu sangue, seu suor, suas lágrimas para transformar o que era pasto sujo em áreas produtivas e belíssimas como as que são os assentamentos hoje.”
“Agronegócio quer captura da renda da terra”, adverte Fernando Rosa
“Esse PL acaba instrumentalizando o sonho das famílias assentadas de ter uma maior segurança jurídica sobre a área que ocupam, mas no fim das contas visa a destinar esse estoque de terras públicas em assentamentos rurais de volta para as mãos do agronegócio”, adverte Fernando Rosa, da Afitesp. A seu ver, “há uma ofensiva do agronegócio querendo avançar sobre essas terras públicas em busca da captura da renda da terra”. Não por acaso, trata-se de uma fração do agronegócio que apoia o governo de São Paulo.
“Num primeiro momento, a nosso ver a titulação permitiria o arrendamento das terras. Seria uma forma de o agronegócio adentrar nos assentamentos, coisa que hoje não pode ser feita. Num segundo momento, a partir de dez anos da titulação, com a entrada dessas áreas no mercado de terras, viriam a aquisição e a compra pelo agronegócio”, aponta.
A Afitesp e outras entidades e movimentos envolvidos no debate avaliam que a dificuldade econômica, a ausência de políticas públicas e o limbo jurídico vão estimular muito os processos de ocupação irregular nos assentamentos, gerando uma indefinição dominial que atualmente não existe nessas áreas por conta da implantação dos assentamentos. “Corre-se o risco de jogar por água abaixo tudo o que foi conquistado ao longo de décadas”, considera Rosa.
O vice-presidente da Afitesp lembra ainda que a incorporação ao mercado desse imenso estoque de terras públicas contida nos assentamentos inevitavelmente vai levar a um cenário de especulação imobiliária. Existe portanto a possibilidade concreta de se criar um “desvirtuamento da política agrária, porque quem vai ter acesso a esses lotes vai ser quem tem o capital necessário para comprá-los”. “Isso vai acabar excluindo da política pública quem deveria ser o seu foco”, completa.
De fato, como indicam Sergio Sauer e Acácio Zuniga Leite em artigo na revista Retratos de Assentamentos sobre as mudanças recentes na legislação agrária, está em curso uma ampla desregulamentação do domínio, posse e uso das terras no país, abandonando critérios constitucionais da função social. Neste quadro, os programas de titulação em assentamentos dos governos Doria e Bolsonaro contribuem para alimentar um enorme quantitativo de terras no mercado, representando ao mesmo tempo um lamentável esvaziamento na política de reforma agrária no Brasil.
Carta-manifesto aprovada em assembleia dos servidores do Itesp no dia 30/7 chama a atenção para esses e outros pontos. “Embora a limitação formal da aquisição a duas glebas (contíguas ou descontíguas) exista no referido Projeto de Lei, na prática dificilmente se conseguirá evitar que um mesmo comprador, fazendo uso de terceiros (os famosos ‘laranjas’), adquira diversos lotes rurais, reconcentrando a posse da terra e desvirtuando a política agrária e fundiária estadual”, diz o texto.
“A eventual aprovação do PL 410/2021 e a consequente mercantilização do acesso à terra em assentamentos tende a estimular processos de especulação com terras, elevando seus valores no mercado. Num momento em que se assiste a sucessivos cortes orçamentários e agressivos movimentos de desmonte de políticas públicas voltadas ao agricultor familiar, a incorporação do imenso estoque de terras públicas em assentamentos rurais ao mercado imobiliário tende a privilegiar ou mesmo restringir o acesso a essas apenas àqueles em condições financeiras para sua compra (e muitas vezes sem o ‘perfil’ necessário), excluindo os sujeitos a quem estas terras realmente deveriam ser destinadas, filhos de assentados e outros trabalhadores rurais sem-terra”, prossegue o documento.
Os problemas não se limitam às terras já pertencentes a assentamentos. De acordo com Rosa, São Paulo possui centenas de milhares de hectares em terras públicas devolutas — estima-se que haja em torno de 500 mil hectares, dos quais cerca de 100 mil já foram discriminados em processos da Procuradoria-Geral do Estado e do próprio Itesp, o que obriga o poder público a implantar assentamentos. “Se o Estado quer dar uma destinação e valorizar essas áreas, seria muito mais interessante assentar famílias e não promover um processo de reconcentração fundiária, porque é disso que se trata. Esse PL vem para privatizar as terras públicas”, observa.
Afitesp e MST defendem concessão do direito real de uso
Em sua carta-manifesto, a Afitesp sustenta que impor ao assentado uma dívida compulsória com o Estado configura “nítido desacordo com o previsto na Constituição Federal, dado que esta garante ao beneficiário, em seu Artigo 189, o direito de livre escolha entre o Título de Domínio (TD) ou a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)”.
A entidade defende a implementação da CDRU dos lotes às famílias agricultoras em assentamentos estaduais “como medida a ser adotada para garantir a democratização do acesso à terra a quem nela vive e trabalha, a segurança jurídica às famílias assentadas e o direito à terra das futuras gerações”.
O mesmo posicionamento é adotado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que em 23/7 publicou carta aberta contra o PL 410/2021 e o Programa Titula Brasil, do governo federal.
“O Título de Domínio representa a especulação imobiliária sobre as terras da Reforma Agrária, a não garantia da destinação futura para a produção de alimentos, a reconcentração de terras, a destruição ambiental e o fim da existência dos assentamentos como comunidade de direitos à moradia, trabalho, renda, educação, saúde e vida social”, afirma a carta.
“Além disso o Título de Domínio vai gerar mais uma dívida para o assentado que vai ter que pagar pelo título, o que é um verdadeiro absurdo pois ao invés do Estado colocar recursos nos assentamentos através de políticas públicas, quer tirar dinheiro do nosso povo. O CDRU ao contrário, é uma forma de titulação definitiva e sem custos para os assentados”, prossegue o MST.
Conforme noticiou o Informativo Adusp, a Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), com apoio da Frente de Defesa da Democracia Luiz Hirata, lançou nota de repúdio ao PL na qual diz que a imposição do título de domínio “permite venda de lotes e negociatas”. A nota está aberta a adesões.
Fernando Rosa avalia que dificilmente o PL será derrubado na íntegra, uma vez que o governo dispõe de confortável maioria na Alesp, permitindo inclusive impor regime de tramitação de urgência para o projeto, sem a realização de audiências e discussões públicas. O esforço da entidade tem sido o de fazer contato com parlamentares da oposição e também da própria base do governo para expor os pontos nocivos do projeto e tentar atenuar ou desabilitar as suas principais armadilhas.
O texto recebeu 90 emendas de parlamentares, a maioria da oposição, mas também do próprio PSDB e de outras legendas, como PL, PTB, PSL e MDB. Na última terça-feira (3/8), o PL 410 foi distribuído para as comissões de Constituição, Justiça e Redação (CCJR), de Atividades Econômicas (CAE) e de Finanças, Orçamento e Planejamento (CFOP) da Alesp.
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