Orçamento
Dispositivo incluído na reforma tributária garante financiamento das universidades estaduais na transição, mas novo percentual e autonomia ainda serão objeto de disputa com governo e Alesp
O texto da reforma tributária, promulgado no dia 20/12 do ano passado, inclui um dispositivo que o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. celebrou em declaração dada ao Jornal da USP como “uma solução com importantes apoios” para “um problema grave que visualizamos no início de 2023”, ou seja, a continuidade do financiamento das universidades estaduais paulistas.
Como se sabe, a reforma prevê a extinção do ICMS, principal fonte dos recursos que atualmente mantêm USP, Unesp e Unicamp, e sua gradual substituição pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
O dispositivo foi inserido nos parágrafos 1º e 2º do artigo 6º da Emenda Constitucional (EC) 132/2023, que institui a reforma, e determina que, “até que lei complementar disponha sobre a matéria”, as “vinculações de receita dos impostos previstos nos art. 155, II e 156, III da Constituição Federal estabelecidas em legislação de Estados, Distrito Federal ou Municípios até a data de promulgação desta Emenda Constitucional serão aplicadas, em mesmo percentual, sobre a receita do imposto previsto no art. 156-A do ente federativo competente”.
O texto diz ainda que a norma ficará vigente “enquanto não houver alteração na legislação dos Estados, Distrito Federal ou Municípios que trata das referidas vinculações”.
O professor Floriano Peixoto de Azevedo Marques, docente da Faculdade de Direito (FD) da USP e ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), considera que o texto “garante a continuidade do financiamento durante a transição”.
Em artigo publicado n’O Estado de S.Paulo e reproduzido pelo Jornal da USP, Marques relatou que alguns professores, preocupados com um possível vácuo legal no financiamento das universidades, “começaram um trabalho silencioso com o Congresso para tentar inserir na reforma um dispositivo que preservasse essa autonomia e determinasse que o Estado a regulamente”.
O docente – autor do projeto do malfadado “Estatuto de Conformidade de Condutas”, fracassada tentativa de criação de uma espécie de “código disciplinar” da USP em meio à gestão V. Agopyan-A.C Hernandes – diz ainda no artigo que “o trabalho quase se tornou inviável, pelas cenas de carteiras empilhadas bloqueando o acesso a prédios universitários, professores sendo hostilizados nos campi e notícias de constrangimentos de toda ordem”.
As menções se referem à greve estudantil do segundo semestre do ano passado, quando alunos(as) da USP reivindicavam, entre outros pontos, o direito a ter oferecidas todas as disciplinas de sua grade curricular. Entre “constrangimentos de toda ordem” impostos aos e às discentes nos últimos anos pelo déficit crônico de professores(as) na USP estava a necessidade de alunos(as) de alguns cursos de alterar as matrículas já realizadas porque simplesmente não havia docentes para ministrar as disciplinas – caso, por exemplo, do curso de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA), que cancelou 11 disciplinas no semestre passado.
A própria Reitoria reconheceu a gravidade da situação, a ponto de ter se comprometido, no acordo para o encerramento da greve, a aumentar de 879 para 1.027 o número de contratações de docentes previstas até o final da gestão Carlotti Jr.-M. Arminda.
“Não é uma solução definitiva, mas dá uma proteção importante”, diz Marques
Embora a Reitoria tenha comemorado a inclusão do dispositivo no artigo 6º da reforma, algumas dúvidas permaneceram em membros da comunidade acadêmica, dado que o texto menciona a expressão “vinculações de receita”. Uma vez que a destinação de recursos do ICMS às universidades não está prevista na Constituição Estadual – ao contrário do que ocorre com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – e precisa constar a cada novo exercício nas leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Orçamentária Anual (LOA) aprovadas na Assembleia Legislativa (Alesp), seria possível considerar que essas verbas são de fato vinculadas e estão asseguradas mesmo com as mudanças promovidas pela reforma tributária?
O professor Floriano Peixoto de Azevedo Marques considera que sim. Ao responder a questionamentos enviados pelo Informativo Adusp Online, Marques disse que toda destinação de verba orçamentária, com ou sem vinculação constitucional, passa pela LDO e pela LOA, assim como os recursos da Fapesp, já previstos na Constituição Estadual.
“O decreto [29.598/1989, que estabeleceu a autonomia das universidades estaduais paulistas], embora normativamente fraco, cria sim uma vinculação de receitas que vem sendo seguida há décadas. Logo, quando a EC 132 alude a ‘vinculações’ de receita do ICMS, acabou por constitucionalizar algo que antes era só boa vontade do governo do Estado”, afirma, lembrando que decretos podem ser revogados por ato unilateral do Executivo.
O que o texto da reforma fez no artigo 6º “foi colocar um comando de natureza constitucional para que todas as destinações genericamente vinculadas de receitas do doravante extinto ICMS em educação, até que sobrevenha nova regulamentação, fiquem mantidas”, prossegue.
O professor explica que, “embora visasse apenas a assegurar alguma estabilidade na transição (sem isso, com a extinção do ICMS, as universidades paulistas ficariam no vácuo), o dispositivo acabou por dar um reforço ao que se tinha e que sempre foi precário (mero decreto estadual)”. Marques chama a atenção ainda para o fato de que a emenda fala genericamente em “legislação” e não em “lei estadual”.
“Não é uma solução definitiva, mas dá uma proteção importante. Se uma LOA ou LDO estadual futura, antes da regulamentação por vir, desatender a destinação das verbas, duvido que o STF [Supremo Tribunal Federal] não entenda inconstitucional a omissão. Basta um partido com representação no Congresso ajuizar ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade]”, continua.
