Universidade
Negócios chancelados pela USP renderam R$ 937 milhões em apenas dois anos, mas a participação das fundações privadas “de apoio” no Orçamento universitário não ultrapassou 0,6%
Repasses do ICMS — recursos públicos — é que sustentam a universidade. Contribuição historicamente irrisória dessas fundações contradiz recorrente discurso de seus defensores, que as apontam como “imprescindíveis”
A reportagem “‘Empreendedorismo’ bilionário, a face real da ‘inovação’ na USP”, publicada na edição 68 da Revista Adusp (novembro de 2024), trouxe novos dados sobre a configuração atual do mercado de negócios privados que floresceu em conexão com influentes setores da universidade nas últimas décadas, em detrimento do caráter público, universal e gratuito da instituição.
Graças à Lei de Acesso à Informação (LAI), foi possível também quantificar o espantoso volume das transações privadas praticadas no período mais recente (2020-2024), por meio do levantamento dos valores compulsoriamente recolhidos à USP pelas fundações privadas ditas “de apoio” (e possivelmente também por outros atores), a título da “taxa de promoção da pesquisa, inovação, ensino, cultura e extensão”. Modesta, a taxa corresponde a 10% dos valores auferidos por projeto remunerado.
Cabe ao Fundo Único de Promoção à Pesquisa, à Educação, à Cultura e à Extensão Universitária (Fuppeceu), administrado pela Coordenadoria de Administração Geral da USP (Codage), recolher metade desses valores, ou seja: os cinco pontos percentuais que cabem à Reitoria (a outra metade é supostamente destinada às unidades). Mantidos sob inaceitável sigilo, os números do Fuppeceu informam a escala bilionária da remuneração adicional de docentes da USP que promovem a venda de serviços, tais como cursos pagos e projetos de assessoria.
De acordo com a Codage, o Fuppeceu arrecadou R$ 21.159.425,29 em 2022 e R$ 25.713.850,44 em 2023. Como esses valores correspondem a 5% da receita total gerada pelas atividades privadas remuneradas de docentes da universidade nos respectivos períodos anuais, chegaremos aos montantes de arrecadação de R$ 423 milhões em 2022 e R$ 514 milhões em 2023, em números redondos. Portanto, em apenas dois anos, esses negócios privados praticados com a “chancela USP” auferiram R$ 937 milhões.
Como se pode constatar na tabela “Estimativa de tamanho dos negócios privados na USP”, publicada na Revista Adusp 68, no total do período 2020-2024 (até outubro) esse mercado gerou nada menos que R$ 1,945 bilhão! Vale frisar que seus promotores e beneficiários, “empreendedores acadêmicos”, arrebanharam 90% desse montante, ou seja: R$ 1,75 bilhão.
A maior parte dessa quantia certamente procede da atividade das fundações privadas ditas “de apoio”. Porém, uma vez que a Codage continua omitindo informações que deveriam ser públicas, não é possível saber-se com exatidão qual é a fatia e quanto cada fundação recolheu.
Sempre se soube que as fundações privadas ditas “de apoio” à USP são altamente rentáveis, apesar da sua condição nominal, puramente formal, de “entidades sem fins lucrativos”. O lucro é embutido nos ganhos individuais de coordenadores de projetos e outros participantes, na forma de pagamento por serviços prestados, e aparece também no “superávit” das entidades.
Os números fornecidos a contragosto pela Codage também permitem saber qual a real contribuição das fundações privadas ditas “de apoio” ao Orçamento da universidade — fundamentalmente constituído pelo repasse de 5,02% da Quota-Parte Estadual do ICMS. Os 10% correspondentes à “taxa de promoção da pesquisa, inovação, ensino, cultura e extensão”, metade recolhida ao Fuppeceu e a outra metade diretamente às unidades, implicaram um pagamento total à USP, pelas entidades privadas, de R$ 42,318 milhões em 2022 e de R$ 51,427 milhões em 2023.
