Defesa da Universidade
Relatório da CPI das Universidades propõe prazo para apresentação de contas, observância do teto salarial, restrição às diárias e regulamentos disciplinares mais duros
Texto apresentado pela relatora Valeria Bolsonaro (PSL) diz que “fatos narrados nos depoimentos” e também nos “documentos que a esta CPI chegaram” apontam para “supostos ilícitos que reclamam maiores explicações, correções e mais aprofundadas investigações pelos demais órgãos de controle, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas”. A deputada não ataca diretamente a autonomia universitária, mas propõe criação nas universidades de um “Conselho de Integração” com setores do mercado
Marco Cardelino/Alesp |
Valeria Bolsonaro (PSL) e Barros Munhoz (PSB) |
Apresentado em sessão realizada nesta terça-feira (15/10), o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga “irregularidades na gestão” das universidades públicas estaduais na Assembleia Legislativa (Alesp) propõe que USP, Unesp e Unicamp tenham prazo para a apresentação de suas contas ao Tribunal de Contas do Estado (TCE). A relatora, deputada Valeria Bolsonaro (PSL), sugere que um projeto de lei estabeleça o dia 30 de abril como prazo — que, se não cumprido, poderia acarretar “suspensão dos repasses da cota de ICMS”. Também é sugerida no texto a elaboração de outros projetos de lei, como o que propõe a criação do conselho estadual de “Integração das Pesquisas Universitárias com a Sociedade”.
Temas frequentes nas sessões da CPI, as questões do teto constitucional e das diárias de viagens obviamente também estão presentes no relatório. A relatora recomenda que “as universidades se abstenham de pagar vencimentos e proventos acima do teto constitucional, bem como que se sujeitem às decisões do STF nesse sentido” e que, como forma de “reduzir o pagamento de diárias (sobretudo pela Unesp)”, passem a utilizar mais recursos como videoconferência para reuniões administrativas e até de seus conselhos universitários.
Valeria Bolsonaro diz que o pagamento de salários acima do teto constitucional, irregularidades na concessão de diárias, insuficiência de informações na área de Transparência dos portais das instituições na internet e relações nebulosas entre as universidades e as fundações privadas ditas “de apoio” — questões presentes nos “fatos narrados nos depoimentos” e também nos “documentos que a esta CPI chegaram” — “apontam para supostos ilícitos que reclamam maiores explicações, correções e mais aprofundadas investigações pelos demais órgãos de controle, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas”. “Essas falhas acabam por drenar recursos em expedientes menores e fazer carecer verbas em setores de atendimento primordial à população”, prossegue a relatora, “o que faz estabelecer desonrosa mácula nas finalidades acadêmicas e socioeconômicas desses entes tão queridos pelo Povo Paulista e tão necessários para o progresso deste Estado”.
A deputada reconhece que as universidades públicas estaduais demonstraram “um elevado grau de comprometimento público com a docência, a extensão e a pesquisa, elementos indissociáveis das universidades, até mesmo porque são determinações oriundas da Constituição Federal”; porém, diz, a CPI detectou durante os trabalhos “falhas de gestão administrativa e financeira que podem erodir a prestigiosa participação das universidades paulistas no esforço global de aquisição de novas ciências, técnicas e saberes”.
O relatório, que tem 244 páginas, além dos anexos, foi entregue aos membros da CPI numa tumultuada sessão na qual o presidente, Wellington Moura (Republicanos), pretendia forçar a leitura e discussão do texto, que não havia passado por nenhuma negociação prévia, como é praxe na Alesp. A deputada Professora Bebel (PT) pediu vista, adiando a apreciação do relatório, que deve ocorrer na próxima semana. Bebel e Barros Munhoz (PSB) preparam votos em separado — ou seja, relatórios diferentes daquele da relatora, que será votado e, se aprovado, será o parecer definitivo da comissão.
CPI foi “espetáculo constrangedor de truculência”, considera tucano Aloysio Nunes
Dado o desconhecimento que a maior parte dos integrantes da CPI demonstrou ao longo das sessões em relação ao papel das universidades públicas paulistas, não é de estranhar que o relatório contenha várias imprecisões — como a afirmação de que as universidades detêm “um orçamento que absorve 9,75% das receitas do Estado”. Na realidade, o governo estadual repassa para USP, Unesp e Unicamp, anualmente, 9,57% (e não 9,75%) da Quota-Parte do Estado do ICMS (QPE-ICMS) e não do conjunto das receitas de impostos.
