A decisão da 32ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que atendeu a pedido formulado pelo Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública e determinou à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), liminarmente, que suspenda imediatamente a avaliação dos programas de pós-graduação (PPGs) em andamento, relativa ao quadriênio 2017-2020, vem provocando reações de setores da comunidade universitária que se identificam com o atual sistema de avaliação.

A ação judicial de autoria do MPF contra a Capes não é a única. Quase um ano antes, oSindicato dos Professores de Universidades Federais de Belo Horizonte, Montes Claros e Ouro Branco, conhecido pela sigla APUBH, ingressou com outra ação civil pública, que passou a tramitar na 12ª Vara Federal Cível e Agrária de Minas Gerais. Ao formular sua própria ação, o MPF valeu-se de subsídios que encontrou na peça do APUBH. Em ambos os casos, a questão central é a definição e divulgação a posteriori, pela Capes, das regras para avaliação dos PPGs, que são aplicadas retroativamente na avaliação dos programas e de suas e seus docentes.

Porém, têm surgido críticas à decisão da 32ª Vara Federal que ignoram ou minimizam as razões que levaram o MPF a ajuizar sua ação civil pública e, além disso, confundem-na com os desmandos do Ministério da Educação (MEC) e com o desmonte que o governo federal procura levar a cabo na Capes, ao nomear para os principais cargos dessa agência pessoas que não atendem aos requisitos acadêmicos necessários. Algumas dessas reações insinuam haver uma identificação automática entre a Capes e os interesses nacionais, ou melhor, da “Pátria”.

Exemplo dessas críticas desinformadas e infundadas é a nota emitida em 1º/10 pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) e intitulada “O Fundo do Poço”. Nela os reitores Vahan Agopyan (USP), Antonio José de Almeida Meirelles (Unicamp) e  Pasqual Barretti (Unesp) afirmam, inicialmente, que a comunidade científica brasileira “foi surpreendida” pela decisão da Justiça Federal, acrescentam que “ao longo desses mais de 70 anos” (a que período se referem?) o país desenvolveu, “por meio da Capes, um sistema de estímulo, financiamento e avaliação da pós-graduação que foi se aperfeiçoando”, e sustentam, ferindo a sintaxe, que tal sistema “tem efetivamente contribuído para o avanço no Brasil, na formação qualificada de recursos humanos para instituições de ensino, pesquisa e na inovação do setor privado e, consequentemente, na pesquisa científica e na inovação”.

No entender do Cruesp, “o processo de avaliação da pós-graduação, que remonta a 1976, tem sido um diferencial para a construção de um Sistema Nacional de Pós-Graduação robusto, eficiente, transparente e reconhecido internacionalmente, proporcionando ao país a possibilidade de reduzir a curto prazo sua dependência científica e tecnológica”, contribuindo ainda para a “consolidação da pesquisa no Brasil, de forma igualitária entre todas as instituições”.

Afirmam os reitores que “inexiste a imprevisibilidade nos critérios de avaliação, como argumento proferido pelo MPF, uma vez que a avaliação sempre foi baseada em critérios objetivos, expressos em documentos elaborados para cada uma das 49 grandes áreas do conhecimento”, e a seguir alegam que a “comunidade acadêmica” legitima o sistema: “Todos esses documentos são exaustivamente debatidos com a comunidade acadêmica e sociedades científicas e disponibilizados publicamente antes de cada processo de avaliação”.

Quanto às notas de cursos e programas, dizem, novamente em tortuosa sintaxe, “são definidas posteriormente à árdua avaliação, e refletem comportamento dinâmico, desempenho e maturidade de cada área de conhecimento, conduzido [sic] de forma responsável por milhares de consultores ad hoc vinculados às instituições públicas e privadas de ensino superior e institutos de pesquisa”. Assim, consideram, a “interrupção abrupta da avaliação quadrienal coloca em risco todo o sistema de pós-graduação e a produção científica brasileira”.

Procuram desqualificar a iniciativa dos procuradores da República, parecendo ignorar que ação civil pública do MPF baseou-se amplamente na similar ação civil pública do APUBH: “Dado o aparente desconhecimento sobre [sic] o sistema de formação de docentes e pesquisadores no Brasil explicitado nos termos da referida ação judicial, é importante reiterar que modificações no sistema de avaliação a cada ciclo são pontuais, discutidas com a comunidade científica e amplamente divulgadas”.

No final da nota, invocam “as responsabilidades do Estado brasileiro com a cultura, o ensino, a pesquisa e a independência tecnológica do país” — responsabilidades das quais o Cruesp costuma se eximir quando se trata por exemplo de remunerar condignamente a força de trabalho das universidades estaduais — e apelar para que “prevaleça o bom senso e o espírito público, com a retomada imediata deste sério e único processo de avaliação, que nos honra e enche de orgulho”. Orgulho meritocrático e produtivista, poderiam ter acrescentado.