O orçamento da universidade, nesse mesmo período, foi de R$ 7,5 bilhões e R$ 8,4 bilhões respectivamente, em números redondos. Chegamos assim aos seguintes valores para a contribuição orçamentária das entidades privadas “de apoio” (e possivelmente outras organizações similares) nesses dois anos: 0,5% em 2022 e 0,6% em 2023. Esses dados refutam cabalmente a hipótese de “apoio”. Mas não há propriamente novidade na sua escala diminuta, como podemos constatar ao revisitar antigos registros da Codage.
Retorne-se aos anos de 1999 e 2000, quando as fundações privadas recolheram à universidade taxas no total de R$ 9,106 milhões e R$ 13,248 milhões, respectivamente. Uma vez que o Orçamento da USP foi de R$ 918 milhões em 1999 e R$ 1,173 bilhão em 2000, os repasses das entidades autoproclamadas “de apoio” corresponderam a, respectivamente, apenas 1% e 1,5% do total do orçamento da universidade.
Os números são importantes porque desmentem o recorrente discurso dos defensores dessas fundações, de que elas são “imprescindíveis” para as universidades. Ayrton Grazzioli, promotor titular da Promotoria de Fundações da Capital do Ministério Público (MP-SP), anos depois processado por corrupção pelo próprio MP-SP, chegou a declarar publicamente, em 2009, que tais entidades privadas “injetam mais recursos na USP do que o próprio Estado”, o que é uma inverdade clamorosa, como demonstrado acima.
Cabe questionar o que mudaria na USP, se as fundações privadas autoproclamadas “de apoio” passassem a transferir para a universidade recursos financeiros mais expressivos e portanto mais condizentes com a rentabilidade que usufruem. Provavelmente nada de substancial aconteceria, porque seriam mantidas as graves distorções institucionais que elas provocam, em especial os danos perpetrados ao caráter público da USP e a prática sistemática de conflito de interesses.
Os defensores dessas entidades sabem que não podem citar cifras financeiras, pois como se viu este é um terreno muito desfavorável para elas. Por essa razão, procuram construir narrativas que valorizem outros aspectos da atividade fundacional, como a “agilidade” e as contribuições à “inovação”. Recentemente, em evento realizado na Faculdade de Direito (FD), a mitologia das fundações privadas “de apoio” ganhou novas tinturas graças às alegações de algumas autoridades públicas.
Colóquio na Faculdade de Direito reforçou mitologia e idealizações
No colóquio “Fundações de Apoio aos serviços públicos sociais”, realizado em novembro de 2024, a diretora da Faculdade de Medicina (FM), professora Eloísa Bonfá, saudou aquilo que designou como “melhor modelo de ajuda para os hospitais terciários”, e definiu como nada menos do que “fundamentais” as fundações privadas: “Sem elas, nós não teríamos a excelência que a gente consegue, porque temos, sim, uma incapacidade de funcionar rapidamente com os entraves que existem no serviço público. Isso não significa que estamos buscando uma agilidade sem responsabilidade”. Deu como exemplo o fato de que, durante a pandemia de Covid-19, mais de 300 leitos foram transformados em UTIs, em menos de dois meses. “Isso só foi possível pela agilidade das fundações”, afirmou.
Arnaldo Hossepian Salles Lima Jr., presidente da Fundação Faculdade de Medicina (FFM), uma das organizações privadas elogiadas pela diretora da faculdade, informou em seguida que a FFM conta com 12.500 “colaboradores” [sic], a maior parte dos quais trabalha dentro do complexo do Hospital das Clínicas (HC). “Se a fundação não existe [sic] não teria como administrar aquele complexo e a população é quem sofreria”, pontuou Lima Jr.
As declarações da diretora da Faculdade de Medicina sobre os supostos “entraves” no serviço público e a suposta “incapacidade de funcionar rapidamente” introduzem uma série de interrogações na discussão sobre a USP. Quer dizer então que a tão propalada “excelência” da USP depende das fundações privadas? Vale repetir a frase da professora Bonfá: “Sem elas, nós não teríamos a excelência que a gente consegue”. Mas será que a “agilidade” da FFM tem algo a ver com a quantia de R$ 1 bilhão aplicada por essa fundação “de apoio” em títulos financeiros? Será que tem a ver com o superávit acumulado de R$ 339 milhões que ela exibia em 2023? Ou decorre do fato de que, por décadas, essa fundação “de apoio” cobrou uma “taxa de administração” sobre as verbas do Sistema Único de Saúde (SUS) recebidas pelo HC, ao mesmo tempo em que instituía nesse hospital público uma “segunda porta” para receber pacientes particulares e pacientes de convênio?