Marques ressalta também que não era possível ir além dessa formulação, “sob pena de a EC ser inconstitucional por afrontar cláusula pétrea (autonomia orçamentária dos Estados membros)”, concluiu, em seus comentários ao Informativo Adusp Online.
No artigo do Estadão, o professor defende que “passamos a ter um respaldo constitucional e asseguramos a manutenção do regime atual até que venha uma emenda à Constituição Estadual sem retrocesso”.
“Haverá um embate econômico e político”, alerta assessor da Unesp
A inclusão do dispositivo no texto da reforma não garante a manutenção da autonomia das universidades estaduais paulistas – assentada num decreto de 1989 passível de revogação a qualquer momento –, a qual será objeto de um novo capítulo de disputas na ordem tributária que a reforma criará.
Ao Jornal da USP, de forma otimista o reitor declarou que, “desde o período pré-eleitoral para escolha de governador, os reitores das universidades tiveram reunião com o então candidato Tarcísio de Freitas, que nos disse que considerava a autonomia financeira um fator importante e, caso eleito, iria apoiar sua manutenção”. “Acreditamos que, quando da futura regulamentação dos impostos em São Paulo, nossa autonomia será mantida pelo governo do Estado, com o apoio da Assembleia Legislativa”, afirmou Carlotti.
Nem todos os dirigentes universitários compartilham dessa visão, que já inclui, é claro, um cálculo político por parte de Carlotti. Em entrevista ao Jornal da Unesp, Rogério Luiz Buccelli, assessor-chefe da Assessoria de Planejamento Estratégico da Unesp, foi bem mais realista e cauteloso do que o reitor da USP ao analisar o cenário.
Buccelli reconhece que, no momento em que houver a discussão sobre o percentual do novo IBS a ser destinado às universidades, “seja no governo do Estado ou na Assembleia Legislativa, já haverá um embate econômico e político”.
O assessor chama a atenção também para “outro fator relevante”, ou seja, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, encaminhado pelo Executivo à Alesp, que reduz a destinação mínima de recursos para a educação no Estado de 30% para 25% da receita de impostos – proposta classificada como desastrosa pelos participantes de debate promovido pela Adusp no ano passado. As universidades, aponta, também serão atingidas caso a proposta seja aprovada.
Os debates sobre a LDO, no bojo de uma reforma tributária já aprovada, e da PEC 9 vão se misturar, lembra. “O IBS só vai passar a vigorar a partir de 2026, mas o debate sobre a LDO em 2024 já será contaminado pelo quadro da reforma tributária.”
“As universidades precisam estar preparadas para esta discussão do ponto de vista técnico, administrativo, econômico e, principalmente, político, porque precisarão defender o que recebem hoje”, alerta o assessor-chefe da Unesp.
O professor também considera que o Estado de São Paulo tende a perder arrecadação, porque o modelo atual tributa mais a produção do que o consumo, enquanto a reforma privilegia o “modelo de tributação sobre o consumo que é empregado na maior parte dos países desenvolvidos”.
Governo Tarcísio questiona reitores sobre orçamento das universidades
Outra sinalização à qual é preciso prestar atenção veio em reunião da qual o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) participou com representantes da Secretaria da Fazenda do Estado, no dia 19/12 do ano passado.
De acordo com o relato que o Cruesp encaminhou ao Fórum das Seis, a pedido das entidades que o compõem, os reitores foram questionados sobre “a lentidão na execução orçamentária de 2023, particularmente detectada na metade do corrente exercício”.
“Foi esclarecido pela presidência do Cruesp [o atual presidente é o reitor da Unesp, Pasqual Barretti] e demais reitores que tal contexto decorre da iniciativa do próprio governo em 2021 e 2022, de solicitar às universidades o empenho do superávit orçamentário construído nesses respectivos anos em pessoal e reflexos, para auxiliar o governo na realização dos 30% do orçamento obrigatório com educação”.
Os reitores “deixaram claro não haver qualquer ineficiência na execução orçamentária e, assim, o principal questionamento perdeu o objeto”. Em resumo, prossegue o Cruesp, “não haverá qualquer alteração do contexto atual para o ano de 2024”.
O tom “tranquilizador” adotado pelo Cruesp não esconde o fato de que o governo bolsonarista de Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD) “está de olho” no orçamento das universidades, tema constante no radar das guerras culturais promovidas pela extrema-direita.
Na reunião também “foi proposta a criação de um grupo de trabalho para discutir o orçamento das universidades, tendo em vista a reforma tributária aprovada no Congresso Nacional”.
O Fórum das Seis voltou a solicitar ao Cruesp o agendamento de uma reunião para debater propostas para o financiamento das universidades a partir da aprovação da reforma tributária.
GT Verbas apresenta estudo preliminar sobre financiamento
Em dezembro de 2023, o GT Verbas da Adusp divulgou o documento “Bases para o financiamento das Universidades Estaduais Paulistas”, no qual delineia propostas preliminares para o financiamento da USP, Unesp e Unicamp a partir da reforma tributária.
Uma proposta preliminar seria a adoção dos mesmos parâmetros de repasse para a Fapesp. O artigo 271 da Constituição Estadual determina a destinação de 1% da receita tributária à agência.
A proposta consiste em estabelecer um valor mínimo como porcentagem da receita tributária líquida, sendo o percentual do repasse calculado com base na arrecadação do mês de referência e pago no mês subsequente.
Como alternativa, prossegue o GT Verbas, também é possível propor um valor mínimo como porcentagem da receita corrente líquida, mantendo-se o mesmo modelo de transferência. O GT Verbas elaborou gráficos que ilustram a evolução da Quota-Parte do Estado do ICMS. Veja os gráficos e conheça a íntegra do documento aqui.
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