No dia 13/12, o Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores (PT) protocolou no Tribunal de Justiça (TJ-SP) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), com “pedido liminar de suspensão da eficácia da norma”, contra a lei 17.853/2023, “com vistas à declaração de [sua] inconstitucionalidade formal e material”. Essa lei resultou da aprovação, pela Alesp, do PL 1.501/2023, de autoria do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que autoriza a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) por meio da venda do controle acionário da empresa.

Após referir-se ao teor da lei questionada, a inicial da ADIN conclui que “a referida lei autoriza o Poder Executivo a ceder o controle acionário da Sabesp, ficando o Estado de São Paulo com poder de veto apenas sobre questões alheias às decisões estratégicas da companhia na execução do serviço de saneamento, poder esse que, de qualquer modo, está sujeito à limitação decidida por órgão composto exclusivamente por pessoas escolhidas pelo governador do Estado de São Paulo”.

Acrescenta que a lei 17.853/2023 “cria um fundo (FAUSP) também gerido pelo Poder Executivo (por meio de secretaria) e fiscalizado por órgão composto apenas por pessoas escolhidas pelo governador”. Ainda segundo a ação, o Programa Pró-Conexão, vinculado à Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos e instituído pela lei estadual 14.687/2012 para financiar obras de acesso a esgotos dos domicílios de famílias de baixa renda em municípios atendidos pela Sabesp, terá seu financiamento reduzido, “eis que deixa de receber fundos diretamente da Sabesp, como previsto no artigo 4o da lei estadual 14.687/2012, passando a ser custeado apenas por parte dos recursos do FAUSP”.

O valor de mercado da Sabesp está estimado em R$ 39 bilhões, diz a ação, sendo que seu lucro foi de R$ 3,12 bilhões em 2022, 35% superior ao obtido no ano anterior. “No último exercício a empresa repassou R$ 435 milhões em dividendos para o Estado de São Paulo (cerca de 2,5% do valor previsto no Orçamento para investimentos do Estado em 2024). Como é notório, o que se pretende é alienar companhia que (i) integra a Administração Indireta do Estado de São Paulo há 50 anos; (ii) é responsável, legalmente, pelas atividades de planejamento das ações estaduais no campo do saneamento; (iii) atende, em regime de concessão, cerca de 60% dos municípios do Estado; (iv) apresenta lucros da ordem de bilhões de reais, parcialmente revertidos em prol do Estado de São Paulo. Logo, são fatos a serem ponderados na análise desta ação que a Sabesp possui fundamental relevância social e que é financeiramente sadia e crescentemente lucrativa”.

Depois de citar o controvertido contrato com a IFC, em valor que pode chegar a R$ 45,5 milhões, a ADIN aponta grave omissão no estudo correspondente à chamada “fase zero” (preliminar): “Cabe salientar que o relatório simplesmente não avalia a conveniência, para o Estado, de realizar a desestatização. Apenas analisa, sob o ponto de vista da empresa, as vantagens de eventual privatização. Não há uma linha de análise sobre como as competências do Estado ou sobre como interesse público ficariam mais bem atendidos com a desestatização: fala-se muito em oportunidades de mercado e nada sobre como a privatização impactaria o cumprimento dos deveres do Poder Público estadual”, aponta.

Assim, afirma, o relatório entregue “não possui conteúdo técnico-científico nem imparcial sobre os benefícios sociais e a conveniência pública da privatização”, em comparação ao modelo atual. “Entretanto, mesmo com um relatório falho da ‘Fase 0’, e mesmo sem os resultados dos estudos técnicos da ‘Fase 1’ da consultoria (que não devem terminar antes de dezembro de 2023), em outubro de 2023 o governador do Estado de São Paulo enviou proposta legislativa para desestatização da Sabesp, que, como veremos, futuramente seria convertida na lei estadual 17.853/2023, ora impugnada”.

A ADIN apresentada pelo PT indica diversas violações a princípios constitucionais, até mesmo preliminarmente, pela “violação ao devido processo legislativo”. No entender do partido, que conta com 18 deputados na Alesp, “o processo legislativo que deu ensejo à aprovação da lei em comento estava manifestamente comprometido, em função do açodamento com o qual foi formado o expediente, sem os elementos de instrução necessários à deliberação legislativa que se pretendia, como será amplamente demonstrado”.

