Saúde Pública
Atendimento prestado pelo HU “não tem sido mais o mesmo e, infelizmente, a população tem sentido diretamente o impacto das mudanças”, reconhece superintendente do hospital em ofício à Secretaria Estadual da Saúde
“Com uma sobrecarga diária de, no mínimo 200%, não é possível garantir atendimento com a mesma qualidade de outrora. Ressalta-se que, em vários dias, o Pronto Socorro atingiu 300% de sua capacidade operacional, resultando em pacientes aguardando em cadeira, por total ausência de estrutura física e de recursos humanos”, diz o médico José Pinhata Otoch
O atendimento prestado pelo Hospital Universitário (HU) da USP “não tem sido mais o mesmo e, infelizmente, a população tem sentido diretamente o impacto das mudanças”, reconhece o superintendente do hospital, José Pinhata Otoch, em ofício encaminhado à gerente do Centro de Apoio Regional à Saúde (CARS-9) da Secretaria de Estado da Saúde, Sandra Batista.
“Com uma sobrecarga diária de, no mínimo 200%, não é possível garantir atendimento com a mesma qualidade de outrora. Ressalta-se que, em vários dias, o Pronto-Socorro atingiu 300% de sua capacidade operacional, resultando em pacientes aguardando em cadeira, por total ausência de estrutura física e de recursos humanos”, prossegue Pinhata Otoch.
Nos últimos anos, escreve o superintendente, “a demanda de urgência e emergência tem aumentado quantitativamente (maior número de atendimento) e qualitativamente (maior grau de complexidade dos casos), seja por encaminhamento realizado pelos reguladores da RUE [Regulação e Rede de Urgência e Emergência], pela rede Pré-Hospitalar Móvel – SAMU e COBOM (Resgate), e também por busca espontânea (pacientes que procuram diretamente o Pronto Socorro do HU-USP)”.
De acordo com Pinhata Otoch, “os reguladores da Secretaria Municipal de Saúde e da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo são sempre notificados sobre a superlotação do HU-USP e impossibilidade de receber novos pacientes de forma segura”.
Entretanto, continua, “dada a insuficiência de recursos hospitalares na região, muitas vezes os pacientes são encaminhados ao HU-USP independente de haver capacidade de ofertar os cuidados dos quais necessitam”.
“Isso tem resultado em descontentamento por parte dos pacientes e seus familiares, como também dos trabalhadores, que não conseguem oferecer assistência de qualidade, de forma segura e humanizada, que sempre foi o objetivo do HU-USP”, reconhece.
Serviços existentes na Região Oeste são insuficientes para demandas da população
O ofício foi encaminhado à Secretaria da Saúde no dia 1o. de agosto de 2024, e o teor de alguns de seus tópicos dá a entender que o documento é uma resposta a questionamentos feitos pela pasta estadual – o que nem o HU nem a Secretaria da Saúde confirmaram à reportagem do Informativo Adusp Online.
A certa altura, Pinhata Otoch afirma saber “que a área de abrangência da Coordenadoria Regional de Saúde Oeste possui carência de leitos hospitalares” e que “os serviços existentes na região são insuficientes para atender às necessidades da população”.
O superintendente cita a Grade de Referência Inter-hospitalar por Especialidade – RRAS 06, aprovada em reunião da Comissão Intergestores Regional em abril do ano passado, segundo a qual “na região Oeste não há recurso para urgência em várias especialidades, como Ortopedia/Traumatologia e o HU-USP é a única referência para UTI Adulto, contando atualmente com apenas 12 leitos para uma área populacional de mais de 1.092.684 habitantes (IBGE, 2022)”.
Consciente dessa realidade, Pinhata Otoch ressalta no entanto que “não é possível que a USP assuma a responsabilidade por garantir a oferta e o acesso à assistência à saúde dos quais a população necessita”.
De acordo com o superintendente do HU, “esta é uma demanda relevante que vem sendo discutida entre as secretarias de saúde, e que requer propostas de intervenção que estão fora do escopo da USP, por se tratarem de Política Pública de Saúde”.
Sucateamento do HU foi decisão da Reitoria da USP na gestão Zago
Em seu ofício à dirigente da Secretaria da Saúde, Pinhata Otoch usa a expressão “questão de responsabilidade fiscal” para justificar o “limite quanto à possibilidade de contratação de pessoal” e a consequente necessidade de “reduzir número de leitos de internação no HU-USP”.
Na verdade, porém, as medidas que redundaram na queda de qualidade e de quantidade dos atendimentos do hospital são muito mais do que uma “questão de responsabilidade fiscal”. O quadro atual é consequência da política de sucateamento do HU e da interrupção da contratação de servidores(as) técnico-administrativos(as) na USP, implantadas na gestão reitoral de M.A. Zago-V. Agopyan (2014-2018), alegadamente a pretexto de uma “crise financeira” na universidade.
Os números do hospital são eloquentes. Antes do desmonte promovido pela gestão Zago-Agopyan, o HU possuía cerca de 230 leitos e realizava 17 mil atendimentos mensais. Na atualidade, são cerca de 130 leitos ativos, com média de 4 mil a 5 mil atendimentos mensais.
