Oriente Médio
Apesar de diferenças, ato de apoio à Palestina na FFLCH uniu intelectuais e ativistas em defesa do cessar-fogo e na condenação ao genocídio cometido por Israel
Realizado em 9/11 por iniciativa do Comitê USP pela Democracia, o evento permitiu amplo debate tanto dos acontecimentos recentes na Faixa de Gaza como, igualmente, do contexto histórico de ocupação colonial dos territórios palestinos após a criação de Israel pela ONU em 1948. No mundo, as esperanças de cessar-fogo ganharam fôlego em 24/11, quando entrou em vigor uma trégua de alguns dias negociada entre Israel e Hamas, com mediação do Qatar, para fins de troca de prisioneiros e reféns, depois renovada em 30/11. Cessada a trégua, os bombardeios se intensificaram
Ato organizado pelo Comitê USP pela Democracia, realizado no dia 9/11 à noite no Auditório Nicolau Sevcenko da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), reuniu centenas de estudantes, docentes, intelectuais, entidades, parlamentares e representantes de movimentos sociais que protestaram contra o genocídio perpetrado pelo governo de Israel em Gaza e pediram imediato cessar-fogo e libertação da Palestina. O evento está integralmente disponível no canal da FFLCH no YouTube.
A mesa foi coordenada pela professora Arlene Clemesha (Letras) e pelo professor Everaldo Andrade (História). Na abertura, Andrade explicou que o evento tinha como objetivo “abrir uma discussão séria e importante que diz respeito não só ao local [Gaza] mas a toda a Humanidade, pela seriedade do que está acontecendo naquele país, e esse ato tem como objetivo central discutir o cessar-fogo, discutir ajuda humanitária, discutir as possibilidades disso para que haja uma solidariedade com todos aqueles que estão sofrendo violências na Faixa de Gaza e em toda a região. Há diferenças entre as pessoas aqui, há debate, mas o que nos une, o que construiu esse ato, foi a questão central do cessar-fogo e da ajuda humanitária, e da importância de iniciativas concretas que precisam ser tomadas pela sociedade brasileira”.
A USP, acrescentou o docente, precisa manifestar-se institucionalmente a respeito do conflito. “Na universidade, essa discussão precisa ser também colocada de maneira mais enfática. Há espaços aqui em que esse debate precisa ser aberto, nas unidades, nos departamentos, nas congregações, no Conselho Universitário, é importante que se construam posições concretas que não só alertem para o que está acontecendo, mas discutam que relação a Universidade de São Paulo deve ter com o Estado de Israel”.
Uma performance de ativistas destacou o fato de que milhares de crianças foram assassinadas na cidade de Gaza desde que as Forças Armadas de Israel, em resposta ao ataque do Hamas realizado no dia 7 de outubro, começaram a lançar mísseis e bombas sobre conjuntos residenciais, hospitais e até uma escola da ONU. Calculava-se que, dos cerca de 10 mil palestinos mortos até aquela data por Israel, pelo menos 40% eram crianças. Desde então, o número de mortes em Gaza já chegou a 16 mil de acordo com a última estimativa divulgada.
O primeiro convidado a falar foi o professor Vladimir Safatle (FFLCH), que destacou a importância de uma discussão desse tipo acontecer na USP: “Eu lembraria a vocês de todo um esforço, que não é só um esforço local, mas internacional, de travar o debate no interior do mundo universitário a respeito desse problema. Que não é só um problema local, é um problema global, que afeta todas as pessoas, que pode modificar a estrutura de segurança por todos os lados. Vários universitários tiveram problemas porque suas universidades resolveram adotar uma política que associa imediatamente a crítica ao governo israelense ao antissemitismo. Nós entendemos que isso é uma coisa absolutamente desonesta, uma criminalização de posições políticas”, pontuou.
“Essas discussões devem ser feitas da maneira como nós gostaríamos que fossem feitas, ou seja através de várias modalidades de debate. A Universidade tem sua posição a respeito, temos uma diversidade de opiniões, uma diversidade de sensibilidades, mas a gente tem também acordos profundos sobre o que é uma linha vermelha em direitos internacionais e direitos humanos, e acordo profundo a respeito do que significa universalização de direitos humanos. Então isso já nos permite articular essa dissonância que é própria da Universidade dentro de um debate que todos vão poder aproveitar”, propôs.
