Serviço Público
Governo Tarcísio descumpre liminar que proíbe venda ou cessão de estações experimentais de pesquisa, mas juiz da 15ª Vara da Fazenda Pública reage, endurece decisão e ameaça punir responsáveis em caso de novo desrespeito
Parte da área da Estação Experimental de Itapetininga, com quase 100 hectares para pesquisa e conservação ambiental, passou por estudos técnicos de órgãos governamentais com vistas à construção de um aeroporto. Magistrado intimou pessoalmente a secretária Natália Resende (Semil) e o diretor-executivo da Fundação Florestal, Rodrigo Levkovicz, para que comprovem cumprimento da nova ordem judicial em 15 dias
No último dia 29 de outubro, o juiz Kenichi Koyama, titular da 15ª Vara da Fazenda Pública da capital, reconheceu que o governo estadual descumpriu uma liminar, já julgada e mantida pelo Tribunal de Justiça (TJ-SP), que impede a venda e a exploração de 37 estações experimentais situadas no interior do Estado — áreas que pertenciam ao centenário Instituto Florestal, hoje extinto, e atualmente são geridas pela Fundação Florestal (FF).
O pedido para reanálise do caso partiu do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), autor da Ação Civil Pública, frente à movimentação explícita de diferentes atores políticos ligados ao governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD), e do próprio governador, para criar um fato consumado: a doação de parte da Estação Experimental de Itapetininga para construção de um aeroporto na cidade.
Em um vídeo publicado nas redes sociais, o secretário estadual de Agricultura e Abastecimento, Guilherme Piai, finge ignorar a decisão judicial e anuncia a conclusão de um estudo para doação de parte daquela fazenda. O mesmo vídeo também mostra o governador prometendo doar a área ao município e investir recursos públicos para construir o aeroporto.
“Depois da autorização do governador Tarcísio, nós começamos um trabalho técnico pelo Itesp [Instituto de Terras do Estado de São Paulo], terminamos o georreferenciamento, o laudo de avaliação, nota técnica, e o trabalho está concluído e a gente vem entregar hoje para o prefeito uma área de quase 100 hectares. Agradecer aqui à Fundação Florestal”, disse Piai na gravação, candidamente.
Em outro vídeo, o prefeito de Itapetininga, Jeferson Brun (Republicanos), aparece em visita à Estação Experimental, na companhia de um deputado estadual. “Em poucos meses, deputado, a gente começa a obra e, logo, logo, o senhor vai poder pegar o seu primeiro voo aqui de Itapetininga”, proclamou o prefeito.
“A tutela de urgência deferida nestes autos é expressa e inequívoca. Determinou-se que o Estado de São Paulo se abstivesse de dar seguimento a quaisquer atos e processos, preparatórios, auxiliares ou específicos, para concessão, permissão ou alienação de Unidades Produtivas listadas nesta Ação Civil Pública. A Estação Experimental de Itapetininga consta expressamente do rol das áreas protegidas (item 15, fls. 55). A documentação acostada aos autos pelo próprio Estado revela a prática de atos administrativos concretos e substanciais voltados à destinação de parcela da Estação Experimental de Itapetininga à Prefeitura Municipal para construção de aeroporto”, diz o juiz Koyama na decisão.
A seguir, o titular da 15ª Vara da Fazenda Pública elenca os documentos que constam dos autos e que atestam a manobra do governo estadual que afronta a liminar concedida: “menção ao Ofício 467/2023 do Município solicitando formalmente a cessão; Nota Técnica GM/DMI/FF 25/2025 elaborada pela Fundação Florestal contendo análise detalhada da área com vistoria técnica realizada em 5 de julho de 2024 utilizando drone e georreferenciamento; despachos e manifestações internas da Fundação Florestal, Semil [Secretaria do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística] e Procuradoria Geral do Estado; e declaração expressa da Diretoria Executiva da Fundação Florestal afirmando que a cessão é viável e de interesse público, consignando que a liminar não foi interpretada como impeditiva da cessão a ente público”. E destaca: “Tal conjunto probatório evidencia o descumprimento da ordem judicial”.
