Memória
Gerhard Malnic (1933-2023), cientista brilhante, despojado e sempre solidário
Na última sexta-feira (25/2), a USP e o Brasil perderam Gerhard Malnic, aos 90 anos (1933-2023). Professor titular aposentado e professor emérito do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), fundador e depois diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA), dirigente de importantes sociedades científicas do Brasil e da América Latina, Malnic era considerado “referência na área de fisiologia renal no Brasil”.
A Reitoria da USP decretou luto por sua morte, e notas de pesar foram emitidas pelo ICB, pelo IEA, pela Sociedade Brasileira de Nefrologia e pela Federação das Sociedades de Biologia Experimental (FesBE), para quem Malnic “era um pesquisador aclamado na área de Fisiologia e Biofísica do rim, particularmente em transporte de íons pelo epitélio tubular renal, incluindo acidificação urinária e regulação da atividade iônica celular”.
De acordo com a Agência Fapesp, “ao longo da sua carreira científica, Malnic foi responsável pela formação de mais de 20 doutores, pela publicação de mais de 150 artigos científicos publicados em renomadas revistas científicas internacionais, dois livros e 13 capítulos de livros”. Além disso, presidiu a Sociedade Brasileira de Biofísica (SBBf), de 1983 a 1985; a Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis), de 1985 a 1988; e a FeSBE, entre 2003 e 2007.
A par de sua reconhecida atividade científica, mas fortemente ligada a ela, o professor do ICB desenvolveu uma discreta, porém notável militância política, tanto no movimento sindical docente quanto na própria sociedade. Em plena Ditadura Militar (1964-1985), concordou em integrar a diretoria da Adusp, fazendo parte da gestão 1981-1983 no cargo de 1o vice-presidente. Foi um gesto político importante, mas não o primeiro.
No início dos anos 1970, concordara em testemunhar em favor do então estudante Paulo Vannuchi, da Faculdade de Medicina (FM), processado na Justiça Militar por sua participação em uma greve desencadeada contra a absurda cassação dos professores Isaias Raw e Alberto Carvalho da Silva. Em 2008, quando a Congregação da FM decidiu homenagear um grupo de docentes que foram perseguidos pela Ditadura Militar, concedendo-lhes o título de eméritos, Vannuchi, à época ministro dos Direitos Humanos, compareceu e fez questão de homenagear Malnic, presente à cerimônia: “Quero agradecer ao professor Gerhard Malnic, que teve a coragem de ser minha testemunha de defesa na Auditoria Militar no momento em que todos sabiam que isso podia lhe custar investigação, problemas na carreira”.
Este era Malnic, visceralmente solidário, sem medir consequências frente às suas convicções democráticas. Durante a greve dos docentes da USP por reajuste salarial, em 2000, convidado pela Adusp a integrar uma comissão de mediação, aceitou a incumbência e se pôs a dialogar com a Reitoria em busca de uma solução negociada para o conflito, ao lado dos colegas Antonio Candido, Dalmo Dallari, Aziz Ab’Saber, Milton Santos e Alfredo Bosi. Dispensa explicações o fato de que esse grupo passaria a ser conhecido como “Comissão dos Notáveis”.
Na greve de 2000, Malnic assumiu com desenvoltura e seriedade o papel de mediador
Numa cronologia publicada ao final da greve, o Informativo Adusp registrou: “9 de junho– O dia é marcado pelo esforço de docentes e funcionários em reabrir as negociações. O professor Malnic negocia por telefone com o reitor, e, ainda pela manhã, envia mensagem à Adusp e anexa documento da Reitoria com vários compromissos, aceitando a reabertura de negociações desde que os piquetes sejam desativados, e mensagem do reitor a Malnic, onde se depreende um pedido de sigilo e o reconhecimento do papel mediador da Comissão de Mediação”.