“Essa não é uma guerra qualquer, não é um fato qualquer, talvez seja um sintoma fundamental da ordem mundial, de como há um problema sério a respeito de afinal de contas quem tem e quem não tem direitos no mundo, quem é visível e quem não é visível, a partir de suas experiências de devastação e sofrimento. Há certas questões que fundamentam alguma possibilidade de saída do conflito. A primeira delas é: existe lei internacional, e há lei sobre o que está acontecendo lá [na Palestina]. A Organização das Nações Unidas [ONU] já apresentou duas resoluções a respeito da necessidade de desocupação dos territórios da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, de Jerusalém Oriental. Não há governo nenhum acima da lei internacional. Muito mais um Estado que foi criado exatamente pela ONU. Que essa lei seja respeitada, e ela vem sistematicamente sendo desrespeitada há pelo menos 50 anos”.
A professora Francirosy Barbosa (FFCLRP) chamou atenção para os riscos da desinformação propagada pelo governo de Israel. “É muito bom ver, como docente da Universidade de São Paulo, esse espaço aberto para a gente discutir e falar aquilo que está doendo, mas que até hoje as pessoas fecharam os ouvidos, fecharam as bocas, fecharam os olhos para aquilo que acontece em Gaza, para aquilo que acontece na Palestina”. A docente destacou que a violência na região não começou no dia 7 de outubro de 2023, mas é histórica: “Desde 1948, com a Nakba (catástrofe), os palestinos vêm tendo seu território diminuído. Nós estamos falando de violência, de massacre, de genocídio. Estamos falando de uma prisão a céu aberto onde crianças são assassinadas a cada dez minutos”.
Francirosy criticou o que chamou de “silêncio de universidades, de sindicatos, de associações”, apelou para que cada pessoa presente no ato se torne uma “ponte” com a Palestina, e protestou contra a cobertura da mídia comercial. “Nós temos uma televisão no Brasil que não dá voz aos palestinos. Temos um problema de mídia. Temos um epistemicídio na formação intelectual dos jovens. Não temos nos livros do ensino fundamental uma formação sobre o que foi a Nakba. Então está na hora de a gente revisitar a história e ter um papel histórico de transformação, fazer com que as pessoas saibam o que está acontecendo na Palestina. A gente precisa urgentemente parar essa violência contra a Palestina”. De acordo com a docente da FFCLRP, a operação da Polícia Federal na Tríplice Fronteira, com apoio do serviço secreto de Israel (Mossad), é “uma cortina de fumaça para distrair o povo brasileiro”.
No entender da docente, é preciso combater a desinformação. “A gente está tendo bombardeio cotidiano na Faixa de Gaza. Se as pessoas não conseguem enxergar isso é porque estão desinformadas, é porque já perderam a própria misericórdia e o próprio coração. Nós precisamos urgentemente lidar com essa realidade”, advertiu ela. “Nós estamos falando de crianças morrendo, de crianças morrendo queimadas. É disso que se trata. Nós estamos falando de mulheres morrendo, de mães enterrando seus filhos. Então juntem-se a nós nesse ato de solidariedade”, exortou Francirosy.
“O que está acontecendo agora não se iniciou no dia 7 de outubro”, diz Yuri Haasz
“Israel não representa todos os judeus. As instituições judaicas sionistas que apoiam Israel incondicionalmente não representam todos os judeus”, declarou Yuri Haasz, representante do grupo Vozes Judaicas por Libertação. “Eu faço parte de um coletivo que aproximadamente dez anos atrás começou a evoluir a partir de judeus israelenses que tomaram a iniciativa de ir a campo, de trabalhar em ações de direitos humanos nos territórios ocupados, e que vendo os fatos não tiveram outra opção a não ser colapsar toda a mitologia nacionalista com a qual foram educados e treinados a vida toda”.
O que o governo de Israel faz “não coincide com os valores humanos, com a ética com a qual nós pensamos que estávamos existindo no mundo”, explicou Yuri, que nasceu em Haifa e veio para o Brasil com 14 anos de idade. “Esse grupo do qual faço parte ainda é um grupo pequeno aqui no Brasil, [mas] existe no mundo todo, espero que vocês tenham visto as manifestações. Nós reconhecemos que Israel foi fundado através de uma limpeza étnica. Essa é a origem de toda a violência que ocorre, a Nakba continua acontecendo até hoje. Israel se configurou como um estado de apartheid, e nós não conseguimos reverter essa estrutura de dominação, essa estrutura política que viola os direitos humanos por todo esse tempo. O que está acontecendo agora não se iniciou no dia 7 de outubro. 7 de outubro só foi um sintoma do sistema de dominação, que permanece já por setenta e cinco anos”.