Por seu turno, o comentário do presidente da FFM, procurador de justiça aposentado do MP-SP, chega a ser chocante, por partir de alguém que trabalhou por 35 anos num órgão público. Na sua visão, o complexo do HC, um dos equipamentos públicos de saúde mais importantes do Brasil, depende, para sua adequada gestão, da atuação da entidade privada que ele preside desde 2022, do contrário “não teria” como ser administrado, para azar da “população”. Cabe perguntar: o amplo contingente da população que precisa de atendimento gratuito não sofre com a dupla porta do HC, que privilegia os pacientes particulares e de convênio, em detrimento dos pacientes do SUS?
Outro que, no colóquio, qualificou as fundações como “imprescindíveis” foi o professor da FD Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). “Essa ideia de modernização, de otimização, essa ideia de maior eficiência na prestação de serviços públicos, ela coincide exatamente com a melhor utilização das fundações de apoio”, explanou Xandão.
Será que o ministro do STF está ciente do “Experiência HC”, o “programa de imersão” oferecido pela FFM que promete a alunos de faculdades privadas um estágio privilegiado nas rotinas médicas desse hospital, pelo módico custo individual de R$ 8.450? Não há dúvida de que esse tipo de iniciativa mercantil é absolutamente incompatível com a ideia de “maior eficiência na prestação de serviços públicos”.
No entender do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC), que representa os estudantes da Faculdade de Medicina, o programa “Experiência HC” tem suscitado “competição entre acadêmicos da FMUSP e alunos externos por atividades e procedimentos” (destaques nossos). Pior ainda, diz o CAOC: “Cobrar valores exorbitantes de pessoas abastadas para complementarem sua educação num espaço que é mantido por investimento estatal abre prerrogativas para uma cada vez maior privatização de faculdades e universidades públicas”.
Nenhuma dessas questões mundanas parece incomodar a Reitoria. Assim, a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda pronunciou-se, no evento realizado na FD, favoravelmente à atuação das entidades privadas ditas “de apoio”, emprestando-lhes porém um inesperado papel teleológico, uma inusitada estatura sociológica: “Temos de pensar qual nosso destino. As fundações ligadas às universidades permitem uma dinâmica para a vida científica, cultural, acadêmica, em todas as suas faces e dimensões”.
Tais idealizações destituídas de qualquer base fática são desmentidas pela atuação cotidiana das fundações privadas “de apoio”, algumas das quais há tempos sequer reivindicam essa condição, por haverem se autonomizado em relação à universidade. Tornaram-se verdadeiras empresas dedicadas à sua real finalidade: empreender negócios.
Por outro lado, o “empreendedorismo acadêmico” já não depende de fundações. Muitos cursos pagos organizam-se em torno de outras estruturas. É o caso da Escola de Comunicações e Artes (ECA), onde há muitos anos são oferecidos cursos pagos benevolentemente divulgados pelo Jornal da USP. Em 28 de janeiro último, por exemplo, soube-se, por essa que é a publicação oficial da Reitoria, que estão “abertas as inscrições” para nada menos que sete cursos de especialização do tipo “MBA”, a saber: Gestão Integrada da Comunicação Digital para Ambientes Corporativos, Gestão de Comunicação e Marketing, Gestão Estratégica em Comunicação Organizacional e Relações Públicas, Negócios e Estética da Moda, Marketing Político e Campanhas Eleitorais, Business Intelligence e Analytics.
Na linha fina, chamada que vem abaixo do título, encontra-se a explicação tranquilizadora: “cursos são on-line e pagos mas há oferecimento de bolsas” (destaques nossos). Quem procurar o preço dos cursos vai perder tempo: o Jornal da USP não fornece essa informação, e o site da ECA também não. O segredo é a alma do negócio.
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