Universidade
Investigação da Receita Federal conclui que a Fundação Faculdade de Medicina remunera dirigentes, e aponta fraude tributária; entidade perde condição de “filantrópica” e recorre
Há décadas, INSS tenta cassar isenção de impostos da FFM, que já supera R$ 300 milhões anuais. A defesa da fundação privada rejeita as acusações
Uma investigação da Receita Federal iniciada em 2023 identificou a ocorrência de pagamentos ilegais a dirigentes e ex-dirigentes da Fundação Faculdade de Medicina (FFM), a poderosa entidade privada, dita “de apoio” à USP, que controla inteiramente a gestão do Hospital das Clínicas de São Paulo (autarquia estadual) e atua como “organização social de saúde” (OSS). Por lei, dirigentes de fundações privadas não podem receber remuneração pelas funções desempenhadas nessas instituições.
Criada e mantida por docentes da Faculdade de Medicina (FM-USP), há décadas a FFM ostenta a condição de “entidade filantrópica”, que lhe concede generosa isenção tributária. Somente em 2020, graças a essa isenção, a FFM deixou de recolher aos cofres públicos R$ 311 milhões em impostos, segundo o site jornalístico Bastidor, que noticiou em primeira mão, em 26 de junho último, a existência do processo na Receita Federal. Certificada pelo governo federal como Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), nesse mesmo ano a FFM “recebeu R$ 1,25 bilhão em recursos governamentais”.
Ainda segundo Bastidor, são citados no procedimento da Receita Federal quatro docentes da FM-USP que exercem ou exerceram cargos na fundação privada, entre os quais dois ex-diretores da faculdade, e um ex-reitor da USP que por dezesseis anos (2006-2022) atuou como diretor-geral da FFM. Todos possuem pessoas jurídicas às quais a FFM realizou pagamentos.
Em junho de 2023, a Receita Federal instaurou procedimento para verificar se a FFM atendia aos requisitos para manter a imunidade tributária. “Auditores solicitaram documentos sobre a estrutura da fundação, listagem de administradores e membros de órgãos internos, demonstrativos financeiros de 2020, além de informações sobre reorganizações societárias e certificados de entidade beneficente”, diz a reportagem de Alisson Matos publicada por Bastidor. “Os fiscais identificaram um padrão nas contratações da FFM: os cinco professores que ocupavam cargos de direção na fundação ou em entidades vinculadas possuíam empresas que prestavam serviços à própria FFM”.
Assim, no entender da Receita Federal, a FFM descumpriu os requisitos para manter a imunidade tributária ao distribuir patrimônio a dirigentes valendo-se de contratos simulados. “A fiscalização aplicou multa qualificada de 150% sobre os valores devidos, alegando fraude contábil e conluio dos dirigentes para ‘omitir atos comissivos de fraude relacionados à remuneração paga a pessoa física em conta de pessoa jurídica’. Na prática, de acordo com a acusação, os contratos foram uma forma ‘oblíqua e dissimulada’ de pagar os dirigentes, numa prática vedada por lei para entidades beneficentes”.
É um caso clássico de conflito de interesses, já identificado, por exemplo, em uma auditoria contábil realizada em 2006, a pedido do Ministério Público (MP-SP), em outra fundação privada “de apoio” à USP, a FUSP. A auditoria constatou a existência de um projeto fictício, criado treze anos antes (em 1993), cuja única finalidade era remunerar, de forma disfarçada, os dirigentes da FUSP.
No caso da FFM, a investigação realizada pela Receita Federal verificou que em 2020 a empresa pertencente ao ex-reitor recebeu a quantia de R$ 874 mil por suposto serviço de “assessoria acadêmica à FMUSP” (ou seja: “assessoria acadêmica” à Faculdade de Medicina!), enquanto a empresa de um ex-diretor da FM-USP faturou R$ 532 mil por suposta “consultoria em educação permanente”.
Outra empresa, pertencente a um membro do Conselho Curador da FFM, recebeu (em 2020) R$ 349 mil por “coordenação de MBA em Gestão de Saúde”, no que parece ser um pagamento que corresponde a uma tarefa real, ainda que moralmente condenável uma vez que fere o caráter público e gratuito da USP. A FFM criou sua própria escola para oferecer cursos pagos, denominada “HCX-Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo”, e um deles é o citado MBA.
Na edição 2024-2025 do curso, que não tem como coordenador o docente envolvido, o preço cobrado por pessoa foi de “26.875,00 à vista ou 24 x de R$ 1.119,79 no crédito”, com 200 vagas. Se todas tiverem sido preenchidas, a receita bruta do curso será de R$ 5,375 milhões.
Uma docente citada, por sua vez, teria prestado “consultoria em gestão administrativa” à FFM, o que é claramente contraditório com os cargos institucionais que ela exerce tanto na faculdade como na fundação privada. A empresa de outro ex-diretor da FM-USP recebeu pagamento por suposta “assessoria em inovação e tecnologia em saúde”.