Yuri acrescentou que seu grupo dirigiu algumas propostas ao governo Lula: “Nós pedimos que o governo brasileiro tome atitudes urgentes, para pedir um cessar-fogo, para aderir ao BDS [Boicote, Desinvestimentos, Sanções], que rompa os acordos com Israel feitos durante o governo Bolsonaro, de tecnologia militar. Criticar um sistema político de opressão como Israel não significa antissemitismo, na realidade sou neto de sobreviventes do Holocausto”.
O historiador Valter Pomar, membro do Diretório Nacional do PT, situou o conflito no contexto da ocupação colonial da Palestina pelo Estado de Israel. “O PT no dia 16 de outubro soltou uma nota em que criticava o genocídio e os crimes de guerra praticados pelo Estado de Israel. O embaixador de Israel protestou, disse que era inaceitável colocar o Estado de Israel no mesmo patamar de uma organização terrorista como o Hamas. E o embaixador tem razão: não é possível colocar no mesmo patamar a violência do ocupado e a violência do ocupante, a violência do colonizador e a violência do colonizado. E é preciso parar de demagogia, hipocrisia a esse respeito. Israel é uma força de ocupação, e a Organização das Nações Unidas dá aos povos ocupados o direito de reação, o direito de lutar por todos os meios contra a ocupação. E nós, que já fomos colônia, não devemos titubear a esse respeito”.
Pomar acredita que a mobilização contra o genocídio precisa aumentar no Brasil, “assim como é necessário que o governo brasileiro, o presidente Lula, escale, na reação aos atos de terrorismo e de ingerência que o governo de Israel está fazendo no nosso país”, disse, referindo-se à operação da PF na Tríplice Fronteira, “feita a partir de informações de um serviço secreto que não conseguiu prever os atos de 7 de outubro”, e ao fato de que o embaixador israelense tem se reunido com o ex-presidente Jair Bolsonaro e dado declarações que “em qualquer país razoável” já teriam levado o diplomata a ser expulso ou considerado persona non grata. Propôs também que governos estaduais e municipais, bem como universidades, rompam relações com Israel, “especialmente porque se tornou um exportador de tecnologias de brutal repressão, está diretamente vinculado à violência que se pratica contra o povo negro, pobre e periférico deste país”.
A professora Raquel Rolnik (FAU) falou em nome do Coletivo Judias e Judeus pela Democracia-São Paulo. “Nesse momento estamos juntos num absoluto clamor pelo cessar-fogo imediato, pela ajuda humanitária, que é absolutamente central nesse momento, pela defesa incondicional dos direitos humanos nestes territórios. E evidentemente condenar também o massacre que está acontecendo em Gaza, de uma forma direta e sem medo, também afirmamos que são mais de cinco décadas, e também condenamos a ocupação dos territórios palestinos, na Cisjordânia e na situação absolutamente insustentável que sim, vem produzindo um ciclo sem fim de violência na região, e alimentando extremismos que não servem para construir nenhuma solução para esses territórios”, disse.
“Nós somos cidadãos brasileiros. Muitos de nós têm parentes e amigos que vivenciam essa guerra desde o 7 de outubro, e aí não estamos falando dessas décadas que já mencionamos, mas dessa conjuntura, e somos afetados direta ou indiretamente pelas atitudes do governo de Israel, governo esse que tem uma posição de extrema-direita, neoliberal, e contra o qual milhões de judeus e milhões de israelenses ocuparam as ruas de Israel durante semanas e meses, para derrubar esse governo fascista”, sustentou.
“Por que estou dizendo isso? Porque os ataques das milícias do Hamas em 7 de outubro foram ataques absolutamente hediondos, entre 1.400 pessoas que foram assassinadas nesse dia morreram mais de 100 árabes palestinos e beduínos, e os companheiros e companheiras dos kibutzim que foram assassinados nessa data eram lideranças dos movimentos anti Benjamin Netanihau, ali nas ruas de Israel”, afirmou a docente. “Eram lideranças pelo direito palestino e pela defesa dos direitos humanos. Essas lideranças estão entre os mortos e entre reféns presentes no 7 de outubro, e nos incomoda sim que esses assassinatos brutais tampouco sejam condenados. Nos incomoda, mas não nos separa dessa luta de hoje e naquilo que estamos convergindo aqui. Porque claro, não se trata absolutamente de justificar o que está acontecendo em Gaza”. Por fim, Raquel reiterou que seu coletivo pede o fim da ocupação e dos assentamentos judaicos, e manifestou repúdio a “todos os fundamentalismos, as teocracias e os regimes autoritários e de terror, inclusive o atual governo de Israel”.