Em reunião do Conselho Universitário realizada em março de 2023, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. foi enfático ao declarar que não haveria ampliação do número de leitos e que os atuais níveis de atendimento do HU seriam mantidos. “O HU custa hoje R$ 383 milhões. Não é um valor pequeno”, justificou Carlotti Jr., eximindo-se de responsabilidade pelo equipamento, apesar da notória folga orçamentária da USP.
Na visão de Zago e Agopyan, equipamentos como hospitais e creches tinham caráter assistencialista e não deveriam ser objeto de investimento na universidade. Essa concepção distorcida levou a Reitoria a encerrar de forma abrupta as atividades da Creche Oeste, ocupada há oito anos por um movimento de resistência à truculência da ação dos gestores da USP, e esteve também na base da desvinculação do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC), em Bauru.
Entregue à Secretaria Estadual da Saúde, o chamado “Centrinho” foi “incorporado” pelo Hospital das Clínicas de Bauru (HCB), gerido pela Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Faepa). A Faepa é uma “organização social de saúde” contratada pelo governo estadual por R$ 309 milhões, sem licitação, pelo período de cinco anos. Docente da FMRP, o reitor Carlotti Jr. já foi presidente do Conselho de Curadores e Administração da Faepa (2013-2016).
Eventual mudança na gestão deve levar em conta sustentabilidade financeira, diz Eloisa Bonfá
O Informativo Adusp Online entrou em contato com a superintendência do HU e com o CARS-9 da Secretaria Estadual da Saúde, por meio das respectivas assessorias de imprensa, para saber quais foram os desdobramentos das conversas a partir do envio do ofício. A Secretaria Estadual foi perguntada também a respeito das carências no atendimento à saúde da população da Região Oeste, mencionada por Pinhata Otoch. Nem o HU nem a secretaria responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.
Por sua vez, a diretora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), professora Eloisa Bonfá, que preside o Conselho Deliberativo do hospital (CD-HU), respondeu que “o atendimento do HU realmente passou por mudanças”, embora aponte que ocorreram “grandes avanços” na atual gestão, “tanto na modernização de equipamentos quanto na qualificação da assistência” (leia abaixo a íntegra das declarações de Eloisa Bonfá, enviadas por e-mail à reportagem).
Em relação aos atuais níveis de atendimento, a médica afirma que “há uma clara limitação orçamentária a ser respeitada, mas é essencial reconhecer que o atual reitor realizou importantes investimentos em recursos humanos (120 vagas de novas de profissionais de saúde para o HU, que representaram 30% das vagas oferecidas para toda a USP, além das reposições de aposentadorias) e infraestrutura no HU”, item no qual foram aplicados R$ 17 milhões em 2024.
A presidenta do CD-HU diz que as discussões entre a USP e as secretarias estadual e municipal da Saúde “são de extrema relevância, pois tratam de temas relacionados à Política Pública de Saúde”. “O HU está inserido no sistema e participa ativamente dessas conversas, que envolvem as Secretarias Estadual e Municipal. A USP tem contribuído para o diálogo, sempre respeitando os limites do seu papel institucional”, prossegue.
Na sua avaliação, uma eventual desvinculação do HU “é uma questão complexa, já que a maioria dos pacientes atendidos pelo HU é de origem municipal, enquanto o vínculo com a USP e o Estado dificulta um financiamento mais robusto por parte do Município”. “Qualquer proposta de mudança no modelo de gestão precisa ser amplamente debatida, considerando as necessidades de assistência, os compromissos com a formação acadêmica e a sustentabilidade financeira a longo prazo”, finaliza.
“Jogar a toalha só prejudica a população”, afirma diretor clínico Becker Lotufo
Diretor clínico do HU, o médico João Paulo Becker Lotufo lamenta, em declarações ao Informativo Adusp Online, o que qualifica de “desprezo” pelo hospital por parte dos responsáveis pela sua gestão (Reitoria, superintendência, diretoria médica, secretarias de Saúde) ao longo dos anos.
Em relação ao quadro de pessoal, por exemplo, o médico afirma que as recentes contratações efetuadas pela Reitoria “mal repõem os que se aposentam hoje”. “Não é fácil para o corpo clínico trabalhar nestas condições”, continua.
“Ouvimos há vinte anos que uma proposta de mudança no modelo de gestão precisa ser amplamente debatida e levar em conta as necessidades de assistência, os compromissos com a formação acadêmica e a sustentabilidade financeira”, diz. Em relação às despesas, o médico observa que, a cada fechamento de leito, aumenta o custo leito/dia.
Lotufo considera que no ensino o HU ainda é qualificado, “mas poderia estar bem melhor”. “Um residente que faz uma cirurgia eletiva ao mês por falta de leito, anestesista, enfermagem etc. terá a possibilidade de treino limitada. Isso acontece em todas as áreas. A pediatria, com apenas 16 leitos na enfermaria, em vez de 35, diminui o número de casos dos internos e residentes durante seus estágios. E medicina aprende-se na prática”, observa.
