Defesa da Universidade
Governo brasileiro agiu de forma criminosa em relação à pandemia da Covid-19, e reabertura é perigosa porque a situação ainda está longe do controle, afirmam professores em debate promovido pela Adusp
A postura do governo brasileiro em relação à pandemia da Covid-19 é criminosa, impondo ao país uma enorme derrota em relação à doença; a situação ainda está longe do controle e do seu final, e a retomada ou flexibilização são prematuras; é preciso combater fortemente a epidemia da mentira que acompanha a disseminação do vírus. Essas foram algumas das proposições apresentadas pelos professores e pesquisadores que participaram no último dia 19/8 do webinário “A pandemia em São Paulo: evolução, contexto nacional e o papel das universidades”, quarto evento online promovido pela Adusp durante a quarentena, com organização do Grupo de Trabalho USP e a Pandemia.
Na abertura, o professor Adrián Pablo Fanjul, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e integrante do GT, lembrou que na última semana de maio o crescimento do número de casos e de óbitos faria esperar o decreto de um lockdown – mas o que ocorreu, ao contrário, foi o anúncio do Plano São Paulo de abertura da economia, com liberação parcial do comércio e de outras atividades. “Não faltaram especialistas que naquele momento advertiram sobre o risco dessa abertura”, lembrou o professor. “Já são quase três meses que o país mantém uma média móvel em torno de mil óbitos diários, e o Estado permanece somando nesse número com uma média móvel em torno de 260 óbitos diários.”
A primeira exposição ficou a cargo de Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e uma das coordenadoras da pesquisa Direitos na pandemia – parceria do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e da Conectas Direitos Humanos –, que tem monitorado as normas relativas à Covid-19 no Brasil.
A partir da análise das mais de 1.800 normas emitidas pelo governo federal no período, Deisy afirma que há uma obstrução sistemática do governo federal à resposta à pandemia. “Existe um plano intencional de concretização da história natural da doença para que a crise se esgote o mais rápido possível”, considera, ressalvando que nem sempre o governo federal consegue impor todas as suas normas porque existem resistências do Judiciário e do Legislativo, de governos locais, de entidades sociais etc.
Numa reunião em maio, por exemplo, Jair Bolsonaro “declarou guerra” aos governadores e pediu aos empresários que deixassem de financiar campanhas eleitorais dos políticos que combatiam a pandemia e também deixassem de publicar anúncios nos órgãos de imprensa que cobriam a verdadeira dimensão da crise. Outras medidas prejudiciais ao país foram o atraso na destinação de recursos financeiros aos Estados e vetos sistemáticos à legislação que buscava propiciar habilitar uma resposta efetiva à Covid-19.
“A comunicação de risco durante a emergência é feita pelo governo federal de maneira criminosa: veicula o negacionismo, dissemina a confusão”, afirma. “Quem conhece de fato como se estrutura a resposta a uma emergência sabe que o ponto número um de qualquer manual de comunicação de risco é a confiança nas autoridades sanitárias. Vemos essa enorme erosão da confiança nas autoridades neste momento, o que leva à tese, no nosso grupo, de que há a prática de crimes contra a humanidade no Brasil atualmente em relação à pandemia, destacando-se nesse quadro particularmente o crime de genocídio das populações indígenas.”
Pandemias dessa proporção já eram previstas por comissões internacionais
Deisy Ventura abordou também elementos da conjuntura internacional. A professora citou o Global Health Security Index (Índice de Segurança da Saúde Global), elaborado pela Universidade Johns Hopkins, pela revista The Economist e outros parceiros. O ranking, divulgado em outubro do ano passado – poucos meses antes da pandemia da Covid-19 – classifica o Brasil na vigésima-segunda posição em segurança da saúde em relação a eventos de emergência. Quanto à prevenção, o Brasil é o décimo-sexto país do mundo; o décimo-segundo em capacidade de detecção precoce de um evento que pode se tornar uma ameaça internacional; e o nono em capacidade de resposta rápida a um evento emergencial de saúde pública, deixando para trás diversos países desenvolvidos.
A professora ressalva que é possível divergir dos critérios utilizados para montar esse índice, mas que ele é revelador da forma como o Brasil era percebido no contexto da segurança da saúde. Assim, argumenta, não se sustenta a visão de que o desenvolvimento da pandemia tal qual se deu por aqui era inevitável em função do tamanho e da complexidade do país.