Faixa de Gaza se tornou campo de experimentos bélicos, afirmou Ualid Rabah
Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), sustentou que o que acontece na Palestina há 76 anos “é a ideia de que o colonialismo pode triunfar, mesmo que tardiamente; é a ideia de que é possível um reassentamento humano baseado exclusivamente na limpeza étnica e no extermínio de uma demografia para o assentamento de outra; é a ideia de que um regime de apartheid é possível, mesmo nos dias de hoje”.
A ONU, disse ele, designou Gaza como “prisão a céu aberto”, em relatório de quatro meses atrás. O fato de a população palestina não abrir mão do direito de retorno às terras das quais foi expulsa “faz dela alvo prioritário” do Estado de Israel, explicou, porque “o direito de retorno significa desfigurar a ideia de uma demografia majoritária para um grupo étnico-religioso assim desenhado para sê-lo, o que é muito esquisito”.
Ainda segundo Rabah, uma característica macabra é que a Faixa de Gaza se tornou um campo de experimentos de armas e dispositivos bélicos, testados contra os palestinos e que depois são vendidos para outros países, por exemplo para o Brasil. “É o único caso da história humana em que uma população é cativa para experimentar fósforo branco, para experimentar munições com urânio empobrecido, e outros armamentos, sistemas e munições. Isso é muito grave. Não há caso semelhante. Com um detalhe: 80% do armamento testado são estadunidenses”.
A deputada estadual Luciana Genro (PSOL-RS) foi outra que ponderou quanto aos nexos históricos entre a atualidade e o processo de criação de Israel pela ONU. “Essa manifestação nos remete a tudo que já foi dito aqui sobre o genocídio, a matança que Israel vem promovendo, que não é de hoje, mas se intensificou desde aquele sábado em que nós vimos aquelas ação do Hamas e pudemos perceber que muitas pessoas se manifestaram como se aquela ação fosse um raio em céu azul”, observou. “Como se aquela ação não fosse uma resposta — certa ou errada, cada um vai fazer seu julgamento — a um genocídio de décadas. Porque esses sacos brancos com bebês ensanguentados, que estamos vendo simbolicamente aqui [referência à performance que se iniciou enquanto ela falava], vêm acontecendo há muitas décadas. E naquele momento quem ousou falar o que estava acontecendo em Israel, com civis israelenses, cujas mortes nós sempre lamentamos, porque todas as mortes de civis devem ser lamentadas, quem ousou contextualizar aquele ato foi tachado de antissemita, foi tachado de racista”.
“Aconteceu comigo, aconteceu com Breno Altman, e com certeza com muitos de vocês. Estou agora sendo acusada na Comissão de Ética da Assembleia Legislativa de ‘apoiar o terrorismo’. E muitas vozes se levantaram para repudiar as mortes dos bebês decapitados, cujas provas nunca apareceram, ou das mulheres estupradas, cujas provas nunca apareceram, de que são fatos verídicos, ao contrário vêm sendo desmentidos”, ressaltou a deputada. “Mas essas mesmas vozes não disseram uma palavra sobre as mortes palestinas. Especialmente eu me refiro aos políticos da direita e da extrema-direita, que se apropriaram da pauta dos direitos humanos dos israelenses civis e dos sequestrados para defender a sua [própria] pauta, que é genocida, racista e de total desrespeito aos direitos humanos dos palestinos. Parece que o sangue palestino, para alguns, não tem o mesmo valor que o sangue judeu. Mas, para nós, todo sangue tem valor”.
A parlamentar gaúcha, que falou em nome do PSOL, considera que o povo palestino tem o direito de resistência. “Tem o direito de exigir o retorno às suas terras que foram roubadas, inclusive com métodos terroristas. Porque o Estado de Israel se instalou naquela região se utilizando de métodos terroristas”, frisou. Ela pediu ao governo brasileiro que adira ao BDS e que rompa relações diplomáticas e econômicas com Israel, até que os direitos humanos dos palestinos sejam assegurados. “Esta situação que estamos vivenciando agora é uma situação-limite entre a barbárie e a civilização. Quem apoia o genocídio israelense contra o povo palestino está apoiando a barbárie, e não podemos nos calar”.
O escritor Milton Hatoum leu um fragmento de texto do conhecido intelectual palestino-americano Edward Said. “O poder de uma potência colonial não reside em diminuir ou maquiar as evidências de sua prepotência invasora, mas sim, fundamentalmente, em apagar as marcas, os traços e vestígios em que se pode ler a memória, a narrativa, o relato que conta a história de quem está sendo colonizado. Por isso, os poderes coloniais matam, desterram, silenciam os intelectuais. Despedaçam suas bibliotecas. Queimam seus livros. Silenciam as vozes que cantam e contam outra história. Aniquilam os que representam o passado e podem construir um caminho de esperança para o futuro”, explana Said no trecho lido pausadamente por Hatoum.
