No coração do câmpus da USP de Ribeirão Preto os bugios-pretos (Alouatta caraya) desempenham um papel crucial na manutenção do equilíbrio ecológico. Atuam como semeadores de árvores, auxiliam na manutenção e regeneração das matas e florestas. Ademais, são nossos guardiões, pois são considerados sentinelas de algumas doenças, como a febre amarela (FA). Isto significa que eles adoecem e morrem para nos alertar que esse vírus está circulando próximo de nós. Contudo, a FA tem-se tornado cada vez mais uma ameaça agressiva, causando impacto sobre a conservação e manutenção desses primatas.

Primatas não humanos neotropicais da espécie Alouatta caraya (bugio-preto): a) macho adulto, em cativeiro, com amputação de membros por eletrocussão; b) macho adulto, de vida livre, expressando comportamento natural em área de bambuzal; c) fêmea adulta, de vida livre, doente, em área de ocorrência de febre amarela no câmpus da USP, em dezembro de 2024 (fonte: Márcio Siconelli).

A FA é uma doença viral de evolução aguda, causada pelo Orthoflavivírus flavi (vírus da febre amarela-VFA), da família Flaviviridae e que, em humanos, nos casos mais graves pode atingir entre 30% e 50% de letalidadei. Desde 1942, no Brasil, não se tem relato de casos originários da transmissão urbana. Contudo, devido à adaptação ao ambiente silvestre, o VFA estabeleceu um ciclo enzoótico envolvendo primatas não humanos (PNHs) e mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes.

A partir de então o ciclo silvestre ganha destaque, sendo responsável por todos os casos registrados no país, cerca de 3.800 casos humanos até 2020 no Brasilii. Ao longo dos anos a região extra-amazônica, com destaque para a região Sudeste, vem sofrendo sucessivas ondas epidêmicas, onde o vírus “escapa” da região amazônica (área endêmica) e por meio de grandes corredores ecológicos alcança populações suscetíveis de outras regiões. O evento mais expressivo de transmissão até o momento ocorreu entre os anos de 2016 e 2019, com um acumulado de 2.269 casos humanos confirmados, com pelo menos 779 óbitosiii. Nesse mesmo período foram registradas 1.810 epizootias confirmadas, envolvendo ao menos 2.216 PNHs.

Embora todos os PNHs sejam considerados suscetíveis ao VFA, é evidente que certos gêneros, como o Alouatta, apresentam elevada suscetibilidade e sucumbem à doença quase que em sua totalidadeiv. Cerca de 80% da população de bugios-pretos (Alouatta caraya) e bugios-ruivos (A. guariba) foram eliminados pelo VFA no Rio Grande do Sul entre os anos de 2008 e 2009v. Entre 2017 e 2019, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, as populações de bugio-ruivo sofreram redução significativa, sendo muitos grupos dizimados. Dada a elevada sensibilidade à infecção, esse gênero é considerado nosso maior sentinela para a circulação do VFA, pois por produzir altos títulos virais no sangue é considerado um amplificador de excelência. Portanto, desenvolve uma doença aguda grave, semelhante àquela do ser humano, resultando no óbito. Assim, após passar por uma região, eliminando quase a totalidade desses animais, estima-se que entre cinco e oito anos seja um período razoável para que as populações remanescentes se reestabeleçam e gerem novos descendentes suscetíveis. Por isso, epidemiologicamente é esperado que o VFA retorne a essas regiões, outrora afetadas, em um período de cinco a oito anos.

A última circulação do VFA no município de Ribeirão Preto ocorreu entre os anos de 2016 e 2017, sendo registrados cinco PNHs positivos: três saguis-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) e dois bugios-pretos (de um bando de aproximadamente cinco indivíduos). Além disso, uma pessoa faleceu no mesmo período. Apesar disso, não houve registro desse vírus no câmpus da USP, onde conhecidamente, existia uma grande população de bugios-pretos, com aproximadamente 55 indivíduos.

Os estudos e a suplementação deste primata ocorreram há mais de vinte anos no câmpus, por pesquisadores do “Projeto Barba Negra” (Biologia, FFCLRPvi, vii). Os bandos eram monitorados regularmente e faziam parte de projetos de conservação e saúde do câmpus. Aparentemente, naquela ocasião, o vírus circulou com maior intensidade no entorno da cidade ou a população dos bugios da USP foi poupada pelas medidas agressivas de controle da FA, implementadas pela Secretaria de Saúde de Ribeirão Preto.

De fevereiro de 2017 até 24 de dezembro de 2024, nenhum evento suspeito de circulação da febre amarela (FA) foi registrado em Ribeirão Preto. No entanto, o dia 25 de dezembro de 2024 ficará marcado nos registros da saúde pública como o retorno do vírus ao município. Nessa data, os primeiros bugios foram encontrados mortos no câmpus da USP. Até o dia 29 de janeiro de 2025 já foram registrados 17 bugios mortos ou doentes, além de três saguis-de-tufos-pretos, todos vítimas da FA.

O câmpus abrigava sete bandos, com cerca de 60 indivíduos em média, mas dados os últimos registros, tanto de carcaças totalmente decompostas, como do cheiro forte que vem das áreas de mata e dos relatos de que os animais desapareceram, silenciando as matas, o temor de que essa população possa ter sido dizimada se torna cada vez mais real. Além da FA, outros eventos, como atropelamentos, também contribuiram para o declínio da espécie em 2024, evidenciando a necessidade de estratégias abrangentes e interdisciplinares de conservaçãoviii, ix.

