Universidade
Hospital Universitário da USP abre pregão para contratar empresa privada que vai gerir contrato com o SUS
Será o início da privatização do HU? Suspensa pelo governo em 27/7, em razão de "pedidos de esclarecimentos", a medida parece confirmar advertências dos sindicatos quanto aos riscos de transferência do equipamento da universidade para “organizações sociais de saúde”
A USP divulgou no último dia 18/7 um edital de pregão eletrônico – cujo recebimento de propostas está aberto até esta sexta-feira (28/7) na Bolsa Eletrônica de Compras do Governo do Estado de São Paulo, o Sistema BEC-SP – com o objetivo de contratar “empresa especializada na prestação de serviços de assessoria no projeto para melhoria dos processos de gestão da contratualização [sic] do Hospital Universitário para o Convênio SUS [Sistema Único de Saúde]”.
O contrato terá vigência de doze meses e poderá ser prorrogado “por iguais e sucessivos períodos, de comum acordo”, mediante “celebração dos respectivos termos de aditamento ao contrato”.
De acordo com o edital, a empresa contratada deverá, entre outras atividades, “auxiliar a equipe de Gestão do Hospital na adequação dos processos de composição e remessa das contas hospitalares e ambulatoriais”; “promover o desenvolvimento de padrões de faturamento e auditoria das contas”; “assessorar a Direção do HU na adequação dos sistemas de informação existentes e no desenvolvimento de controles adicionais necessários para mitigar eventuais deficiências dos sistemas informatizados”; e “elaborar programa de treinamento dos envolvidos no ciclo de formação e remessa das contas, e do desenvolvimento de repositório de documentos visando aplicar melhores práticas de qualidade nos processos e sistemas envolvidos”.
O HU, diz ainda o edital, realiza uma série de procedimentos ambulatoriais e hospitalares que são registrados nos sistemas próprios do hospital com informações e “nomenclaturas customizadas” pela instituição, “de forma que para a geração e remessa da documentação necessária para cadastrar as informações de produção nos sistemas SUS AIH [Autorização de Internação Hospitalar] e SIA [Sistema de Informação Ambulatorial, que o edital chega a grafar erroneamente como SAI], existe a necessidade de aperfeiçoamento dos processos existentes e adequação da capacitação dos envolvidos desde a origem da informação nas áreas assistenciais, as equipes de retaguarda da administração, e as equipes de gestão estratégica do Hospital”.
O pregão foi momentaneamente suspenso pelo governo, nesta quinta-feira (27/7), em razão de “pedidos de esclarecimentos”, segundo informação disponível na página da BEC. “Estamos aguardando a equipe técnica analisar os pedidos de esclarecimentos”, diz ainda a Bolsa.
Empresa dará treinamento a “gestores assistenciais e da retaguarda administrativa”
A gestão do faturamento a ser “assessorada” pela empresa contratada inclui, entre outros pontos, a “implantação e acompanhamento do grupo institucional de Gestão das Receitas”; a “melhoria dos processos de formação das contas”; o “desenvolvimento de processos de acompanhamento das metas definidas no plano orçamentário”; “treinamentos aos gestores assistenciais e da retaguarda administrativa em regras de remuneração do SUS”; e o apoio ao HU “na adequação dos processos relacionados às publicações da Secretaria de Saúde relacionadas às alterações, novas regulamentações e cadastros que estejam relacionados à produção e faturamento do SUS”.
A empresa deverá também “apoiar o Grupo de Gestão de Receitas do HU em relação ao contrato atual com o SUS e os contratos futuros seja na pactuação ou no acompanhamento das metas contratadas”; “difundir e divulgar amplamente a importância da integração entre os sistemas […] e sua compatibilização no processamento do Sistema de Informação Hospitalar”; e “orientar Gestores quanto a novas regras, críticas e processamento do SIH [Sistema de Informações Hospitalares]”.
A metodologia de trabalho a ser utilizada prevê “coleta de informações de forma remota e presencial”, com um mínimo de seis visitas presenciais mensais, e “produção de mapas e relatórios demonstrativos, de modo a dar suporte em decisões que demandem ajustes nos processos e nas estruturas organizacionais envolvidas na parametrização dos sistemas e formação das contas”.
