A Coligação de Coletivos Negros da USP e o Núcleo de Consciência Negra (NCN) da USP divulgaram documento intitulado “Em defesa das cotas raciais e das comissões de heteroidentificação na USP”, no qual afirmam que “precisam ser discutidos com responsabilidade” os casos envolvendo a política de cotas e as bancas de heteroidentificação que tiveram repercussão na imprensa nos últimos dias.

Na prática, diz o texto, “o que tem sido visto é uma tentativa ilegítima de descredibilizar o trabalho que é fruto de uma conquista histórica do ativismo negro universitário, baseada em um ou outro caso considerado polêmico” .

Ao mesmo tempo, “pouco tem sido dito a respeito das centenas de alunos negros que se beneficiaram da atuação da banca de heteroidentificação ao longo dos últimos anos ou do significativo impacto à reputação da Universidade, que já não mais convive com as vergonhosas fraudes de antigamente” (leia aqui a íntegra do documento).

A Coligação de Coletivos Negros da USP foi criada em 2021 e reúne as agremiações negras das unidades de ensino e pesquisa da universidade. O documento lembra que “muitas pessoas de fenotipia não negra se autodeclaravam como PP (pretos e pardos) e ingressavam na universidade na condição de cotistas, se aproveitando dessa importante ação afirmativa”.

A Coligação “exerceu papel exitoso ao pressionar a USP para obtenção de melhorias no processo de seleção de cotistas e tem sido um pilar central na manutenção dessas mudanças”. “Além de ter conquistado espaços de negociação direta com a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento – instância encarregada da articulação das políticas de diversidade e inclusão implementadas na USP –, tornou-se a responsável pelas indicações de membros discentes de graduação e pós-graduação que integram a banca de heteroidentificação atuante no vestibular universitário”, relata o documento.

Acusação de “tribunal racial” revela desconhecimento do processo

Uma crítica recorrente em vários textos publicados na imprensa nos últimos dias afirma que a banca de heteroidentificação constitui um verdadeiro “tribunal racial”, o que as entidades repudiam: “Em primeiro lugar, é fundamental desmistificar a narrativa de que a banca é um ‘tribunal racial’. Acusações dessa natureza demonstram uma total falta de familiaridade com as etapas e critérios envolvidos nas averiguações de candidatos autodeclarados negros (pretos e pardos) e com a eficácia que essa ferramenta tem demonstrado em dezenas de vestibulares e concursos públicos do país”, diz o documento.

Ao realizar “análises fenotípicas que preservam a dignidade dos candidatos”, as bancas “têm se revelado uma ferramenta reconhecida pelo seu emprego frequente em muitas universidades do país ao longo das últimas décadas, angariando certo consenso entre os ativistas do Movimento Negro, as autoridades públicas e o próprio Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a sua constitucionalidade em dois momentos (ADPF 186 e ADC 41)”.

A Coligação e o NCN sustentam ainda que “é essencial ressaltar que a heteroidentificação da USP está em total consonância com os princípios e valores que regem uma averiguação fenotípica adequada”, explicando que tanto a banca de heteroidentificação quanto a banca recursal são bastante diversas e qualificadas, incluindo representantes de todas as categorias presentes na instituição e também da sociedade civil.

Além disso, há várias etapas para o seu funcionamento, com diversos passos que “fornecem uma evidência bastante sólida de que a heteroidentificação na USP não visa perpetuar injustiças, mas garantir um processo de averiguação justo e transparente”. “Todo o empenho na garantia da qualidade do procedimento foi pensado precisamente para assegurar que a política de cotas raciais, por anos perturbada pela narrativa de que cotas devem ter um caráter exclusivamente social, seja protegida e aprimorada sempre que possível”, prosseguem as entidades.

“Os debates em torno dos desafios e das controvérsias relacionadas às bancas de heteroidentificação continuarão a ser pauta em aberto na Universidade de São Paulo por muitos anos. Esse diálogo é fundamental para fomentar um ambiente democrático de aprendizado institucional e de intercâmbio entre o ativismo negro e a administração universitária. No entanto, é preciso que esses debates se desenvolvam não com o intuito de desacreditar as bancas, mas sim defendê-las e aprimorá-las, reconhecendo sua eficácia na salvaguarda da política de cotas raciais”, finaliza o documento.

Reitor fala em “aprimorar” o processo de análise

As críticas vieram a público depois da divulgação do caso do estudante Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos, que foi aprovado para uma vaga na Faculdade de Direito na primeira chamada do Provão Paulista, mas não foi considerado pardo no procedimento de heteroidentificação da USP, o que o levou a perder a vaga.

Nesta segunda-feira (4/3), o juiz Randolfo Ferraz de Campos, da 14ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), concedeu liminar determinando o restabelecimento da matrícula no prazo de três dias. Em nota à imprensa, a USP afirmou que cumprirá “quaisquer ordens judiciais” e que apresentará em juízo “todas as informações que explicam e fundamentam o procedimento de heteroidentificação”.

Em entrevista à jornalista Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior disse que a USP vai “debater e aprimorar” o processo de análise, proporcionando encontros presenciais de todos(as) os(as) candidatos(as) com as bancas de heteroidentificação. Em alguns casos, como no de Glauco, as entrevistas são realizadas de forma remota, por videochamada.

A USP pagaria as passagens, quando necessário. “São cerca de 200 candidatos por ano nessa situação. É mais barato arcar com o custo das viagens do que deixar qualquer dúvida no ar e expor a instituição”, afirmou Carlotti Junior à Folha. Outro desafio, apontou o reitor, é “acertar as réguas” dos critérios usados pelos integrantes das comissões.

Em entrevista ao programa “Ponto a Ponto”, na TV BandNews, nesta quarta-feira (6/3), Carlotti defendeu as ações da USP. “Não podemos deixar que esse assunto, como tenho visto nos jornais, se transforme em um programa contra as cotas. É um risco que corremos durante essa discussão e gostaria de evitar que isso ocorresse. Não podemos ter críticas a ponto de invalidar o que tem sido feito pelas universidades públicas brasileiras”, afirmou.

Já a pró-reitora de Inclusão e Pertencimento, Ana Lúcia Duarte Lanna, e o pró-reitor de Graduação, Aluisio Cotrim Segurado, defenderam a política da universidade em artigo publicado no Jornal da USP na última terça-feira (5/3).

“Neste ano de 2024, até o momento, 1.606 candidatos foram analisados nas fases da heteroidentificação, que compreendem, inicialmente, duas avaliações de fotos por bancas independentes e, quando necessário, uma oitiva presencial ou virtual, uma comissão recursal e pelo Conselho de Inclusão e Pertencimento. No processo avaliativo são envolvidas aproximadamente 70 pessoas, respeitando, nessas comissões, a diversidade étnico-racial e de gênero”, diz o texto. “Entre os 1.606 que passaram pela heteroidentificação, 1.387 foram aprovados (86%); 187 foram considerados não aderentes à política afirmativa (12%) e 32 não compareceram às oitivas (2%).”

“Estamos convencidos de que as comissões de heteroidentificação e as políticas afirmativas, lados de uma mesma moeda, têm garantido o processo de inclusão social e de construção de uma universidade pública mais diversa e socialmente plural, mantendo seu nível de excelência, recentemente reconhecido em rankings acadêmicos internacionais em posições de destaque nunca antes alcançadas”, concluem.

EXPRESSO ADUSP


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