Outro exemplo dado por Lotufo é que a média de óbitos no HU em decorrência de fratura de fêmur em idosos “que ficam à míngua no Pronto-Socorro e acabam sofrendo infecção ou trombose” é muito mais alta do que a do Sistema Único de Saúde.
“Isso é lamentável num hospital da melhor universidade da América Latina. Jogar a toalha e desistir só prejudica a população. E quem se importa?”, pergunta.
Íntegra das declarações da professora Eloisa Bonfá, presidenta do CD-HU
Informativo Adusp Online – Qual é a sua posição a respeito das mudanças no atendimento do HU, especialmente em relação aos impactos sofridos pela população?
Eloísa Bonfá – O atendimento do HU realmente passou por mudanças, mas é importante destacar grandes avanços alcançados nessa última gestão, tanto na modernização de equipamentos quanto na qualificação da assistência que aprimorou processos que resultaram em melhorias significativas para o atendimento dos pacientes, como por exemplo:
a) Ampliação do Núcleo Interno de Regulação que, além de enfermeiras, passou a contar com médicos reguladores que fazem a interface com os sistemas de regulação da Urgência e Emergência. Esta medida mudou significativamente o atendimento no Pronto-Socorro, que passou a contar com a aceitação mais rápida de casos realmente indicados para o nível de complexidade do HU, e a redução de encaminhamentos fora do espectro do HU, aumentando a resolubilidade do atendimento das urgências e emergências na nossa região de referência.
b) Criação do médico regulador no Pronto-Socorro com a atribuição de se dedicar exclusivamente à organização administrativa da assistência e, em particular, da fila de cirurgias de emergência. Com isso, os plantonistas ficaram liberados para se dedicar exclusivamente ao atendimento assistencial.
c) Implantação dos médicos hospitalistas. Esta foi uma medida fundamental para o aumento da resolubilidade dos casos internados nas unidades de internação de adultos, além de melhorar a segurança dos pacientes e o atendimento dos códigos azul e amarelo.
d) Reorganização do ambulatório. A nova direção do ambulatório está promovendo a otimização da utilização das salas de atendimento, bem como revendo as escalas a partir da análise da produtividade, em particular das especialidades cirúrgicas, promovendo reorganização da assistência.
e) Contratação da empresa de anestesiologia. Esta contratação efetivada no último dia 20 de novembro soluciona um nó crítico da produção cirúrgica do HU, que é o déficit de anestesistas. Com novo contrato, será possível aumentar a realização de cirurgias eletivas e ambulatoriais, além dos exames diagnósticos que necessitam de suporte anestésico.
Com essas ações o HU está buscando ativamente soluções que conciliem as limitações estruturais com a manutenção de um atendimento de qualidade.
– A senhora concorda com a postura do reitor Carlotti Jr. de que o HU deve manter o seu tamanho atual ou defende uma ampliação do número de leitos e servidores?
– Há uma clara limitação orçamentária a ser respeitada, mas é essencial reconhecer que o atual reitor realizou importantes investimentos em recursos humanos (120 vagas de novas de profissionais de saúde para o HU, que representaram 30% das vagas oferecidas para toda a USP, além das reposições de aposentadorias) e infraestrutura no HU (R$ 17 milhões disponibilizados neste ano), fortalecendo a capacidade de atendimento dentro do seu escopo atual. Qualquer expansão deve ser precedida de uma análise criteriosa, considerando os impactos na sustentabilidade financeira da USP e a necessidade de fortalecer o papel estratégico do hospital na rede de saúde.
– Qual é o papel que a senhora acredita que o HU deve cumprir no sistema de saúde da Região Oeste, que carece de leitos e de equipamentos para atenção secundária?
– O HU desempenha um papel essencial na atenção secundária à saúde da Região Oeste, oferecendo assistência especializada, que complementa os serviços básicos de saúde. Sua integração na rede é fundamental para suprir a carência de leitos e equipamentos, contribuindo tanto para a formação de profissionais quanto para o atendimento direto à população.
– Há conversas em andamento entre as secretarias estadual, municipal e a USP em relação às demandas de assistência à saúde?
– Sim, essas discussões são de extrema relevância, pois tratam de temas relacionados à Política Pública de Saúde. O HU está inserido no sistema e participa ativamente dessas conversas, que envolvem as Secretarias Estadual e Municipal. A USP tem contribuído para o diálogo, sempre respeitando os limites do seu papel institucional.
– A senhora defende que o HU seja desvinculado da USP e passe a ser gerido pela Secretaria de Saúde do Estado ou do Município?
– Essa é uma questão complexa, já que a maioria dos pacientes atendidos pelo HU é de origem municipal, enquanto o vínculo com a USP e o Estado dificulta um financiamento mais robusto por parte do Município. Qualquer proposta de mudança no modelo de gestão precisa ser amplamente debatida, considerando as necessidades de assistência, os compromissos com a formação acadêmica e a sustentabilidade financeira a longo prazo.
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