Koyama prossegue reiterando as proibições definidas pela liminar: “A decisão proibiu expressamente quaisquer atos preparatórios, auxiliares ou específicos voltados à concessão, permissão ou alienação das áreas listadas, sem estabelecer qualquer distinção quanto ao destinatário ou à finalidade da destinação. A interpretação restritiva adotada pela Fundação Florestal, segundo a qual a liminar não impediria cessão a ente público, é manifestamente contrária ao comando judicial e fragiliza indevidamente a tutela concedida. A cessão ou doação de bem público constitui espécie de alienação, nos termos do artigo 76 da Lei 14.133, de 1o de abril de 2021, inserindo-se inequivocamente no espectro da vedação imposta”.
Assim, após analisar a situação criada em Itapetininga, o juiz da 15ª Vara da Fazenda Pública decidiu endurecer as medidas coercitivas adotadas no processo e expedir “ordem judicial expressa” de que o Estado se abstenha de praticar novos atos de descumprimento da tutela de urgência (liminar), sob pena de aplicação de multas e outras sanções de caráter civil e criminal aos responsáveis pela eventual desobediência.
“Ante o exposto, RECONHEÇO o descumprimento da tutela de urgência deferida […] e mantida pelo Egrégio Tribunal de Justiça […] e DETERMINO: a) A expedição de ordem judicial expressa determinando que o Estado de São Paulo se abstenha de praticar quaisquer atos administrativos ou legislativos relacionados à alienação, cessão, concessão, permissão ou destinação, a qualquer título, da Estação Experimental de Itapetininga, sob pena de aplicação imediata da multa e responsabilização pessoal dos gestores públicos envolvidos, com advertência expressa de que a reiteração de atos similares ensejará a aplicação de sanções por ato atentatório à dignidade da Justiça, nos termos do artigo 77, inciso IV e parágrafo segundo, do Código de Processo Civil, sem prejuízo de providências criminais e de improbidade administrativa” (destaques presentes no original).
Determinou ainda a “ampliação da tutela de urgência para determinar que o Estado de São Paulo se abstenha de realizar supressão de vegetação nativa e de efetuar novos plantios de pinus ou eucalyptus nas áreas listadas na presente Ação Civil Pública, sob pena de aplicação da multa”, bem como a “intimação pessoal da Secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística e do Diretor Executivo da Fundação Florestal, Sr. Rodrigo Levkovicz, para que, no prazo de quinze dias, comprovem o integral cumprimento da liminar, mediante apresentação de todos os documentos administrativos, notas técnicas, despachos e pareceres relacionados à cessão da Estação Experimental de Itapetininga; comprovação do arquivamento ou suspensão definitiva do Processo SEI nº 001.00007395/2023-48 e de qualquer processo administrativo com tal finalidade; e declaração formal de ciência da decisão judicial e de seu teor por todos os setores da Semil e da Fundação Florestal”.

A ampliação da tutela no tocante à supressão de vegetação nativa foi realizada a pedido da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), que atua no processo como amicus curiae, fornecendo informações sobre o tema. “O bioma Cerrado, do qual faz parte a Estação Experimental de Itapetininga, possui apenas 3% de remanescentes no Estado de São Paulo, com apenas 0,1% protegido em unidades de conservação de proteção integral, segundo o Inventário Florestal do Estado de São Paulo”, reforça o magistrado na decisão.
A Ação Civil Pública que levou a 15ª Vara da Fazenda Pública a impedir o Estado de vender ou explorar 37 áreas de experimentação científica foi proposta pelo MP-SP em 2017. Em 2022, o Estado tentou conceder à iniciativa privada outras cinco áreas que constavam na lista objeto da ação judicial. Na ocasião, a pedido do MP-SP, a Justiça proibiu a concessão das estações experimentais de Itapeva e Itirapina e das Florestas Estaduais de Águas de Santa Bárbara, Angatuba e Piraju.
O avanço predatório sobre a Estação Experimental de Itapetininga, para a construção de um aeroporto, “causaria um enorme estrago ambiental, porque essa área de pesquisa guarda os últimos remanescentes de vegetação nativa da região”, sustenta Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC, entidade contrária à venda das áreas de pesquisa.
A Estação Experimental de Itapetininga tem uma área total de 6,7 mil hectares. Consta no processo que um estudo feito pelo Instituto Florestal em 2013 identificou que a fazenda abrange 1,2 mil hectares de floresta estacional semidecidual, 1.183 hectares de savana, além de 89 hectares de área ecotonais entre estes dois tipos de vegetação. A área abriga espécies ameaçadas de extinção, como o lobo-guará.
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