Lei proposta pelo governador viola vários artigos da Constituição paulista

No mérito, a ação aponta a violação ao §2º do artigo 215 da Constituição do Estado de São Paulo (CE), segundo o qual os serviços de saneamento básico devem ser prestados por concessionária sob controle acionário do Estado, bem como a violação da Política Estadual de Saneamento – artigos 215 e 216 caput e §1º da CE. O artigo 216, §2º da CE dispõe que “O Estado assegurará condições para a correta operação, necessária ampliação e eficiente administração dos serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário” (destaques nossos).

Acusa, ainda, “violação de princípios administrativos”, previstos no artigo 111 da CE, uma vez que “o conteúdo material da norma impugnada ofende concomitantemente os ideais constitucionais paulistas de moralidade, razoabilidade, finalidade, motivação, bem como o interesse da administração pública, de forma patente, pelo que a declaração da sua inconstitucionalidade é devida e necessária”.

Assim, em resumo, a ADIN pede ao TJ-SP concessão da medida liminar para suspender a eficácia da lei 17.583/2023 até o julgamento final da ação, bem como a declaração de inconstitucionalidade formal e material da lei 17.853, nos seguintes termos; 1) a declaração de inconstitucionalidade formal decorrente da violação ao devido processo legislativo da CE (arts. 9º, 10º, 13, 111, 125, 126 e 191); e 2) a declaração de inconstitucionalidade material decorrente de violação à CE no tocante à obrigatoriedade do controle acionário pelo Estado das concessionárias de saneamento (art. 216, §2º), às diretrizes da lei e política estadual de saneamento (arts. 215 e 216, §1º) e aos princípios da moralidade administrativa, do interesse público, da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da proporcionalidade (art. 111).

No entender do deputado estadual Simão Pedro Chiovetti (PT), o governo Tarcísio Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD) optou por encaminhar a proposta de privatização da Sabesp por meio de um simples projeto de lei, o PL 1.501/2023, que era “totalmente inconstitucional”, por temer não alcançar a maioria qualificada de 3/5 da Alesp (57 votos, em dois turnos) necessária à aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição do Estado de São Paulo (PEC estadual).

Porém, o PL foi aprovado no dia 6/12 por 62 votos favoráveis e apenas um voto contrário, tornando-se, em 8/12, a lei 17.853/2023. A bancada da Oposição retirou-se do plenário, em protesto contra a violência policial nas galerias e a condução antirregimental dos trabalhos pelo presidente da Alesp, André do Prado (Partido Liberal), e não votou.

Quatro manifestantes foram presos pela PM. Vivian Mendes, presidente estadual da Unidade Popular pelo Socialismo (UP) e Ricardo Senese, metroviário, foram libertados no dia 7/12, sob fiança. O graduando Hendryll Luis Rodrigues de Brito Silva e o professor da rede pública e pós-graduando Lucas Borges Carvente, ambos estudantes da Unifesp, presos preventivamente, só foram soltos no dia 13/12. Na véspera, o TJ-SP atendeu ao habeas corpus impetrado pela defesa dos jovens.

Artigo 216 impõe que serviços de saneamento sejam “prestados por empresas estatais”

Na contramão do seu artigo 216, §2º da Constituição do Estado, que impõe literalmente o “controle acionário” dos serviços de saneamento básico pelo Estado, a lei 17.853/2023 autoriza o poder executivo a, precisamente, “realizar a desestatização” da Sabesp, “com alienação de participação societária, inclusive de controle acionário, mediante pregão ou leilão em bolsa de valores ou oferta pública de distribuição de valores mobiliários, bem como aumento de capital” (destaques nossos).

Quando os constituintes paulistas elaboraram a Constituição, a Sabesp já existia, lembra Simão, em entrevista concedida à TV União, de São João da Boa Vista. “Eles tinham essa visão de que a água é um bem estratégico, essencial, para garantir a vida, a agricultura, a produção de alimentos, o meio ambiente. Ou seja: um bem fundamental”.

