A audiência pública convocada pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) para colher contribuições da comunidade sobre a proposta de implementação da Comissão de Heteroidentificação no vestibular da USP, realizada na Faculdade de Direito da USP no dia 12/7, acabou ampliando o seu escopo inicial e se transformou numa espécie de grande debate sobre racismo, ações afirmativas, política de cotas e diversidade.
A reunião também deixou clara a necessidade de intensificar a discussão sobre a adoção de formas de ingresso para outros grupos, incluindo um vestibular indígena, a exemplo do que já ocorre em universidades públicas como a Unicamp e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
A USP foi a última universidade estadual paulista a implantar a política de cotas étnico-raciais, aprovada apenas em 2017, após grande pressão e articulação dos movimentos sociais. A audiência pública de 12/7 (assista à integra aqui) tinha como objetivo receber avaliações da minuta, apresentada pela PRIP, das diretrizes da Comissão de Heteroidentificação.
“Queremos mais ouvir do que responder ou fazer um debate. Nos interessa mais a escuta neste momento”, disse a pró-reitora da PRIP, Ana Lúcia Duarte Lanna. “Estamos fazendo a busca por oferecer uma resposta necessária a uma demanda muito consolidada de coletivos e movimentos negros dentro da universidade.”
O processo de discussão sobre a comissão, ressaltou, antecede a criação da própria PRIP, implantada apenas em maio deste ano, e deve continuar depois do vestibular.
A comissão vai averiguar a autodeclaração de raça da(o)s candidata(o)s apta(o)s a se beneficiar(em) do recorte étnico-racial da política de ação afirmativa da USP, de modo a identificar casos de autoidentificação errônea ou eventuais fraudes antes da confirmação da matrícula.

Classificação será primeiro por ampla concorrência e depois pelas cotas

A criação do colegiado é uma das novidades aprovadas no dia 23/6 pelo Conselho de Graduação (CoG) para o vestibular 2023. O CoG decidiu que toda(o)s a(o)s candidata(o)s concorrerão primeiramente às vagas destinadas à ampla concorrência. Aquela(e)s que, independentemente da renda, cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas do país também poderão concorrer às vagas destinadas à Política de Ação Afirmativa Escola Pública (EP). Da mesma forma, a(o)s candidata(o)s autodeclarada(o)s preta(o)s, parda(o)s e indígenas que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas podem concorrer também às vagas destinadas à Política de Ação Afirmativa Pretos, Pardos e Indígenas (PPI).
“Todos os candidatos inscritos para um curso, independentemente da categoria em que se inscreveram (Ampla Concorrência, Escola Pública ou PPI) serão classificados de acordo com sua nota no vestibular. Dessa forma, serão preenchidas primeiramente as vagas para Ampla Concorrência, depois as vagas para Escola Pública, seguindo os critérios para essas vagas, e só depois as vagas para PPI”, publicou o Jornal da USP a respeito das decisões.
De acordo com o Manual do Candidato, divulgado pela Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) na última segunda-feira (1/8), para ter direito à ação afirmativa a(o)s candidata(o)s selecionada(o)s que concorreram às vagas reservadas aos autodeclarada(o)s preta(o)s, parda(o)s ou indígenas “deverão possuir traços fenotípicos que os caracterizem como negro, de cor preta ou parda (conforme Guia de Heteroidentificação) ou, no caso dos indígenas não registrados civilmente como indígenas, apresentar a Certidão do registro administrativo expedida pela FUNAI (Registro Administrativo de Nascimento Indígena – Rani)”.
“A autodeclaração de raça do candidato”, prossegue o manual, “será verificada por comissão composta especificamente para este fim, segundo procedimento definido pelo Conselho de Inclusão e Pertencimento da USP”.
A Fuvest vai divulgar o Guia de Heteroidentificação na quarta-feira da próxima semana (10/8). Uma vez que a PRIP não adiantou os termos do documento final, não é possível saber quais contribuições e comentários da audiência pública foram incorporados pela USP. As inscrições para o vestibular serão abertas no dia 15/8.