Os bugios não são apenas símbolos da biodiversidade local; são também uma espécie ameaçada de extinção no Estado de São Paulo (Livro vermelho – “Fauna Ameaçada de Extinção no Estado de São Paulo – vertebrados, 2008”, publicado pela Secretaria do Meio Ambiente – SMA-SP e a Fundação Parque Zoológico). Perder esses animais significaria não somente um impacto ecológico, mas também uma perda irreparável para a ciência, a saúde pública e o patrimônio natural da região. A epizootia de febre amarela de 2017-2019 foi responsável por elevar a classificação de risco do bugio-ruivo, de “QUASE AMEAÇADOS” (NT) para “EM PERIGO” (EN) de extinção, dado o declínio populacional que se seguiu após aquela epizootiax. Após esta epizootia do câmpus da USP, algo semelhante poderá acontecer com os bugios-pretos na nossa região.

Diante da possibilidade de extinção local, estão sendo planejadas medidas para reverter esse cenário. Caso os bandos de bugios desapareçam, pretende-se implementar um programa de reintrodução com indivíduos previamente imunizados contra o VFA. Ainda estamos estruturando um projeto para avaliar a vacina mais adequada. Caso seja executado, esse projeto deverá contar com a aprovação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente (ICMBio-MMA), e da Coordenadoria de Fauna Silvestre da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (CFS-Semil-SP). No entanto, esse plano só será eficaz se for acompanhado de esforços para preservar o habitat e mitigar outros riscos, como atropelamentos.

Além disso, é crucial que a sociedade compreenda que os bugios e outros primatas não humanos (PNHs) não transmitem a FA. Esses primatas são vítimas, não vilões. Proteger os bugios significa proteger a biodiversidade, a saúde pública e o equilíbrio ambiental.

Infelizmente, tais eventos revelam a importância de se ter esses primatas por perto e a necessidade de um monitoramento constante, que sirva para períodos como o que estamos passando. É preciso entender que, para que não haja comprometimento da saúde humana, as pessoas precisam buscar uma relação harmônica entre si e com os animais do seu entorno, bem como com o ambiente em que estão inseridos e que compartilham.

Dessa maneira, a população pode auxiliar nesse monitoramento por meio de um aplicativo de fácil uso, o Sistema de Informação em Saúde Silvestre — SISS-Geo. Trata-se de um aplicativo gratuito de ciência-cidadã criado pela Fiocruz e que tem sido fomentado pelo Ministério da Saúde, como uma ferramenta de vigilância de saúde animal. Nesse aplicativo, não só PNHs podem ser registrados, mas qualquer animal silvestre, vivo, doente ou morto.

Para sanar e mitigar os problemas que a FA causa aos seres humanos, ações devem ser implementadas urgentemente, tais como: 1) expandir a cobertura vacinal da população; 2) ampliar a vigilância e notificação de PNHs doentes ou mortos; 3) aumentar a vigilância nos vetores transmissores em matas nativas e modificadas; 4) fomentar o apoio à pesquisa que possa subsidiar maior conhecimento sobre a biologia desses animais, assim como a epidemiologia do VFA e de outras doenças.

A Universidade, o poder público, representado pelas secretarias de saúde municipais e estaduais e pelo Ministério da Saúde, as ongs e a comunidade local devem se unir para proteger essa espécie que tanto contribui para a saúde e a sustentabilidade do nosso ecossistema. A conservação dos bugios-pretos, Alouatta caraya, e de outros PNHs da região não é apenas uma questão ecológica, mas também um compromisso ético com o futuro do planeta e a saúde única.


Referências

i) Vasconcelos PFC. 2003. Febre amarela. Rev Soc Bras Med Trop 36:275–293. https://doi.org/10.1590/s0037-86822003000200012.
ii) Brasil. Plano de contingência para resposta às emergências em Saúde Pública: febre amarela [recurso eletrônico]/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. 2ª ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2021.
iii) Idem.
iv) Siconelli MJL, Espósito DLA, Moraes NC, Ribeiro JM, Perles L, Dias MA, Carvalho AAB, Werther K, Fernandes NCCA, Iglezias SD, Bürger KP, Fonseca BAL. 2019. The importance of coordinated actions in preventing the spread of yellow fever to human populations: the experience from the 2016–2017 yellow fever outbreak in the northeastern region of São Paulo State. Can J Infect Dis Med Microbiol 2019:9464768. https://doi.org/10.1155/2019/9464768.
v) Fioravanti C. O alarme dos macacos. Revista Pesquisa Fapesp, 2018. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/o-alarme-dos-macacos/
vi) Rossi MJ, Dos Santos WF. Births during 7 years after the translocation of a pair of black-and-gold howler monkeys (Alouatta caraya) to a forest fragment in southeast Brazil Primates. 2018 Nov; 59 (6):541-547. doi: 10.1007/s10329-018-0687-2.
vii) Rossi MJ, de Oliveira Fermoseli AF, Hirano ZMB, Dos Santos WF. Adoption of an orphaned and temporarily captive infant by an unrelated adult female in black-and-gold howler monkey: implications for management strategies. Primates. 2020 Mar; 61 (2):169-174. doi: 10.1007/s10329-019-00779-0.
viii) Santos, W.F. “Todo animal silvestre tem a proteção de leis, que devem ser cumpridas”, diz docente sobre mortes de bugios provocadas por corte de árvores e bambuzais no câmpus de Ribeirão Preto (Informativo Adusp Online, 9/11/2023).
ix) Ambiente é o Meio #67: Perda da vegetação nativa impacta populações de bugios na região de Ribeirão Preto. Jornal da USP, 15/12/2022.
x) Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Processo de Avaliação do Risco de Extinção da Fauna Brasileira. Alouatta guariba. Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade – SALVE. 2022.

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