O texto também incorpora interpretações bastante tortuosas de depoimentos dos representantes das universidades. Misturando conceitos sobre os processos internos de avaliação docente com os trâmites para a publicação de artigos científicos, Valeria Bolsonaro atribuiu ao pró-reitor de Pesquisa da USP, Sylvio Accioly Canuto, por exemplo, a seguinte explicação: “A cada 2 (dois) anos, é feito pelo pesquisador um relatório, analisado por uma comissão e não aberto à população. Depois de passar por uma análise de pesquisadores e editores, o relatório pode ser publicado em revistas — ápice da produção científica”.
Os frequentes embates travados na CPI não passaram despercebidos na sociedade e nos meios de comunicação. Em vários artigos e editoriais, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, por exemplo, dirigiram críticas pesadas à CPI. O fogo partiu até de trincheiras supostamente aliadas. No final de setembro o ex-senador pelo PSDB e ex-chanceler Aloysio Nunes — que foi presidente da agência Investe SP no início do governo João Doria (PSDB) e deixou o cargo após sofrer busca e apreensão da Lava Jato — declarou em entrevista à Folha de S. Paulo. “A guerra ideológica, que parece ser a única pauta do ministro da Educação, foi encampada em São Paulo por uma CPI das Universidades, que é um espetáculo constrangedor de truculência e ignorância. O PSDB apoiou. Essas coisas me parecem muito preocupantes”.
“Autonomia não pode ser confundida com soberania”
A autonomia universitária é mencionada diversas vezes pela relatora e pelos sub-relatores, nenhum dos quais, porém, propõe sua retirada ou limitação. Sub-relator para a área de Transparência e Acesso aos Dados Públicos, o deputado Professor Kenny (PP) diz que, “por mais competência que possua para elaborar seu orçamento e seus planos de despesas”, a universidade “não pode fazê-los em desrespeito às leis e à Constituição”.
Já Daniel José (Novo), sub-relator para Contratos e Consórcios, Controle de Gastos e Prestação de Serviço Realizado, argumenta que “a autonomia universitária não pode ser confundida com um conceito de ‘soberania’ frequentemente comunicado pelos representantes das universidades durante as oitivas da CPI”. O deputado lembra que “todos os órgãos públicos devem prezar pelos princípios da administração pública e a autonomia universitária não pode ser usada como argumento para refutar a necessidade de seguir o Artigo 37 da Constituição Federal”. O artigo determina que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Na visão de Valeria Bolsonaro, “a persecução dos princípios da administração pública foram todos ignorados (sic) sob a constante alegação da necessidade de existência da ‘Autonomia Universitária’”, com a tomada de decisões no âmbito dos conselhos universitários “que não levaram em consideração o comprometimento da receita, frente às despesas”.
A deputada defende que “a primeira questão colocada pela proposta de autonomia, que implica ampla liberdade da instituição para gerir seus recursos humanos, financeiros e administrativos, é a necessidade de resgatar a idéia de utilização do planejamento estratégico”. Assim, continua, “a autonomia impõe à universidade não só a necessidade de interpretar o ambiente seja ele interno ou externo, mas também a necessidade de adequar a instituição ao seu meio, com vistas ao cumprimento eficaz de sua missão”.
O que a deputada chama de “o novo mundo da autonomia” pressupõe, “como precondição para que as mudanças requeridas sejam feitas de forma adequada e resultem de fato em um patamar superior de eficiência e eficácia da ação das universidades públicas do Estado de São Paulo, o mais largo processo prévio de discussão e conscientização da proposta e de negociação política entre seus atores organizacionais”. A autonomia, prossegue, “ao colocar para a instituição universitária uma série de opções e ao tornar claro que os recursos a ela destinados são finitos, introduzirá mudanças profundas na agenda de decisões e certamente afetará a cultura e a prática de gestões vigentes”.
Conselho seria intermediário entre “pesquisas universitárias” e a sociedade
A apresentação dos projetos de lei sugeridos no texto, entretanto, pode sim afrontar a autonomia. A suspensão dos repasses do ICMS, caso os reitores não entreguem os relatórios de gastos, por exemplo, acarretaria o não recebimento dos salários dos servidores por conta de uma administração eventualmente relapsa. Além disso, esse tipo de relatório já existe: é inserido na base de dados do governo todo mês, através do Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem).
