Universidade
Manifesto em defesa da USP pública
A Associação de Docentes da USP (Adusp), o Diretório Central dos Estudantes “Alexandre Vannucchi Leme” (DCE-Livre da USP) e o Sindicato de Trabalhadores da USP (Sintusp), entidades representativas de docentes, estudantes e funcionária(o)s técnico-administrativa(o)s, vêm a público manifestar sua preocupação com as transformações que estão ocorrendo na Universidade de São Paulo.
Tais transformações têm colocado sob risco o caráter público e a função social da USP, uma vez que subordinam as atividades acadêmicas a uma lógica predominantemente privatista, voltada para o mercado. Convidamos a comunidade universitária e a sociedade a refletirem sobre as mudanças realizadas a partir de algumas políticas implantadas mais recentemente.
Embora a atual gestão tenha criado uma Pró-Reitoria que diz pretender “inclusão e pertencimento”, as políticas de acesso e permanência estudantil não condizem com tal prerrogativa.
As mudanças feitas no Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (Papfe) deixaram de fora centenas de estudantes que já eram bolsistas no formato anterior. Muita(o)s que antes tinham pontuação suficiente para conseguir os auxílios agora já não conseguem ter a garantia de que serão contemplada(o)s. Parece-nos que a Reitoria considera que tais estudantes que necessitavam de bolsa, e anteriormente haviam obtido esse benefício, estariam agora em melhores condições do que a(o)s ingressantes — e já não precisariam mais dele!
Obviamente, é bem possível que a situação da(o)s estudantes que estão chegando à USP em 2023 seja ainda pior que a de quem aqui estava, considerando o empobrecimento generalizado da população, que ainda padece dos efeitos da pandemia de Covid-19 e das políticas nefastas do último governo federal. Mas essa constatação não autoriza a Reitoria a adotar a lógica perversa de tirar de quem tem quase nada para dar a quem nada tem. A universidade contava, no final de 2022, com R$ 5,7 bilhões em caixa, montante mais que suficiente para contemplar adequadamente as demandas básicas da permanência estudantil, sem sacrificar ninguém.
O atual programa deixou diversa(o)s estudantes sem auxílio provisório enquanto processam-se os dados de todas as pessoas a serem atendidas, o que impossibilitou o ingresso de muita(o)s estudantes e deixou outra(o)s tanta(o)s sem condições de se manterem nos cursos. Mas a Reitoria parece ignorar tais fatos e, estabelecendo regras que conduzirão a maior concorrência e à exclusão de estudantes, como a necessidade de estar cursando semestre em período ideal, desconsidera que há estudantes que se matriculam em mais de um curso, ou que são reingressantes, entre outros fatores.
Considere-se, ainda, a ausência de políticas para garantir a moradia estudantil. Não houve alternativa de moradia enquanto os blocos do Conjunto Residencial da USP – o Crusp – estão em reforma, e muita(o)s estudantes pobres tiveram que desistir de seus cursos por não terem garantia de que terão acesso ao auxílio e/ou à moradia. Ademais, a(o)s estudantes que residem nas moradias reafirmam a necessidade de abertura dos bandejões para que ofereçam três refeições durante os fins de semana, com a necessária contratação de trabalhadora(e)s efetiva(o)s para garantir melhorias dos restaurantes que estão cada vez mais sucateados e reverter o processo de terceirização.
Há ainda o déficit crônico de funcionária(o)s e docentes, agravado pelas políticas instituídas na gestão Zago-Agopyan (2014-2017): o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), aplicado em duas edições (2015 e 2016), e os Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira (2017). Sob o discurso de austeridade fiscal, a Reitoria da época definiu programas que conduziram a universidade para uma guinada de sucateamentos e abandonos, tendo impacto sobre os salários, sobre as contratações, sobre a infraestrutura, sobre a permanência estudantil e sobre as condições de trabalho e estudo.
Tendo como perspectiva uma visão neoliberal de universidade, a Reitoria da USP apresentou em setembro de 2016 o projeto “USP do Futuro”, que até então ela vinha conduzindo em total sigilo. Desenvolvido pela consultoria multinacional McKinsey&Company, com propostas privatizantes e pretensões essencialmente empresariais, o projeto foi definido como um “modelo de captação de recursos e de aprimoramento da gestão administrativa e financeira”. Embora oficialmente encerrado, algumas de suas propostas vêm sendo paulatinamente executadas.
A lógica de precarização e sucateamento atingiu prioritariamente unidades que o então reitor Zago definiu como “assistencialistas”: os hospitais universitários e as creches. As investidas reitorais contra essas unidades, desfechadas inicialmente pela gestão Zago-Agopyan, em 2014, mas renovadas e aprofundadas pelas gestões posteriores, foram marcadas por uma sucessão de ilegalidades e de violências institucionais de toda sorte.
O Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC, ou “Centrinho”), referência internacional no tratamento de fissuras labiopalatinas, foi oficialmente “desvinculado” da universidade e declarado “entidade associada” (em clamoroso desrespeito ao Estatuto da USP) já em 2014; foi repassado ao governo estadual em 2022; e passou a ser gerido, em janeiro de 2023, pela Faepa, fundação privada e “organização social de saúde”, gerida por professores da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, como foram o próprio Zago e o atual reitor, Carlotti Jr.
O Hospital Universitário (HU), equipamento fundamental para a formação de discentes de sete cursos da USP pertencentes à área da Saúde, está em situação calamitosa devido ao déficit de profissionais, além do abandono, com falta de manutenção dos espaços físicos, ocasionando até vazamentos e entupimentos. O HU foi uma das unidades da USP mais impactadas com o PIDV e segue sem nenhuma perspectiva de recuperação, embora seja referência de atendimento para centenas de milhares de pessoas na região do Butantã e Zona Oeste da capital. Unidades operacionais, como a Prefeitura do Câmpus e os setores de manutenção e serviços das unidades, estão sendo desmontadas e suas funções extintas para abrirem caminho à terceirização.
A política de terceirização de serviços, que é um braço da privatização, conduz a situações constrangedoras de exploração. Funcionária(o)s terceirizada(o)s são submetida(o)s a condições inaceitáveis de trabalho, com salários aviltantes, sem direito à utilização dos serviços, como o bilhete que dá acesso aos ônibus circulares – o BUSP, e sem acesso aos espaços e às atividades da universidade. São inúmeras denúncias de empresas que atrasam salários e não pagam benefícios. Uma universidade socialmente referenciada não deveria jamais conviver com a situação dessa(e)s trabalhadora(e)s.
Além de descaracterizar o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), a adoção da política de contratação de docentes temporário(a)s a título precário, que recebem o equivalente a um salário mínimo para dar aulas nos cursos de graduação da USP, é um ataque à carreira docente.
Elementos da lógica empresarial prevalecem em várias das políticas adotadas nas últimas gestões reitorais: bolsas e projetos de pesquisa financiados por empresas; apelo ao inovacionismo e ao empreendedorismo não só nos projetos de pesquisa e programas de intercâmbio, mas também no ensino de graduação e pós-graduação (“disciplinas empreendedoras”); investimentos de infraestrutura; cessão dos espaços da universidade para empresas; e, mais recentemente, a inclusão de uma perspectiva competitiva nas avaliações do corpo docente, na distribuição de claros docentes e na concessão de bônus baseada em critérios arbitrários, numa tentativa de dividir as categorias.
Insere-se ainda nessa perspectiva a criação, pela Reitoria, de um auxílio-saúde que induz a adesão a planos de medicina privados.
A política de substituir salários por “benefícios” é um ataque aos direitos da(o)s servidora(e)s, que visa precarizar ainda mais as condições de vida e trabalho. E instituir a concorrência, o produtivismo e a meritocracia destruirá a convivência coletiva e colaborativa necessária para desenvolvimento das atividades acadêmicas, além de promover o assédio institucional e o adoecimento — o que torna impossível não caracterizar tal postura como de “assédio moral coletivo”.
Este conjunto de fatos é suficiente para que afirmemos que a atual gestão reitoral, capitaneada por Carlotti Jr. e Maria Arminda, dá continuidade ao projeto que vem sendo desenvolvido a partir de 2014, visando a mudança do caráter público da USP e fazendo avançar a privatização com fins voltados sobretudo ao mercado. Preocupa-nos, como tem acontecido, que a Reitoria se aproxime do governo estadual, sabidamente defensor da lógica privatizante e com intenções de implantar uma reforma administrativa.
Também não é menor a preocupação quanto ao fato de o ex-reitor da USP, Vahan Agopyan, integrar o governo na condição de secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação, pasta à qual as universidades estaduais paulistas estão ligadas.
Por fim, o montante que a universidade tem em caixa, a gratificação (GVRP) e o prêmio recentemente adotados pela Reitoria atestam que há recursos suficientes não somente para a adoção de políticas adequadas de acesso e permanência estudantil para toda a demanda, como também para a recomposição dos quadros de docentes e de funcionária(o)s técnico-administrativa(o)s, a valorização salarial dos níveis básicos das categorias e, ainda, para reposição imediata de parte das perdas salariais impostas historicamente a essas duas categorias que garantem o funcionamento da USP.
É necessário que estejamos unida(o)s na defesa da USP pública, gratuita, de qualidade, com financiamento público adequado, laica, socialmente referenciada e de amplo acesso e efetiva permanência!
São Paulo, 14 de abril de 2023
Adusp, DCE-Livre da USP e Sintusp
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