“Sob pretexto de contratação de pessoa jurídica prestadora de serviços, a FFM distribuiu patrimônio social da entidade em benefício das pessoas físicas titulares de órgãos de administração”, diz o relatório da Receita Federal, conforme a reportagem. Além disso, as contratações se deram por “notória especialização”, sem processo licitatório, o que viola princípios de impessoalidade e moralidade administrativa. “O fato de os membros da cúpula diretiva decidirem sobre contratos com suas próprias empresas sem procedimento competitivo já viola a moralidade, probidade, impessoalidade, em nítido conflito de interesses”, assinala a Receita Federal naquele documento.
Assim, a fundação teria violado seu próprio estatuto e as regras legais para manutenção do CEBAS, condição que garante isenção de contribuições sociais. “Se perder a imunidade, a FFM terá que pagar não apenas os impostos futuros – algo em torno de R$ 311 milhões por ano – mas também os de 2020, acrescidos de multa de 150% e juros. O valor total da cobrança não foi divulgado”, destaca o Bastidor.
CARF julgará recurso da FFM, que alega “violação ilegal do sigilo fiscal”
A FFM recorreu da decisão da Receita Federal. O recurso será julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão do Ministério da Fazenda. Ao Bastidor, a FFM alegou que os serviços foram efetivamente prestados e atenderam à legislação específica sobre prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas, que todos os contratos foram transparentes e que a Receita não seguiu o procedimento correto para questionar a imunidade tributária. Ainda de acordo com a reportagem, todos os docentes citados foram procurados, mas nenhum deles respondeu aos questionamentos enviados.
Após a publicação do texto, a FFM enviou nova nota ao site jornalístico, na qual afirma que “o dever de sigilo fiscal consta do artigo 198 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, Código Tributário Nacional (CTN)”, segundo o qual, sem prejuízo do disposto na legislação criminal, “é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades” (redação dada pela lei complementar 104/2001).
Ainda segundo a fundação privada “de apoio”, a “violação ilegal do sigilo fiscal foi calçada por interpretação escandalosa e maldosa para uma situação que ainda depende de análise sobre as provas e de recursos”. “A todos os contribuintes, porém, garante-se o direito ao devido processo legal contra cobranças ilegais e injustas. Todos esses casos são protegidos pelo mesmo sigilo fiscal e nunca se viu semelhante quebra, como ocorre nessa hipótese, o que reclama necessária investigação”.
Alega a FFM, igualmente, que os “números usados no texto são equivocados, assim como as conclusões do redator”. “Oportunamente, todos os fatos serão devidamente esclarecidos, no curso do devido processo administrativo fiscal, com preservação do direito de intimidade dos docentes envolvidos. É grave a tentativa de conspurcar a imagem e a integridade moral de docentes responsáveis e respeitados”.
No último dia 9 de julho, a coluna de Mônica Bérgamo, no jornal Folha de S. Paulo e no portal UOL, repercutiu o furo jornalístico do Bastidor, dando como manchete “Fundação da USP é multada pela Receita por ‘fraude e duplicidade’ na remuneração de médicos”. Segundo a matéria, a “autuação envolve integrantes da cúpula da faculdade e do Hospital das Clínicas (HC) — e, portanto, da elite da medicina paulista”, e o auto de infração foi lavrado no dia 4 de junho último.
Não é a primeira vez que órgãos do governo federal questionam as isenções fiscais descabidas da FFM. No entanto, o forte lobby da fundação privada sempre conseguiu manter sua condição de “entidade filantrópica”. Uma das tentativas de cassar esse privilégio ocorreu já em 1996, quando a Gerência Regional de Arrecadação do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) tentou cassar os CEBAS da FFM e da Fundação Zerbini. Na ocasião, já foi encontrada a prática da remuneração ilegal de dirigentes dessas entidades privadas.
“Fiscais do INSS, após diligências, lavraram auto de informação fiscal no qual concluíram que as fundações não eram entidades beneficentes, vendiam serviços hospitalares, remuneravam seus diretores. Um ministro chegou a telefonar para o gerente do INSS, em defesa das entidades. As fundações defenderam-se no processo administrativo e mantiveram sua isenção” (destaques nossos), relatou a Revista Adusp 24, de dezembro de 2001.
Naquela mesma edição, a Revista Adusp publicou uma entrevista com Sandra Papaiz, então diretora-geral da FFM. “Nosso negócio é rodar paciente. Não é instituição de caridade nem previdência”, declarou a executiva, com rude franqueza empresarial, ao referir-se ao Hospital das Clínicas, esquecendo-se de que graças ao estatuto de “filantrópico” esse equipamento público, principal complexo hospitalar da América Latina, recebia maior remuneração do Sistema Único de Saúde (SUS).
A desastrada confissão de Sandra Papaiz levou os auditores do INSS a abrir um novo processo administrativo contra a fundação privada. Mas ninguém precisa se esforçar muito para descobrir o resultado dessa nova tentativa.
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