“Na Palestina, o Estado de Israel fez tudo isso. Mas fez muito mais. Arrancou as oliveiras, desmembrou-as, atravessando-as com um muro. Em seu lugar, ocasionalmente, plantou árvores europeias. O poder colonial se imprime na paisagem. Se dilui no horizonte, como parte de uma nova geografia, com uma implacável transformação do ambiente, criando, ou melhor, inventando, a própria terra: seus rios, suas plantas, suas montanhas e campos, o aroma, a cor e os sons que brotam desse espaço desconhecido que alguma vez foi nossa terra, nosso lar. Além disso, o Exército de Israel, que sempre soube proteger-se das pedras que sulcam o céu da Palestina, tinha que se proteger das sombras das oliveiras, esses lugares insurgentes onde habita, incorporada, a memória dos deslocados e exilados. As oliveiras foram e são um objetivo militar porque nelas sobrevivia, e sobrevive, a história dos que algum dia vão voltar”.
“Israel perpetua genocídio. O espetáculo de atrocidades é obsceno”, disse Paulo Sérgio Pinheiro
O professor Paulo Sérgio Pinheiro (FFLCH), que se encontrava na Síria, enviou mensagem que foi lida pela professora Arlene. “Em Gaza, Israel perpetua o genocídio e não o faz em silêncio. O ministro da Defesa descreveu os palestinos como ‘animais humanos’. O presidente rejeitou a distinção entre civis e combatentes. Um ministro propôs utilizar arma nuclear contra Gaza, assumindo que Israel é uma potência nuclear. O espetáculo de atrocidades anunciado e perpetrado contra uma população de civis inocentes apresentados como perpetradores, com apoio da grande mídia de países aliados e políticos do mundo todo, é um espetáculo obsceno”, comentou Pinheiro.
“No prazo de um mês, Israel assassinou 10 mil civis palestinos em Gaza, o mesmo número de mortos civis em um ano de guerra na Ucrânia. Nessa semana em Nova York o secretário-geral da ONU condenou a morte de civis em Gaza, sendo dois terços dessas mortes de mulheres e crianças. Lembrou que a norma internacional tem regras que precisam ser respeitadas, não é um menu de onde cada país pode adotar o que quer cumprir. Justamente Israel no massacre de palestinos com bombardeios desrespeita a norma da proteção a civis. A USP não poderia ficar em silêncio diante desse genocídio em curso diante de nossos olhos. Aderindo ao coro mundial de defesa dos palestinos, os professores da USP põem em prática a defesa dos princípios humanistas que regem a universidade. Pelo cessar-fogo imediato, pelo acesso de água a Gaza, alimento, eletricidade, combustível. Pelo fim do cerco a Gaza. Palestina livre, viva!”.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) juntou-se àqueles(as) que pediram a expulsão do embaixador Daniel Zohar Zonshine. “Quando as pessoas brasileiras que estão lá nesse momento cruzarem o portão de Rafah, [que] o governo brasileiro imediatamente expulse o embaixador de Israel no Brasil! Eles não têm o direito de desrespeitar o povo brasileiro, o povo palestino, e a arte da diplomacia. A carta que ele mandou a todos os parlamentares da Câmara [dos Deputados] e do Senado [Federal] não tem explicação para tudo que a gente conhece do que são esses 75 anos de opressão, ocupação, apartheid, genocídio, colonização. É óbvio que não podemos suportar esse tipo de coisa. O embaixador Celso Amorim, hoje, na França, fez correto: é genocídio mesmo o que está acontecendo em Gaza”.
A seu ver, o uso, pelo governo de Israel, da expressão “terrorismo” tem fins propagandísticos. “O Estado de Israel foi montado a partir de organizações terroristas. Para defender o povo palestino a gente tem que falar de história: como é que um povo que habitava aquela terra foi expulso, literalmente. Todo mundo sabe que as organizações do sionismo — Irgun, Stern, Haganá — formaram gente que depois que comandaram essas organizações viraram primeiros-ministros de Israel. Menahem Begin, Itzhak Shamir etc. Então, agora, ‘terrorismo’ e tal, isso tudo é propaganda articulada pelo capital financeiro internacional, pelo dinheiro que se acumulou nos países centrais do capitalismo e que sustentam um Estado que é artificial”.