O segundo elemento internacional abordado por Deisy Ventura foi a desconstrução de uma ideia do senso comum de que a Organização Mundial da Saúde (OMS), o seu braço nas Américas – a Organização Pan-americana da Saúde (Opas) – e as organizações internacionais de uma forma geral falharam na resposta à Covid-19.
Parte dessa visão vem de uma “angústia”, como qualificou a professora, em relação à criação de uma comissão independente para avaliar o trabalho da OMS chefiada por Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, e por Ellen Sirleaf, ex-presidente da Libéria e Prêmio Nobel da Paz de 2011 – comissão na qual Jair Bolsonaro está tentando incluir o ex-ministro Nélson Teich, “que deixou claro que não tem a menor ideia do que seja a saúde pública e muito menos a OMS”, ressaltou a docente. “Há uma disputa regional pela indicação de alguém do continente e eu espero sinceramente que vença um indicado que tenha condições de participar dessa comissão.”
Na visão de Deisy Ventura, “essa comissão só causa angústia para quem não conhece a história da OMS, que é frequentemente submetida a esses processos”. Episódios anteriores foram registrados em crises como a da emergência da gripe H1N1, em 2009, e da crise do vírus Ebola na África Ocidental entre 2014-2015. Diversas comissões desde então têm proposto reformas no funcionamento da organização.
“Todas essas comissões se referiam à próxima ameaça. Uma delas se chamava justamente ‘Protegendo a humanidade de futuras crises sanitárias’. Uma pandemia dessas proporções não era previsível, era absolutamente previsível. Basta estudar a dimensão internacional da saúde para sabermos da quantidade de planos de preparação feitos por comissões de alto nível, razão pela qual não é possível que alguém sério dessa área possa dizer que nós não estávamos esperando”, afirma, ressalvando que obviamente não se sabia qual seria o vírus.
“Creio que nunca antes uma organização internacional teve tamanha transcendência em relação à influência sobre um tema que ocupou o primeiro plano da agenda política de praticamente todos os Estados do mundo durante muitos meses e ainda segue à frente nessa agenda política”, considera. Na sua avaliação, a OMS se tornou uma referência fundamental para quem resistia a governos que queriam deixar que a doença seguisse sua história natural – caso do Brasil.
Governos estaduais e prefeituras tomaram medidas de saúde pública embasadas em evidências científicas produzidas pela OMS. “Vemos então a importância dessa organização e o quanto é preciso fortalecê-la”, diz a professora. “É claro que a OMS merece críticas por outros temas de política global, mas não pelo seu desempenho na resposta à Covid-19. Ela conseguiu ser uma referência de medidas baseadas em evidências científicas, e em contextos políticos como o norte-americano e o brasileiro isso teve um valor extremamente importante.”
Outro elemento trazido pela professora foi o fato de que a eventual eleição do democrata Joe Biden à presidência dos Estados Unidos pode ser positiva em relação à permanência do país na OMS, mas deve relançar uma agenda da segurança da saúde global, criada pelo ex-presidente Barack Obama em 2014, que é rival da OMS. Assim, pode ganhar relevância no plano internacional um sistema de controle de saúde global muito mais voltado a dar capacidade de detecção de ameaças no mundo em desenvolvimento – para proteger o mundo desenvolvido – e muito menos representativo de uma articulação coletiva e internacional.
Tentativa de recuperação econômica a despeito da saúde pública caracteriza genocídio da população, considera professor da FMRP
Na sequência, o professor Domingos Alves, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e integrante da equipe do portal Covid-19 Brasil, lembrou que o site inclui várias ferramentas de análise que possibilitam a compreensão da pandemia brasileira, “que é complexa por definição por ser a composição de várias epidemias que acontecem no país”.
De acordo com o professor, o Estado de São Paulo é um polo importante de repercussão da pandemia nacional: os números do Estado representam um quinto dos casos e um quarto dos óbitos do Brasil. Porém, afirma, “existe uma propagação de dados cínicos, no sentido de que os dados oficias que têm sido apresentados sobre a pandemia no Estado de São Paulo não correspondem à realidade”.
Alves lembrou que nos dois primeiros meses e meio da pandemia houve cerca de 7,5 mil óbitos no Estado. A partir da implantação do Plano São Paulo, no dia 1º de junho, ocorreram outras 20 mil mortes. A capital atingiu a marca de 10 mil óbitos nos primeiros dias de agosto. “Mesmo com todos os discursos que têm sido praticados pelo governo estadual, o Plano São Paulo é motivo do agravamento da epidemia no Estado”, aponta o docente. “Nunca houve no plano a ideia de conter a epidemia”, completa.