Minuta da PRIP falava em uma comissão, enquanto Unicamp tem dez bancas

A proposta constante na minuta da PRIP previa a formação de uma comissão de heteroidentificação composta por cinco membros e seus respectivos suplentes. A comissão, de maioria negra, teria um(a) representante da PRIP; um(a) docente fenotipicamente negro da USP; um(a) discente da graduação indicado pela Coligação dos Coletivos Negros da USP; um(a) representante da sociedade civil com comprovada atuação no movimento; e um(a) funcionária(o) técnico-administrativa(o) da USP. A(o)s representantes docente, discente e da(o)s servidora(e)s serão eleita(o)s por voto direto, via sistema Helios Voting.
Os membros da comissão de heteroidentificação devem passar por oficinas de capacitação antes do início das atividades para conhecer os critérios de heteroidentificação. “Essa é uma preocupação muito grande em todas as instituições com quem a gente conversou”, salientou na audiência a professora Adriana Alves, da Diretoria de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da PRIP. A professora também enfatizou que “é um dever da universidade desestimular tentativas de fraude”.

A formação de apenas uma comissão foi um dos pontos que receberam atenção da(o)s convidada(o)s para a audiência pública de julho.

Vitor Gonçalves da Silva, estudante de Engenharia Agrícola e membro da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial da Unicamp, chamou a atenção para o fato de que a comissão única dificilmente conseguirá dar conta da demanda. Na Unicamp, que regulamentou o processo de heteroidentificação em 2020, são dez bancas que trabalham ao longo de dois meses, envolvendo cerca de cem pessoas para avaliar, em média, mil candidata(o)s.
“O processo existe para endereçar as políticas afirmativas a quem as detém por direito”, afirmou. “As comissões de heteroidentificação não são tribunais raciais nem existem somente para coibir fraudes. São mais do que isso: um trabalho protagonizado pelo movimento negro para que a gente possa endereçar as políticas afirmativas. Isso não pode sair da vista de quem está à frente do processo.”
A advogada e socióloga Anna Carolina Venturini, pós-doutoranda do Programa Internacional de Pós-Doutorado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), ressaltou que “é fundamental separar eventual desacordo na declaração do candidato da fraude na declaração”.
“As fraudes pressupõem uma intenção, e temos visto que esses casos representam um percentual muito baixo em todo o universo beneficiado pelas cotas. As alegações de que a maioria dos cotistas é de fraudadores, sem que haja evidências efetivas, enfraquecem o debate sobre ações afirmativas e criam munição e argumentos para aqueles que querem acabar com essas políticas, uma das mais importantes das últimas décadas”, alertou.

Políticas precisam focar em quem é identificado como negra(o) em todos os contextos, defende professora