Valente lembrou ainda que a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) assinou e cumpriu o Acordo de Oslo (1993). “Quem desrespeitou isso o tempo todo? Israel. Não respeitou nenhuma resolução das Nações Unidas. São tão arrogantes que 120 países fecharam um documento pedindo cessar-fogo, corredores humanitários, e o embaixador [de Israel] na ONU é outro ativista de extrema-direita, falou que o documento era ‘desprezível’. É assim que eles tratam, porque têm as costas quentes. O Estado de Israel é o mais militarista que existe, que mais fala de espionagem, deve ter o sexto ou sétimo Exército do mundo, num país de 9 milhões de habitantes”.
O economista Markus Sokol, outro integrante da direção nacional do PT, mencionou a famosa expressão “socialismo ou barbárie”, cunhada pela revolucionária judia Rosa Luxemburgo, assassinada na Alemanha em janeiro de 1919, para descrever a situação criada em Gaza. “A questão que se coloca, 32 dias depois disso haver começado, é: como é possível que isso continue, ao vivo e a cores, em escala global? A ONU não é capaz de fazer nada. Eu, humildemente, gostaria de ter ouvido a voz do BRICS. Inclusive gostaria de ter ouvido a voz do Papa”, cobrou Sokol, que tem origem judia e perdeu parte da família no Holocausto. “Porque se trata de uma guerra de extermínio. De genocídio. Qual é o nome dessa situação? Imperialismo”, destacou, dizendo ter rompido com o sionismo aos 13 anos de idade: “Para mim, uma criança estraçalhada no gueto de Varsóvia é exatamente igual a uma criança estraçalhada em Gaza”.
A primeira partilha da Palestina, recordou ele, ocorreu já em 1917, com a instalação do “Mandato Britânico”, após entendimentos entre Lord Balfour, ministro inglês das Relações Exteriores, e o banqueiro Barão de Rotschild. “A verdade tem que ser dita. No pós-guerra, milhões de judeus saíram da Europa do Leste e não foram para Israel. Foram para os EUA, para o Canadá, inclusive Europa Ocidental. E muitos vieram para a América Latina, inclusive meu pai, que me trouxe. Aqui chegando, na escola aprendi que foi Osvaldo Aranha que criou o Estado de Israel, quando ele foi um títere de Stálin e de Truman, que criaram o Estado de Israel. Que já nasceu como um enclave. Não é Gaza que é um enclave, Israel é que é o enclave. E ‘pau que nasce torto cresce torto’. Nunca existiu respeito às fronteiras originais. É pedir o impossível. Esse Estado só pode viver em constante expansão”.
Ilan Pappé, em participação à distância, defendeu a proposta de Estado único
O historiador israelense Ilan Pappé, professor da Universidade de Exeter (Reino Unido) e autor dos livros A Limpeza Étnica da Palestina (2006) e Dez Mitos sobre Israel (2017), participou remotamente do ato realizado na FFLCH. Ele defendeu a proposta de um Estado único como solução para a questão palestina, em contraste com a proposta de dois Estados, definida trinta anos atrás no Acordos de Oslo (1993), aceita pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP), mas descumprida por Israel.
“Faço parte da iniciativa One Democratic State Campaign (Campanha por um Estado Democrático), e trabalhamos há alguns anos para tentar disseminar a ideia e torná-la parte do discurso público, especialmente entre os palestinos, mas também em todo o mundo, como a única visão e solução para o futuro. Trata-se, antes de mais nada, de uma continuação da posição básica e de princípio que o Movimento de Libertação da Palestina adotou desde cedo como a principal visão para o futuro e o principal objetivo do seu esforço de libertação”, afirmou Pappé.
“Acreditamos que a Palestina não é apenas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, mas o conjunto da Palestina histórica, e os palestinos não são somente aqueles que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Sem a solução de um Estado único seria impossível oferecer uma solução justa para o problema dos refugiados palestinos”, argumentou. “Não há futuro na Palestina enquanto o sionismo for a principal ideologia de quem está no poder. Uma ideologia que é racista, que desumaniza os palestinos e que se baseia na ideia do colonialismo e da eliminação dos nativos. Assim, a única maneira de assegurar a sobrevivência e a existência do povo palestino é dessionizar a Palestina histórica, o que significa criar um Estado único”, enfatizou.
Por outro lado, a judaização da Cisjordânia torna impraticável a solução de dois Estados, disse Pappé. “Israel não quer nem o Estado único nem os dois Estados, então sua posição é, de qualquer maneira, devido à sua ideologia, o principal obstáculo para a reconciliação”, acredita o historiador.