Na tarde desta terça-feira (25/8), por sinal, São Paulo liderava o mapa mundial da Universidade Johns Hopkins como o Estado ou província com maior número de casos no planeta: 756,4 mil.
Na avaliação de Alves, “existe um verdadeiro genocídio da população, institucionalizado a partir do fato de se tentar uma recuperação econômica a despeito da saúde pública”. “A culpa dos óbitos e do número de casos exacerbados que têm sido observados em São Paulo e nos Estados deixou de ser do vírus há muito tempo. A culpa dessa mortalidade exacerbada está relacionada a decisões políticas em detrimento dos eventos de saúde pública”, afirma.
A professora Lorena Barberia, docente da FFLCH e coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, ressaltou que o trabalho da rede é importante por agrupar pesquisadores das mais diversas áreas que procuram monitorar as políticas públicas adotadas durante a crise da Covid-19 – especialmente nas áreas de contenção, de saúde pública e da economia – e avaliar o seu impacto.
A docente também avalia que o Estado de São Paulo – que caracteriza como tendo adotado políticas moderadas de contenção – falha na transparência dos dados que propiciariam uma compreensão melhor do quadro da doença. Um exemplo apontado por Lorena é a falta de dados transparentes sobre a evolução da taxa de ocupação dos leitos de UTI nos sistemas público e privado e onde foram criados novos leitos.
De acordo com a professora, o Brasil é um dos países que mais demoraram a iniciar a testagem, além de ter uma capacidade bastante limitada no começo da pandemia, testando apenas pessoas que estavam hospitalizadas ou com sintomas mais graves. Mesmo na atualidade não estão sendo suficientemente identificadas as pessoas infectadas para isolá-las e rastrear seus contatos.
“A taxa de positividade continua elevada, indicado que estamos flexibilizando [a quarentena] com uma insuficiência de abrangência de testagem no Estado”, diz. Na avaliação da pesquisadora, é difícil entender a flexibilização levando em conta a falta de informações tanto sobre a ocupação dos leitos nos sistemas público e privado quanto sobre a testagem da população.
“São duas incógnitas muito importantes porque dificultam a avaliação do que está acontecendo para conseguirmos entender melhor quais são algumas das falhas na resposta no Estado”, reforça.
Lorena advertiu que a maioria dos modelos projeta que o número de casos no Brasil continuará elevado depois do final do ano. “Precisamos alertar os gestores da sociedade e discutir uma reavaliação de uma discussão sobre as medidas que estão sendo adotadas. Não estamos de forma nenhuma perto do final da pandemia.”
“Bolsonaro não é um irresponsável; é um responsável genocida”, afirma historiador
O historiador Gilberto Calil, docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), tem trabalhado com interpretação de dados estatísticos para estabelecer correlações entre os números e as políticas públicas e os comportamentos sociais.
Na sua avaliação, Bolsonaro “sabe o que está fazendo e sustenta uma posição absolutamente coerente desde o início da pandemia”.
Lembrando que o fascismo é o seu objeto de estudo há trinta anos, Calil qualificou Bolsonaro como patrocinador de um projeto fascista, a exemplo de Viktor Orbán na Hungria e Recep Erdogan na Turquia. Porém, nesses países os líderes se utilizaram da pandemia dizendo que era preciso fortalecer o seu poder para combater a ameça, enquanto no Brasil “há uma perspectiva que se mantém absolutamente inalterada que é de provocar o máximo de contaminação possível”, diz. Um dos resultados da diferença da estratégia é o número de mortes por milhão, que nesses países se concentra entre 50 e 60, enquanto no Brasil fica em torno de 500.
Pelo menos desde 14 de março, enfatiza o pesquisador, quando interveio para proibir as limitações aos cruzeiros marítimos e dificultar os controles nos aeroportos, Bolsonaro mantém sua posição, seja colocando a máscara na orelha, seja promovendo aglomerações ou fazendo afirmações mentirosas sobre a doença. “Só a frase de que ‘a pandemia não vai ter jeito enquanto 70% da população não se contaminar’ ele repetiu 33 vezes, segundo a Agência Aos Fatos. Há uma estratégia clara e explícita e uma linha de coerência absoluta. Bolsonaro não é um irresponsável; ele é um responsável genocida”, afirma.