Outra sugestão do relatório é de que o governo estadual encaminhe projeto de lei para a criação do Conselho Estadual de Integração das Pesquisas Universitárias com a Sociedade (Cipus), que teria como finalidade “ser um intermediário entre as pesquisas produzidas no meio acadêmico e a sociedade civil e os setores da economia, e aporá um selo de viabilidade de concretização material, técnica, ambiental e econômica das pesquisas produzidas pelas universidades”.
A certificação de viabilidade poderá propiciar, sugere o texto, incentivos fiscais “àqueles que materializarem as pesquisas”, além de “orientar os órgãos da administração direta e indireta a elaborar editais de licitação para que passem a exigir, ou sinalizar preferência, na aquisição de bens e serviços que detenham o selo de viabilidade emitido pelo Cipus”.
O conselho teria a participação de “representantes do governo do Estado (que o coordenará), da Fapesp, das áreas acadêmicas das universidades públicas, das faculdades públicas autônomas e das FATECs, e representantes do meio produtivo, tais como, por exemplo, os setores da indústria, das empresas de tecnologia, de startups, da indústria farmacêutica, dos setores da construção civil”. Da forma como está proposto, esse conselho poderia rapidamente assumir funções deliberativas que causem interferência na autonomia das universidades.
Fundações privadas ditas “de apoio” adotam práticas ilegais a serem combatidas
A relatora também se referiu às fundações privadas cujos dirigentes foram ouvidos pela CPI: a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (FUSP), a Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp) e a Fundação para o Desenvolvimento da Unesp (Fundunesp). Nas oitivas desses dirigentes, aponta a deputada, repetiu-se “a perseverante alegação de que ora são instituições privadas, ora são instituições de direito privado e, portanto, alheias aos ditames da administração pública, o que é notoriamente uma afronta, ilegal e necessária de ser combatida”.
As fundações privadas ditas “de apoio”, define a deputada, ficaram claramente caracterizadas como “instrumentos de repasses de recursos financeiros a agentes públicos ligados às universidades, servindo ao pagamento de diárias, financiamento de projetos de pesquisa que não apresentam finalidade, realização de atividade típica de fuga de licitação ou ainda instrumento de favorecimento de servidores ligados à alta cúpula das universidades”. Essas entidades, continua, foram “idealizadas e construídas por servidores, docentes e não docentes, com claro objetivo de servir aos interesses próprios de suas atividades, driblando em inúmeras vezes as leis que estão postas em nosso ordenamento para direcionar e atingir a finalidade pública”.
Valeria sugere que o governador apresente projeto de lei determinando que as universidades públicas e institutos de pesquisa de São Paulo “fiquem proibidos de estabelecer convênios ou parcerias com fundações privadas, porém autorizando cada ente a instituir uma única fundação pública de direito privado para atender a finalidade de desenvolvimento das instituições, vedadas as atividades típicas de organizações sociais (OSs), como a contratação de pessoal”. O relatório recomenda ainda que as universidades públicas e institutos de pesquisa “não permitam que docentes ocupem cargos de chefia, direção e controle administrativo, de qualquer fundação, instituto ou entidade correlacionada, para não prejudicar as atividades acadêmicas”.
“Governança mais técnica e menos política”, pede Daniel José
Na sub-relatoria sob sua responsabilidade (Contratos e Consórcios, Controle de Gastos e Prestação de Serviço Realizado), Daniel José sistematizou a defesa dos pontos de vista que expôs ao longo de todas as sessões da CPI, pleiteando “uma reforma na governança corporativa, na eficiência operacional, na autonomia financeira, na excelência acadêmica e na reestruturação das atividades das três instituições paulistas”.
Na avaliação do jovem deputado, “há uma série de sobreposições entre as três universidades paulistas, por exemplo a USP da cidade de Lorena ensina engenharia e próximo dali temos a Unesp Guaratinguetá oferecendo os mesmos cursos”. Portanto, é preciso “repensar essas atribuições e incorporar uma visão de sistema”. José sugere estruturar “os campi e as matérias de maneira coerente” para “formar mais pessoas em cursos com demandas reais para a economia paulista”.