A professora Gislene Aparecida dos Santos, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e da pós-graduação na Faculdade de Direito, ressaltou que é preciso “considerar raça/cor não como formas de identidade subjetiva, mas sim para efeito de políticas públicas reparatórias e inclusivas”.
“É fundamental entender que raça designa localização social e classificação social.
Trata-se do modo como grupos de pessoas foram e são classificados e localizados socialmente e o que essa localização define em termos de acesso a bens, direitos, reconhecimento e respeito ao longo de toda uma vida”, pontuou.
A professora observou que a classificação racial depende de contextos, mas no caso brasileiro os contextos históricos demonstram e revelam quem, em continuidade, tem sido sistematicamente marcado como negro, alvo de exclusões de acesso a bens e direitos de modo sistemático, geração após geração.
“Para efeito de política pública, o que importa não é o que cada um entende que é em termos de raça ou cor, e sim o modo com que em relação ao tom de pele e ao fenótipo a sociedade localiza e classifica a pessoa”, afirmou.
A docente fez referência à metáfora do trem, segundo a qual pessoas que entrem nos vagões em diferentes estações podem ser “lidas” como brancas a depender do contexto social da região em que o trem estiver passando.
“Uma pessoa pode se identificar como negra por afrodescendência mesmo que não tenha fenótipos bem marcados, pode construir sua identidade subjetiva como tal, contudo não pode alegar, para efeitos de justiça racial, que tenha sido sempre marcada e classificada socialmente como negra”, disse. Assim, “as políticas públicas focalizadas em raça e cor devem incidir sobre quem é, em todas as estações do trem, identificado e classificado como negro por fenótipo sem exceções no Brasil”, defendeu.
As comissões de heteroidentificação são essenciais, considera a professora, “não para dizer quem é a pessoa em termos de identidade subjetiva, mas sim como ela é classificada socialmente”.
Uma vez definido o critério de fenótipo, salientou, “é também fundamental entender de maneira bastante explícita qual o conjunto de características que devem estar presentes nessa definição”.
Crítica deve se estender ao sistema socioeconômico
O professor Juarez de Paula Xavier, docente da Unesp e integrante da Comissão Central de Averiguação de Autodeclaração para Pretos e Pardos no Vestibular da universidade, afirmou que alguns dos pilares da política implantada na instituição vieram da análise da Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001.
“Durban mostrou a negação absoluta da humanidade da população negra. Naquele momento o Brasil tentava negar a existência do racismo, enquanto em outros países ele era explicitado”, lembrou.
A Unesp foi a pioneira entre as universidades estaduais paulistas na adoção de políticas afirmativas, com reserva de vagas já no vestibular de 2014. O objetivo inicial da formação da comissão, explicou o professor, era coibir as fraudes, mas a questão central era assegurar o ingresso de negros e negras nas universidades públicas brasileiras.
“Defendemos que o objetivo das políticas de ação afirmativa a partir de Durban não era apenas ter mais pretos e pardos na universidade, mas o de contribuir com uma política que permita a paralisação do massacre da população negra do país, a redução do genocídio da população negra brasileira”, afirmou o professor.
Regina Lúcia Santos, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU) e graduada em Geografia pela USP na década de 1970, foi às lágrimas ao relembrar sua trajetória de vinte e seis anos no movimento. “Desde a minha entrada no MNU lutamos pelo acesso e pela permanência para que a universidade reflita na sua composição de corpo docente, discente e de funcionários a composição da nossa sociedade”, disse.
“É de fundamental importância o olhar do movimento dentro dessa comissão. Foi de fato o movimento negro que construiu neste país um diálogo com as universidades que possibilitasse que elas enxergassem o ganho real de serem mais diversas”, afirmou.
Eunice Prudente, professora sênior da FD, ressaltou que apenas 129 docentes da USP se autodeclaram negros e negras num universo de mais de 5 mil pessoas.
A professora lembrou a participação do professor Dalmo de Abreu Dallari, falecido em abril deste ano, para que a discriminação racial fosse criminalizada. “Mas isso não é suficiente”, considera. “Como se comporta o Judiciário brasileiro, aquelas pessoas que exercem funções públicas tão importantes no Legislativo, no Executivo e em especial no Judiciário?”, questionou.
A professora defendeu que é necessário produzir uma crítica ferrenha ao sistema socioeconômico capitalista e à sua “produção de um número de pessoas num estado de pobreza insuportável e inaceitável, e são as nossas famílias negras”. “Não podemos perder isso de vista”, prosseguiu.
A entrada da juventude negra na universidade “sem dúvida alguma vai proporcionar críticas inteligentes ao sistema socioeconômico que temos, e isso é fundamental para o Brasil”, disse, afirmando ainda que “a USP também ganha muito com essa presença”.
Amanda Medina, graduanda em Direito, e Danielle Rosa Beserra, mestranda na Faculdade de Medicina da USP, representaram a Coligação de Coletivos Negros da USP, que reúne mais de 20 grupos. As alunas manifestaram o respeito pelo trabalho das gerações que lutaram por conquistas como a adoção das cotas étnico-raciais na USP e defenderam a necessidade de novos avanços. “Somos os sonhos vivos dos nossos ancestrais”, ressaltaram as estudantes.

O ambientalista Edson Kayapó, doutor pelo Programa de Educação: História, Política e Sociedade pela PUC-SP e membro da Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas da Unicamp, sugeriu a formação de uma comissão para avaliar e ampliar o ingresso de indígenas na USP.
Na sua avaliação, a identificação dos indígenas deveria ser feita por meio de carta de autorreconhecimento acompanhada de uma carta de reconhecimento de lideranças ou associações indígenas.
O Rani “não representa as nossas diversidades e nossos projetos societários”, afirmou Kayapó, opondo-se à exigência dessa documentação.
Estudantes que participam de movimentos indígenas da USP também se manifestaram para reivindicar políticas específicas de ingresso para indígenas.
A pró-reitora Ana Lúcia Duarte Lanna disse que a Comissão de Heteroidentificação se ocupará da autodeclaração de candidata(o)s negra(o)s no vestibular, mas que está conversando com os movimentos indígenas para elaborar políticas voltadas a essa população.

EXPRESSO ADUSP


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