De acordo com Calil, há uma articulação entre as falas e ações públicas e a disseminação de fake news diretamente vinculada a essa perspectiva. Entre esses elementos estão a minimização do risco (por exemplo, a afirmação de que o Brasil é um país quente e que o vírus “morre no calor”); a ideia de que o que ocorreu nos primeiros meses do ano na Itália não aconteceria aqui porque o Brasil é um país jovem e a Itália “um país de velhos”; a louvação de remédios “milagrosos” como a hidroxicloroquina e a ivermectina; o reiterado anúncio do fim da pandemia, repetido desde abril; e a comemoração do alto número de recuperados – “comemorar 95% de recuperação de uma doença que tem letalidade de 1% é uma bizarrice absurda”, diz.
Calil defende que é necessário combater duas concepções que parecem ser no momento vitórias do bolsonarismo: a incapacidade da contenção efetiva e a crença na imunidade coletiva como algo próximo. O professor lembra que todos os indicadores mundiais mostram que, quanto maior o número de casos, mais longe se está de resolver a situação da pandemia (e o Brasil continua sendo o vice-campeão mundial em número de casos, com mais de 3.6 milhões, atrás apenas dos Estados Unidos). Além disso, por mais que se discuta qual é afinal o percentual para alcançar a imunidade coletiva, os países que conseguiram reduzir o seu número de casos o fizeram a partir de políticas de contenção.
No Brasil, lamentou, a lógica da comunicação dominante naturalizou e normalizou o patamar de mil mortes diárias. Adicionalmente, não bastassem os mais de 115 mil mortos pela Covid-19, o país já contabiliza 42 mil óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave não especificada, quando o número esperado seria de 2 mil.
Na avaliação de Calil, é urgente lutar para reverter percepções fatalistas de que não havia mesmo o que fazer de diferente em relação à doença – afinal, diz, “as coisas estão muito ruins, mas isso não significa que não possam piorar”. É fundamental, prossegue, combater a epidemia da mentira, por mais difícil que seja. “Temos que produzir um mínimo de compreensão científica e romper com a ideia de que isso é uma coisa de especialistas”, defende.
Autoridades precisam ser responsabilizadas pelas mortes evitáveis
A retomada das aulas presenciais foi um dos temas abordados na sessão de perguntas após a fala inicial dos debatedores. Adrián Fanjul lembrou que, no mesmo dia da realização do webinário, a Reitoria da USP promoveu um encontro virtual sobre o plano de retorno da universidade às atividades presenciais, no qual em nenhum momento foi citada a morte de membros da comunidade pela Covid-19. “Realmente me pareceu um modo diferente de dizer: ‘e daí?’”, comentou o docente, referindo-se a uma das frases de Bolsonaro quando confrontado com o alto número de mortes causadas pela doença no país.
Domingos Alves citou artigo publicado no New England Journal of Medicine segundo o qual a única condição segura para o retorno às aulas seria ter menos de dez casos por 100 mil habitantes – e hoje, disse, nenhum município do Brasil conta com menos de 40 casos por 100 mil habitantes. Gilberto Calil apontou experiências internacionais como a de Israel que demonstram que essa retomada tem impacto na aceleração da disseminação dos casos.
Em sua intervenção final, Deisy Ventura ressalvou que decisões como a tomada pelo governo de anunciar um plano de abertura quando todos esperavam o lockdown têm a ver “com a questão da saúde acontecer no âmbito local, e muitos governantes não queriam ter essas mortes no seu colo na perspectiva das eleições municipais”.
A professora defendeu que todo o trabalho feito na pandemia da Covid-19 é transcendente à medida que a literatura indica que os intervalos entre as pandemias vão ser cada vez menores – “a menos que mudemos a nossa forma de nos relacionar com o planeta, com uma mudança radical em padrões de consumo, em estruturas e nas desigualdades que determinam que esses eventos tenham os desfechos que têm”. “A pandemia está longe do fim e muito longe do controle, mas o fato é que essa é uma experiência que vai definir em grande parte qual vai ser a nossa capacidade de resposta para as próximas”, afirmou.
A professora defendeu ainda que é preciso “buscar a responsabilização das autoridades que estão promovendo essas mortes evitáveis”. “Estamos fazendo isso na jurisdição nacional, com diversas ações judiciais, e com comunicações ao Tribunal Penal Internacional, com demandas junto aos mecanismos de controle internacionais de Direitos Humanos”, disse.
“Infelizmente não conseguimos mudar essas políticas, mas conseguimos pressionar para ter algumas vitórias dentro dessa enorme derrota que é a resposta brasileira à pandemia. O Brasil hoje é um pária internacional e São Paulo certamente faz parte disso”, finalizou.
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