A seu ver, “um Estado palestino descolonizado e dessionista é vantajoso tanto para judeus como para árabes”, e teria um enorme impacto positivo na área da Palestina e possivelmente no mundo árabe como um todo. “Esta é a única solução moral humana e razoável. Os palestinos merecem viver uma vida normal como todos, e nem com a atual estrutura política, que é um estado de apartheid, nem com uma solução de dois Estados eles poderiam ter estes direitos cívicos e humanos básicos”.
Além de convidados(as), manifestaram-se entidades de dentro e de fora da USP
Encerradas as falas da mesa, manifestaram-se representantes de diferentes entidades, que saudaram o ato e fizeram breves comentários.
Marcelo Pablito, falando em nome do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), propôs que o governo brasileiro denuncie, imediatamente, o acordo de cooperação firmado entre o governo Bolsonaro e o governo de Israel, e rompa relações diplomáticas, econômicas e militares com aquele país. “Estamos acompanhando e denunciando o massacre e a limpeza étnica que estão acontecendo na Palestina”, informou, declarando que o Sintusp apoia incondicionalmente o povo palestino e defende a unidade de trabalhadores palestinos e judeus. “Quem está à frente é Netaniahu, uma figura de extrema-direita, mas que tem apoio do governo imperialista dos EUA, na figura de Biden. Tem apoio da União Europeia, que tem as mãos sujas de sangue do povo palestino”, acusou.
“Sabemos que o massacre da juventude negra é feito com a munição proveniente do Estado de Israel. Aqui no estado de São Paulo pelo governo Tarcísio, mas no estado da Bahia pelo governo Jerônimo, que é do próprio PT”, disse Pablito. Chamou atenção ainda para os grandes protestos realizados, mundo afora, contra o genocídio na Palestina. “É muito importante que, em mais de vinte meses da guerra na Ucrânia, nós não temos visto surgir um movimento antiguerra, até agora, mas o massacre da Palestina está sendo respondido com manifestações de massa em vários países do mundo, inclusive no Oriente Médio. A gente viu manifestações em Washington, Londres, Nova York, Paris. Na Espanha vimos os estivadores bloquearem os portos para não permitir passarem os armamentos que vão matar o povo palestino”.
A Adusp foi representada pela professora Michele Schultz. “Todas e todos estamos enlutados. Infelizmente a gente tem acumulado lutos. O companheiro Ualid nos provocou, [perguntando] qual será o próximo genocídio. Há pouco estávamos denunciando um genocídio em nosso país. E nós continuamos denunciando o genocídio do povo pobre, do povo preto, do povo periférico”, iniciou Michele. “Dito isso, queria trazer a posição da Diretoria da Adusp. Nós nos manifestamos no dia 19 de outubro, e naquele momento tínhamos receio de que as coisas piorassem. Isso está na nossa nota. E de fato, nesses vinte dias, milhares de mortes ocorreram, diariamente. O que colocamos lá foi que somos contrários a violências por quaisquer motivações, sejam religiosas, raciais, mas sobretudo as motivações que sejam colonialistas, imperialistas e capitalistas. O capitalismo se nutre das guerras, se nutre da indústria bélica, não à toa querem fazer guerra, porque sabem quanto isso é lucrativo para eles”.
Naquele momento, esclareceu Michele, o que motivou a nota da Adusp foram notícias sobre docentes que estavam sofrendo tentativas de “cancelamento”, ou sendo alvos de islamofobia e antissemitismo. “Então a gente quer reforçar aquilo [por] que a gente teve de lutar no último período, que é a liberdade de expressão, a possibilidade de debate e de diálogo. Que a gente possa debater as diferentes posições, sem que firamos os direitos humanos e os princípios humanitários”, enfatizou. “É óbvio que a gente se solidariza, não tem como não nos afetarmos com tudo que a gente assiste. Aqui queria fazer um alerta a partir da fala da querida companheira Francirosy. A gente tem que tomar cuidado com o que vê nas redes sociais, tendo consciência das bolhas nas quais estamos inseridas e inseridos. A gente tem que ter critério com o que vê nas nossas bolhas, porque tem outras bolhas rolando”.
A juventude brasileira “não deve ter medo” de se posicionar contra o genocídio e o regime de apartheid, defendeu Pedro, do Diretório Central dos Estudantes (DCE-Livre) “Alexandre Vannucchi Leme”. “Precisamos prestar solidariedade ativa ao povo palestino. Precisamos disputar a consciência da população para dizer que a luta do povo palestino é a nossa luta. O Estado de Israel produz o agrotóxico. Produz as armas que ceifam vidas neste país. A luta contra o imperialismo, que o povo palestino leva agora, é a luta dos brasileiros, que desde 64 lutam pela democracia neste país”, asseverou. “O papel que temos que desempenhar agora, intelectuais, estudantes, artistas, entidades, é dizer que a luta do povo palestino é nossa, no dia a dia dessa universidade. Palestina livre, do rio ao mar”.