Depois disso, a assembleia dos funcionários aprovou a flexibilização do piquete; no entanto, a Reitoria divulgou para os diretores de unidades os compromissos apresentados na sua proposta original; e, pior ainda, a Reitoria retirou a proposta, alegando que a Adusp a havia distorcido. Então, parte da comissão de mediação (Malnic, Candido e Ab’Saber) reúne-se e solicita ao reitor uma audiência. Marcovitch, no entanto, recusa-se a receber o grupo. Os mediadores dispõem-se, então, a comparecer à próxima assembléia da Adusp, para dar seu testemunho sobre o comportamento da entidade e o do reitor.
Mais uma vez, nos socorremos da cronologia publicada pelo Informativo Adusp: “12 de junho– Na assembléia, a platéia emocionada ouve os depoimentos dos professores Gerhard Malnic, Aziz Ab’Saber, Alfredo Bosi, Dalmo Dallari e Antonio Candido, todos da Comissão de Mediação (o professor Milton Santos não pode estar presente, por problemas de saúde). A Comissão faz depoimento histórico e é aplaudida de pé. A assembléia aprova a continuidade da greve”.
Este singelo relato é suficiente para se avaliar a seriedade com que Malnic se conduziu à frente de seu mandato, conferido pela Assembleia Geral da Adusp, de mediador a serviço da categoria docente. Uma vez encerrada a greve, que alcançou a vitória após cinquenta dias, conquistando um reajuste parcelado de 25%, ele voltaria a colaborar com a entidade representativa dos docentes em outros momentos.
Em setembro de 2002, quando era diretor do IEA, publicou na Revista Adusp o artigo “Debate sobre política científica e tecnológica perde uma voz importante”, em memória do professor Alberto Carvalho da Silva, de quem foi muito próximo e que falecera em junho daquele ano. Malnic observou que Silva, seu orientador de doutorado na FM, não somente renovou o corpo docente da instituição, que passou a dedicar-se mais intensamente às atividades científicas, “mas também o curso de Fisiologia”, com ênfase em atividades práticas.
“Nesta época”, descreveu Malnic, ironizando a perseguição que o colega sofrera dos militares, “de suas atividades ‘subversivas’ constavam a instalação do Biotério da Faculdade de Medicina, que foi fundamental para os trabalhos de pesquisa da faculdade, incluindo a construção de um novo prédio que só recentemente foi completado, e a criação da Associação dos Auxiliares de Ensino da USP, precursora da Adusp”.
Em abril de 2009, a convite da Adusp, o professor do ICB participou do debate intitulado “A Ditadura Militar morreu?”, realizado no Instituto de Física e convocado para assinalar o lançamento da edição 44 da Revista Adusp, cuja matéria de capa tratava da mesma questão. Malnic foi um dos debatedores, ao lado de Fábio Konder Comparato, da Faculdade de Direito, Maria Victoria Benevides, da Faculdade de Educação, e João Zanetic, então presidente da Adusp.
“Quando li esta revista, me chamou obviamente atenção um capítulo sobre uma homenagem que a Faculdade de Medicina fez a oito professores exonerados, ou cassados, ou aposentados, não sei qual é o título exato que a gente deve dar, mas que foram expulsos e ficaram sem reconhecimento real do que aconteceu com eles de 1964 e 1968 praticamente até hoje”, disse Malnic ao iniciar seu depoimento, conforme registrou o Informativo Adusp 279. “E como eu conheci muitos deles, e fui admirador, continuo sendo admirador, de muitos deles, do ponto de vista de sua coragem, mas também de sua capacidade científica, eu gostaria de lembrar a vida de alguns deles, que me deixou profundas marcas”.
Malnic deplorou a participação cúmplice de docentes da própria faculdade nas perseguições ocorridas na época: “Isto aconteceu na Faculdade de Medicina, e sabe-se que muito provavelmente por ação de vários membros, professores, desta faculdade, e atingiu um número considerável de pessoas, muito mais do que os oito declarados eméritos”.
Ele destacou aspectos das trajetórias acadêmicas dos professores Silva, Raw, Samuel Barnsley Pessoa, Erney Plessmann de Camargo, Luiz Hildebrando Pereira e Luiz Rey, e elogiou a coragem do professor José Moura Gonçalves, o qual, quando diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), recusou-se a permitir prisões naquela unidade: “‘Não aceito isso’, ele disse, ‘só sobre o meu cadáver. Ninguém vai entrar na Faculdade para procurar gente culpada de coisas políticas’. E isso deu certo”, relembrou.