A empresa deverá prestar informações como os “arquivos históricos de AIHs e BPAs [Boletim de Produção Ambulatorial], mapas e relatórios de produção, e organogramas funcionais das áreas produtivas e de retaguarda administrativa”, incluindo “documentos, imagens, dados e bases de Dados”, em meio físico ou digital.
Edital infla número de leitos, sistematicamente reduzido pelo desmonte a partir de 2014
Chama a atenção o fato de que o edital, ao apresentar a infraestrutura do HU, utilize números como “206 leitos instalados” e “Centro Cirúrgico com 10 salas e 7 leitos de recuperação”.
De acordo com os dados oficiais do Anuário Estatístico da USP, o número de leitos ativos está longe disso: no ano de 2021, tomado por base pelo edital, o Anuário registra somente 145 leitos, e não 206, isto é: 61 a menos do que o número mencionado.
Desde 2014, quando a gestão reitoral de M.A. Zago-V.Agopyan iniciou o desmonte do HU, tentando até mesmo desvinculá-lo da universidade, o número de leitos ativos é reduzido por conta da falta de pessoal. Até 2013, eram 233; em 2014 caíram para 211; em 2019, chegaram a 127, o menor número da série histórica.
Das dez salas do Centro Cirúrgico, apenas duas estão em funcionamento. As demais não vêm sendo utilizadas por falta de pessoal. O número de cirurgias realizadas, de acordo com os dados oficiais, reflete claramente essa situação: os 2.828 procedimentos de 2021 correspondem a 54,8% do total de 2013, quando o HU realizou 5.159 cirurgias.
Embora o contrato se destine à prestação de um serviço específico e, em princípio, por tempo determinado, causa estranheza que uma instituição vinculada à USP precise recorrer ao mercado privado para dar conta desse trabalho, uma vez que a universidade possui instâncias administrativas próprias, inclusive destinadas a prover informações a outros órgãos públicos e governamentais. Além disso, a USP tem duas faculdades com cursos de Administração (FEA e FEARP) e outra unidade que oferece curso de Gestão de Políticas Públicas (EACH).
Iniciado há quase dez anos, o desmonte é um gerador ininterrupto de problemas para o HU. Um novo episódio que demonstra o agravamento da situação ocorreu na semana passada, quando o hospital instituiu um “Comitê de Gerenciamento de Crise” e adotou medidas como suspender o atendimento do Pronto-Socorro (PS) Adulto e, até o dia 31/7, cancelar as cirurgias eletivas, além de comunicar aos serviços de regulação do Município e do Estado que não receberia mais pacientes para o PS Adulto.
A contratação de serviços privados também coloca dúvidas sobre o discurso da Superintendência e da Reitoria de que não existe a possibilidade de que a gestão do hospital venha a ser assumida por alguma “organização social de saúde” (OSS), como é o caso, por exemplo, da Fundação Faculdade de Medicina (FFM), entidade privada que se habilitou a atuar como OSS. Os sindicatos vinham lançando advertências sobre o risco de privatização do HU, que agora parece se materializar na forma do edital publicado em 18/7.
O desmonte vem sendo denunciado e combatido sistematicamente pelas entidades representativas da comunidade universitária, como a Adusp, o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) e o DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”, além de movimentos sociais como o Coletivo Butantã na Luta, que cobram da Reitoria e do governo do Estado a recuperação da capacidade plena do hospital.
“São anos de abandono para com o HU, e durante os quais a Reitoria vem tirando seu corpo de campo, enquanto o ensino feito no hospital piora e o atendimento à população se torna inviável, sem que nem ela ou a Secretaria da Saúde façam algo relevante para resolver essa triste realidade”, lamenta o médico João Paulo Becker Lotufo, diretor clínico do hospital, em artigo publicado pelo Informativo Adusp poucos dias depois do anúncio das medidas tomadas pelo “Comitê de Gerenciamento de Crise”.
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