Proifes e ANPG referendam acriticamente distorções do sistema

Na mesma linha seguiu nota assinada por diretores da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes), segundo a qual osistema de avaliação da Capes “vem sendo construído e aperfeiçoado ao longo de mais de cinco décadas, com participação e validação de toda a comunidade acadêmica”, de modo que o Proifes “entende que a medida judicial se trata de uma intervenção injustificável, mais um ataque à institucionalidade científica brasileira, que coloca em risco o futuro da pesquisa universitária e compromete um pilar da ciência, tecnologia e inovação nacional”.

De acordo com a nota, emitida em 28/9 por Nilton Brandão, presidente do Proifes, e Enio Pontes, diretor de ciência e tecnologia, a liminar da 32ª Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro “serve apenas para endossar a política de desmonte e sucateamento da ciência brasileira tocada pelo governo federal de turno, que tem na Capes um de seus principais alvos, como mostra o brutal declínio orçamentário da instituição nos últimos anos”. Razão pela qual, concluem, o Proifes “sai em inequívoca defesa da Capes e do sistema de avaliação vigente, consignando que toda e qualquer mudança nos mecanismos institucionais da educação e do ensino superior devem se dar por meio do diálogo democrático, com a participação e a validação de toda a comunidade acadêmica”.

Assim, a entidade sindical referenda acriticamente um sistema de avaliação que, por suas distorções, vem recebendo críticas profundas e sistemáticas de pesquisadores, de setores importantes do movimento docente e até de quem tentou reformá-lo “por dentro”, como a professora Rita Barradas Barata, ex-diretora de Avaliação da Capes.

Mais impressionante ainda, por sua inteira adesão ao mainstream produtivista, é a posição da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), ou pelo menos de sua presidenta, Flávia Calé, doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Em artigo intitulado “A quem interessa a paralisação do Sistema de Avaliação da Capes?”, publicado pelo Jornal da USP em 5/10, Flávia afirma que a avaliação dos PPGs “visa buscar parâmetros que assegurem qualidade à produção científica brasileira e à formação de profissionais altamente capacitados em todas as áreas do conhecimento” e ainda “fundamentalmente vincular a produção acadêmica aos desafios do desenvolvimento brasileiro”, e que a suspensão desse processo “gera um prejuízo difícil de mensurar, dado o tamanho das consequências negativas”, sendo a principal delas “a descontinuidade do aprimoramento qualitativo do processo de avaliação”, tendo como efeito colateral imediato “a perda da credibilidade e reputação de todo o Sistema Nacional de Pós-Graduação”.

Depois de lembrar que “há fortes interesses de entes privados, que atuam na educação, na desregulamentação das diversas instâncias do ensino superior e da pesquisa”, a presidenta da ANPG especula: “Seria essa a motivação oculta desta decisão judicial?”, para acrescentar como pá de cal que têm sido “desastrosas as intervenções do Judiciário nas questões estritamente relativas à dinâmica do desenvolvimento científico”. Mais adiante, dirá: “A questão em debate é que o Poder Judiciário não possui repertório para julgar a dinâmica acadêmica. O desenvolvimento da Ciência requer criatividade, liberdade e o mínimo de modulação; dificilmente se encaixa nos parâmetros herméticos da Justiça”.

Suas alegações contra a decisão judicial alinham-se ao discurso de que o processo é democrático e dispensa mudanças: “O texto da liminar determina que a Capes emita em 30 dias, dentre outras coisas, as ‘notas de corte’ que serão utilizadas na avaliação. Com segurança digo, àqueles que não conhecem o sistema de avaliação, não existe nota de corte”, assinala o artigo. “As áreas do conhecimento definem, após ampla consulta e participação da comunidade acadêmica, os seus ‘documentos orientadores’ e os quesitos da ficha de avaliação”.

O texto bem poderia ser assinado pelos hierarcas da Capes no período pré-Bolsonaro, tal a defesa que faz do sistema de avaliação. “O Conselho Técnico-Científico [da Capes] está apoiado em pesquisadores altamente qualificados de 49 áreas do conhecimento. As inovações questionadas pela liminar, além de serem fruto de intenso debate nesta imensa comunidade de pesquisadores e pesquisadoras, ampliam o escopo da avaliação”, garante Flávia. “Ou seja, passam a considerar novos elementos na avaliação, para além dos estabelecidos até 2017, como o impacto social das produções e a autoavaliação. Ampliam-se as possibilidades dos [sic] programas apresentarem bons desempenhos e não o contrário”.

“A Capes não somos ‘nós’, a comunidade nunca teve autonomia para decidir”

Na contramão das leituras que fazem a apologia do sistema de avaliação da Capes, o professor Adrián Pablo Fanjul (FFLCH) fez chegar ao Informativo Adusp o seguinte comentário, no qual, além de dissociar a investigação conduzida pelo MPF — e a decorrente ação judicial — dos ataques que a Capes sofre de setores do próprio governo federal, aprofunda a crítica aos métodos de avaliação utilizados pela agência, ao seu caráter centralizador e vertical e às distorções que gera nas universidades públicas. “Nas últimas semanas, houve dois fatos relacionados à Capes, a meu ver de natureza diferente, mas que o caos institucional do país ajuda a confundir. Um é a destituição do comitê de avaliação pela presidenta da fundação. Outro é a suspensão da avaliação quadrienal pelo poder judiciário a pedido do Ministério Público Federal”, diz.