“Era uma dessas figuras que se impunham pela respeitabilidade”, diz Ciro Correia
O modo como Malnic interagia na universidade, seu comportamento íntegro e coerente, foram destacados pelo professor Ciro Teixeira Correia, ex-presidente da Adusp e do Andes-Sindicato Nacional. “Em diferentes momentos de discussão sobre política científica, sobre democracia na Universidade, sobre a relevância da Fapesp, eu me lembro de posicionamentos dele em público, em reuniões em que eu estava ou em eventos na Reitoria, sempre muito precisos, contundentes, ponderados. E sempre com uma visão muito respeitosa em relação às representações, a se ouvir a comunidade, muito ao contrário de outras figuras com que a gente conviveu”, comentou Ciro, a pedido do Informativo Adusp. “O que presenciei foi sempre algo muito positivo, muito respeitoso, e as intervenções dele muito tocantes, era uma dessas figuras que se impunham pela respeitabilidade”.
Em artigo publicado em 26/2 no Jornal da USP, Vagner Roberto Antunes, chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), homenageou a memória do professor emérito, trazendo importantes informações biográficas. “Professor Malnic, como muitos o conheciam, nasceu em Milão, na Itália, mas era filho de austríacos, Erich Malnic e Suzann Spieler Malnic. O pai era químico especializado em corantes e foi contratado por uma indústria química alemã para vir ao Brasil. Inicialmente, mudou-se para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, para trabalhar na indústria de tecidos, no bairro do Belenzinho”, relata.
Segundo o autor, Malnic chegou ao país com quatro anos de idade e naturalizou-se brasileiro aos 23. “Ele estudou no Colégio Visconde de Porto Seguro a partir dos seis anos de idade, onde se destacou como um dos melhores alunos e também aprendeu alemão. Em casa, aprendeu um pouco de latim e grego, porque o pai achava importante. Sempre gostou de química e queria ser químico como o pai, tendo até um pequeno laboratório de química em casa”. No entanto, a conselho do pai, ingressou na Faculdade de Medicina da USP em 1952 (em primeiro lugar), formando-se em 1957.
Malnic doutorou-se em Medicina em 1960. Fez pós-doutorado nos Estados Unidos, na Tulane University, New Orleans (1961-62), e na Cornell University Medical College (1962-64). Ingressou como professor no ICB em 1959, tornando-se livre-docente em 1965 e titular em 1972. Foi chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica e diretor do ICB.
No final da década de 1980, participou do grupo de trabalho encarregado da fundação do IEA, ao lado de outros docentes de grande prestígio. A primeira formação do Conselho Diretor do IEA incorporou os protagonistas dessa iniciativa: Carlos Guilherme Mota (diretor), Gerhard Malnic (vice-diretor), Alfredo Bosi, Herch Moyses Nussenzveig, José Galízia Tundisi e Paul Israel Singer.
Malnic foi casado com Margit Petry Malnic (1935-2019), tradutora e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). O casal teve duas filhas: a musicista e arranjadora Beatriz Malnic (que vive nos Estados Unidos) e Bettina Malnic, professora associada do Instituto de Química da USP. O professor emérito deixa também as netas Helena, Alice e Gabriela.
Gerhard Malnic, presente!
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Revista nº 68 - novembro de 2024
- Ex-reitores(as) exigem “punição exemplar” de generais, coronéis e civis envolvidos na trama golpista para assassinar Lula, Alckmin e Moraes
- Alesp aprova projeto que corta recursos da educação pública, proposta qualificada como “retrocesso” e “crime” pela oposição
- Instituto de Psicologia confere diploma póstumo a Aurora Furtado, assassinada pela Ditadura Militar, em cerimônia tocante que também lembrou Iara Iavelberg
- Mais uma vez, Restaurante Universitário de Piracicaba deixa de fornecer refeições, e estudantes exigem “desterceirização” do equipamento