No artigo “Privatização da Sabesp: inconstitucionalidades do atual processo de desestatização”, publicado no dia 8/12 no site LexLatin, o professor Gustavo Justino de Oliveira, da Faculdade de Direito (FD-USP), e o advogado Matheus Teixeira Moreira concordam com o entendimento da oposição e afirmam que “a venda da Sabesp somente pode ser efetivada com a alteração do texto constitucional”, uma vez que consoante o artigo 216 “os serviços de saneamento serão prestados por concessionária sob controle acionário do Estado, impondo, portanto, que tais serviços devam ser prestados por empresas estatais (aí inseridas as sociedades de economia mista)”.

Ainda segundo os autores, a Sabesp “é uma empresa essencial ao setor de saneamento no estado mais populoso do país e uma desestatização às pressas pode ser contraproducente à medida que o rito do PL é muito mais simplificado, em detrimento do rito de aprovação de uma PEC. Enquanto uma emenda constitucional requer quórum de 3/5 da casa legislativa em dois turnos (art. 22, § 2º, da Constituição Estadual), a aprovação de um projeto de lei demanda [apenas] maioria absoluta (art. 23) ― e é justamente essa simplificação de rito que o governo pretendeu utilizar como estratégia a fim de iniciar o processo de desestatização nos próximos meses”.

Justino de Oliveira, que é professor do Departamento de Direito do Estado da FD, e Teixeira Moreira, especializado em Direito Público, advertem que, “para além da discussão formal em torno do rito mais adequado ao processo legislativo, destacamos a essencialidade de que o tema deveria ter sido devidamente estudado e inserido em uma rede ampla de debates, inclusive mediante a integração de representantes da sociedade civil, como mecanismo de democracia participativa por ser uma questão de extrema importância para a população”.

Os autores acreditam ainda que a desestatização por meio de um simples PL ampliará a “insegurança jurídica” em torno do tema, porque, com a aprovação e promulgação da lei, existe grande possibilidade de ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade pela oposição. “Sob o ponto de vista pragmático-consequencialista, a insistência no projeto de lei pode produzir consequências pouco eficientes, já que o tempo economizado em uma aprovação mais simplificada certamente será compensado quando a discussão for judicializada, logo na sequência”.

Cada parlamentar governista indicou R$ 30 milhões em emendas ao Orçamento

Na entrevista citada acima, o deputado Simão Pedro comentou ainda outros aspectos políticos que envolveram a aprovação da matéria na Alesp. Apesar de encaminhar um PL e não uma PEC, mesmo assim para aprovar esse projeto “ele [Tarcísio] teve que comprar os deputados com o triplo de emendas parlamentares”, destaca o petista.

“Porque cada deputado neste ano de 2023 teve direito a indicar R$ 10 milhões em emendas parlamentares ao Orçamento, para serviços ou para entidades. E ele já tinha prometido mais R$ 10 milhões, e teve que mandar mais [outros] R$ 10 milhões a serem pagos até abril. Uma vergonha o que aconteceu”, denuncia.

Uma das ações contrárias à privatização da Sabesp tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), mas ela não questiona o PL 1.501/2023 e sim outro instrumento legal utilizado por Tarcísio para facilitar o processo de alienação da estatal. “Por decreto, o governador alterou a composição das regiões atendidas pela Sabesp, as URAES, de maneira que o Estado tenha maioria absoluta nas decisões, tirando poder dos municípios”, explica Simão.

“Já existe jurisprudência no Supremo de que isso é inconstitucional, então estamos aguardando o andamento dessa ação. Aqui na justiça de São Paulo entramos com três ações [contra o PL 1.501/2023]. Então vai ser uma luta jurídica”.

Durante evento promovido no dia 11/12 pela XP Investimentos, o governador Tarcísio de Freitas mudou seu discurso de que a privatização da Sabesp garantiria a redução das tarifas cobradas pela empresa. “A tarifa vai subir, mas a privatização garante que ela vai subir num valor menor”, disse, em frontal contradição com declarações anteriores dele próprio e de integrantes do governo estadual.

EXPRESSO ADUSP


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