“A medida administrativa tomada pela presidenta da Capes é a ação de uma enviada do governo Bolsonaro destituindo um comitê que já pouco tinha de autônomo, para subordinar o órgão ainda mais aos interesses privados. Diferentemente, a liminar judicial resulta da atuação de um órgão de controle como resultado de representações de setores da comunidade universitária, feita antes do governo Bolsonaro, e denunciando arbitrariedades que todos sabemos serem reais”, pondera o docente. “A ação do MPF é contrária ao órgão hoje presidido pela enviada do governo negacionista e anti-ciência, que de imediato saiu publicamente a defender a ‘idoneidade’ da avaliação. Outra coisa é o rumo que essa situação possa seguir, mas aí é uma questão de correlação de forças, e o problema para nós, das universidades públicas, é que papel ter”.

Prossegue: “Defender a avaliação da Capes contra a ação do MPF me parece um equívoco. Fico espantado com o paralelo que a nota da ANPG realiza entre essa ação pública, motivada por denúncias legítimas de docentes universitários, e a invasão da Polícia Federal à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no contexto de uma operação obscura como foi a Lava Jato, ou com a sugestão de que o ensino privado resultaria favorecido pela atuação do MPF, quando precisamente o que temos visto nos resultados da avaliação da Capes é o aumento cada vez mais visível das notas das universidades privadas, começando pela universidade de origem do atual ministro da Educação bolsonarista”.

Adrián refuta o alegado caráter democrático do sistema. “Também me surpreende a defesa acrítica, em muitas declarações públicas, da avaliação da Capes como fruto de debate participativo, coletivo e qualificado. É necessário ler a peça da ação civil do MPF, ela expõe com clareza arbitrariedades e irregularidades por todos nós conhecidas, e diante das quais jamais a comunidade universitária teve qualquer autonomia para decidir. A Capes não ‘somos nós’. Os conselhos superiores impõem critérios deixando escassíssima liberdade às áreas de conhecimento, sobretudo às Humanidades, de fazer valer suas formas de produção, seus tempos de formação, e seus formatos e tempos de publicação e circulação”, pontua.

“Além disso, os critérios mudam com os processos de avaliação já em andamento, como bem denuncia a ação civil pública (e não há ‘concepção dinâmica da avaliação’ que justifique essa arbitrariedade que jamais seria aceita em um concurso público); e o próprio preenchimento da plataforma se agiganta no meio do processo, com acréscimos de uma semana para outra”.

Assim, o sistema vigente introduz uma grave distorção no trabalho docente e das universidades. “O resultado é que, hoje, a maioria de nós, docentes, vemo-nos obrigados a dedicar um tempo imenso não à formação do pesquisador, que deveria ser o norte de pós, mas ao ajuste do nosso trabalho às pautas caprichosas e mutáveis da Capes para a produção científica, que, tanto pelos formatos quanto pelos prazos, favorecem o esvaziamento de conteúdo e o encerramento prematuro de trabalhos que prometiam. E uma parte de nós, professores, os que em determinados anos precisam ocupar o papel de coordenador de programa de pós-graduação, precisa dedicar absolutamente todo seu tempo às veleidades da Capes e da Plataforma Sucupira”.

No seu entender, a avaliação Capes, pelos esforços que exige do corpo docente, “invadiu o tempo que deveria ser dedicado à formação de graduação”, e sequestrou recursos que teriam de ser destinados a outros fins. “Um exemplo é a proliferação de monitorias para preenchimento da plataforma Sucupira, que me atrevo a dizer que são a maioria das monitorias atuais em algumas unidades. Imaginemos a contribuição que essas monitorias poderiam dar para projetos formativos. Outra consequência nefasta da avaliação Capes nos últimos anos tem sido que os programas se vejam obrigados a descredenciar colegas aposentados, verdadeiros mestres com uma formação mais integral que a que temos a maioria dos atuais docentes, porque eles estão dispostos a orientar e lecionar, mas não a acompanhar o ritmo frenético de publicação picotada”.

Conclui pedindo mudanças: “Enfim, creio que não é hora de defender a aberração em que se transformou a avaliação (defesa que, por sinal, vai levar logo a uma frente com a enviada de Bolsonaro contra os ‘vilões’ do MPF), mas de tentar sair desse esquema falho e pensar a avaliação com verdadeira autonomia. As universidades, se quiserem, têm força para isso. E o que a Capes ainda dá não é algo pelo que valha a pena continuar se subordinando à dupla insanidade da pseudoavaliação que sofremos desde há anos e, agora, da anti-ciência instalada na Capes e no MEC”.

EXPRESSO ADUSP


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