As universidades devem incorporar “práticas modernas de governança corporativa”, aponta. Se elas não contarem com “processos e instrumentos de gestão minimamente adequados”, José considera que “é preocupante o longo prazo dessas três instituições que tanto nos orgulham”. “Minha principal recomendação para esta CPI é que as universidades paulistas mudem hábitos e se baseiem em bons exemplos e evidências para inovar e se modernizar. Nossas instituições têm potencial para serem referências mundiais em termos de estrutura, ensino e pesquisa, mas para tanto precisam adotar estratégias que reformulem a governança corporativa, a eficiência operacional, a autonomia financeira e a estruturação das atividades de ensino e pesquisa”, diz.
Um dos eixos para as mudanças que José defende é a adoção de uma “governança mais técnica e menos política” — como se a política pública de ensino superior fosse executada por um ente que não fizesse parte do mundo da administração pública, e portanto da política.
O próprio deputado escorrega na escuta que fez de um dos depoimentos, o do reitor da Unesp, Sandro Valentini — que, na interpretação de José, teria dito que a expansão da universidade “deriva de um passado histórico de interferência política sem atender nenhum tipo critério técnico para beneficiar os alunos, a população local e o estado de São Paulo como um todo”. Valentini fez sim menção a pressões de governos e de parlamentares para a criação de unidades da Unesp em determinadas regiões, mas também deixou claro que critérios como o perfil socioeconômico e a ausência de ensino superior nas proximidades são determinantes no processo. Atribuir a expansão da universidade apenas à “interferência política”, como alega o deputado, é uma demasia que a fala de Valentini não corrobora.
José defende ainda que se crie “um processo de seleção da Reitoria e da liderança das instituições que priorize critérios técnicos” para a escolha dos dirigentes, inclusive reitores, hoje feita “de maneira totalmente política”. Na avaliação do deputado, os dirigentes podem ser recrutados fora das universidades em processos comandados por headhunters, como ocorre em grandes empresas, “pois um docente da instituição não necessariamente possui as habilidades específicas necessárias para a gestão o pleno desenvolvimento da instituição”. O deputado acredita ainda que os conselhos universitários deveriam ter “uma estrutura de governança mais simplificada formada por 20-30 pessoas” como “alternativa produtiva e suficiente”.
José também sugere a “busca por fontes alternativas de receita” (outro de seus “mantras” nas sessões da CPI), entre elas “a concessão para a iniciativa privada de espaços nos campi universitários, cobrança de estacionamento de automóveis, criação de fundo patrimonial para viabilizar doações inclusive possibilitando doações no modelo naming rights” e, claro, a “cobrança de mensalidades para quem tem condições financeiras”.
O deputado menciona ainda ter recebido “inúmeras sugestões e denúncias anônimas sobre as universidades”, sendo que “um dos principais temas envolvidos nas denúncias diz respeito ao absenteísmo docente”. “Muitos alunos se queixam que os professores faltam às aulas com frequência e não apresentam justificativa. Alguns professores também manifestaram indignação em relação à displicência de outros docentes”, diz. Entretanto, nem durante as sessões nem no próprio relatório foram apresentados casos ou exemplos concretos para corroborar as denúncias.
Relatório pede punição “com celeridade” de envolvidos em “casos de vandalismo”
O relatório inclui ainda a apresentação de um projeto de lei de iniciativa do Executivo sobre os critérios de provimento na categoria docente de professor titular das universidades estaduais paulistas (o Informativo Adusp voltará ao tema). Ao final, há outras sugestões formuladas pela deputada Valeria Bolsonaro (PSL), tais como:
* recomendação para que as universidades “recrudesçam seus regulamentos disciplinares no sentido de punir, com celeridade, após o devido processo legal com ampla defesa e contraditório, os alunos, docentes ou funcionários envolvidos em casos de vandalismo ou depredação de bens das universidades que sofram danos em decorrência de paralisações, greves e outros sinistros”;
* recomendação de que as universidades criem “Superintendências ou Departamentos de Compliance e Governança, contratando gestores externos com experiência gerencial”; e
* apresentação de um projeto de resolução criando a Comissão das Universidades Públicas, faculdades públicas e institutos de pesquisa como comissão permanente da Alesp. Os reitores das universidades e dirigentes máximos das faculdades públicas e institutos de pesquisa, bem como da Fapesp, seriam convidados a integrar a comissão, porém sem direito a voto.
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