Soraya Misleh, do Instituto da Cultura Árabe (ICÁrabe), propôs um boicote acadêmico a Israel, por meio da ruptura dos convênios de cooperação vigentes entre as universidades brasileiras e suas congêneres israelenses. “Nós precisamos ocupar cada espaço, cada universidade, e denunciar o genocídio em curso em Gaza, a limpeza étnica em toda a Palestina ocupada, como continuidade da Nakba. E denunciar que se não houvesse uma cumplicidade internacional histórica, não estaríamos vendo agora milhares de crianças sendo assassinadas pelo Estado terrorista de Israel. Precisamos romper imediatamente com essa cumplicidade internacional histórica”, destacou. A seu ver, as universidades israelenses testam e desenvolvem “a indústria da morte, que vai matar palestinos”, além de fomentar “a ideologia para continuar o regime de apartheid, limpeza étnica e ocupação”, o que suscita a proposta de boicote acadêmico. “Aqui na USP tem muitos desses convênios”, exemplificou.
A vereadora Silvia Ferraro, da Bancada Feminista do PSOL na Câmara Municipal de São Paulo, apontou a cumplicidade entre a extrema-direita brasileira e o Estado de Israel. “São 136 crianças mortas por dia. Isso não tem precedente histórico em nenhuma guerra. E não tem precedente porque o que está acontecendo não é uma guerra, é um genocídio que quer exterminar a próxima geração de palestinos. É por isso que eles matam as crianças, atacam ambulâncias, bombardeiam hospitais e escolas”, protestou.
“Para nós parlamentares, dentro das casas legislativas, está sendo muito difícil. Me solidarizo com a parlamentar Luciana Genro, com a parlamentar Mônica Seixas, da Alesp”, continou a vereadora. “Hoje, por eu ter participado das manifestações, um vereador da extrema-direita fez um vídeo me ridicularizando, me chamando de burra, de terrorista, [dizendo] que não posso ser professora porque ‘coitadas das crianças’ para quem dou aula. É isso que estamos passando nas casas legislativas quando vamos à tribuna defender o povo palestino. Mas isso acontece porque a extrema-direita brasileira, bolsonarista, está junto com o Estado de Israel. É por isso que o embaixador de Israel se reuniu com Bolsonaro. É por isso que temos que exigir a expulsão desse embaixador”.
Taís Siqueira, do Movimento da Favela, relatou que esteve recentemente na Palestina, e lembrou que além das mortes em Gaza também há palestinos sendo assassinados na Cisjordânia. “Estive lá, vi o que acontece, como o Exército israelense se move para poder expulsar o povo palestino dos seus territórios na Cisjordânia. A violência dos colonos se intensificou”, disse. A seu ver é necessário seguir e consumir o conteúdo produzido e veiculado pelos repórteres de Gaza, “porque eles perderam suas famílias, assassinadas pelos bombardeamentos, e mesmo assim não pararam, mostrando para o mundo o que realmente está acontecendo”. A mídia hegemônica, acrescentou, “não está mostrando a verdade”.
Thiago Tanji, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, abordou por outro ângulo a questão do bloqueio das informações. “Primeiro, quando a gente fala de genocídio, além do genocídio do povo palestino, é o massacre da classe trabalhadora que está nesses territórios. E quando a companheira [Taís] falou dos jornalistas, não sei se vocês acompanharam, mas em menos de um mês de massacre 39 jornalistas foram assassinados, seja na Faixa de Gaza, seja na Cisjordânia. Isso é uma coisa sem precedentes, que significa o silenciamento da circulação de informações”, denunciou.
“Então, mais do que a solidariedade que é essencial, a gente tem que sair daqui com o compromisso de levar essas histórias para o restante da população brasileira. Contar o que está acontecendo. Dizer de maneira clara que não é uma guerra: que é um genocídio, é um massacre, é desproporcional”, salientou o presidente do Sindicato dos Jornalistas. “‘Furar a bolha’ é também conversar com as pessoas para que elas se conscientizem, para que a gente consiga ter esses movimentos de rua. Nos anos setenta o Victor Jara, músico chileno, falava numa música do ‘direito de viver em paz’, que era o direito do povo vietnamita de viver em paz. O povo palestino vai ter o direito de viver em paz quando a Palestina for livre e a classe trabalhadora estiver unida em solidariedade, com o direito de viver em paz”.
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