Ciência, Tecnologia e Inovação
Globalização e pós-fordismo, quem diria, tornam-se pretextos para “maleabilizar” o RDIDP
No Painel 2 do “Diálogo TCE-Cruesp”, “Regimes de Trabalho e participações em projetos”, coube a Maria Encarnação Beltrão Sposito, professora titular de Geografia e presidente da Comissão Permanente de Avaliação (CPA) da Unesp, dar novos passos na trilha desbravada por Goldemberg, Valentini, Álvaro Prata e Maria Paula, beirando o surreal. A presidenta da CPA disse ter se sensibilizado com a referência da colega da USP “ao fato de que nós temos freios muito duros”, cabendo indagar o que será preciso fazer para “mensurar melhor a força desses freios e alterar nossas rotinas”. Defendeu igualmente “a ideia de mudança de cultura, que se torna essencial para o conjunto de mudanças que são necessárias”.
Ao explanar sobre os regimes de trabalho, a professora concluiu que o RDIDP justificava-se no contexto de constituição de um sistema estadual paulista de ensino superior, nos anos 1960, “quando havia a necessidade de se passar de uma condição de simples instituição de ensino para efetivamente instituições de ensino, pesquisa e extensão”, sendo “fundamental a constituição também de regimes de trabalho sólidos”. Porém, acredita ela, passados mais de cinquenta anos, “os contextos econômicos e institucionais se alteraram muito e estamos diante de um período de globalização com economia extremamente flexível, bastante diferente do período fordista que vivíamos na pós-guerra”.
Eis, portanto, novos “argumentos” para justificar a quebra do RDIDP: a globalização e o pós-fordismo. “Se tudo mudou, por que haveriam de ficar no mesmo lugar e na mesma posição os regimes de trabalho?”, indagou Maria Sposito. “Acho que é fundamental que eles passem por processos de debate, de redefinição, de reconceitualização e mais que isso exigindo um conjunto outro de transformações que envolvem uma alteração da nossa postura diante desse conjunto de mudanças”.
Seria preciso esclarecer o que significa alterar a “nossa postura” frente às mudanças. Mas a professora acrescentou novos ingredientes contraditórios: “Então é necessária mudança em direção ao futuro, é fundamental respeito à autonomia, porque é isso que nos rege, isso já foi destacado mais de uma vez no dia de hoje, e é necessário que a gente seja capaz de valorizar o que é uma instituição efetivamente pública, que é aquilo que somos as três universidades paulistas”.
Maria Sposito falou dos dois principais regimes de trabalho adotados pela Unesp: o RDIDP (existente também na USP e Unicamp) e o “RDIPD”, Regime de Dedicação Integral à Pesquisa e à Docência, criado em 2014 com a finalidade de ser o regime exclusivo dos pesquisadores da Unesp, que se obrigam a 40 horas semanais de trabalho, durante as quais desenvolverão “atividades de pesquisa e de ensino, sendo as de ensino em nível de Pós-graduação stricto sensu”.
“São regimes de dedicação exclusiva com avaliação feita pelas unidades universitárias onde estão esses profissionais e pela própria CPA”, disse a professora. “A pergunta que se apresenta para nós é: esse formato, essa composição, é suficiente, é adequada, é a melhor composição para enfrentarmos esse conjunto de mudanças que se fazem necessárias? Parece que não”. Por que “parece que não”, ela não disse. “Então nós pensamos que seria necessário avaliarmos, refletirmos sobre alguns princípios que deveriam orientar nossas mudanças, se é que é preciso alterar os regimes, ou alterar aquilo que é o conjunto de exigências para cada um deles antes de começarmos a fazer essas mudanças. Parece-me que é muito mais interessante e se faz mesmo fundamental refletir sobre princípios”.
Apesar da preocupação com “princípios”, a presidenta da CPA da Unesp defendeu a realização de “revisões rápidas da normativa em vigor”. E por que tanta pressa? “Não dará tempo de fazermos um amplo debate, num primeiro momento [serão necessários] quase que retoques cirúrgicos nos pontos que são cruciais para que rapidamente a gente ajuste a normativa em vigor às novas demandas”. Como não foram apresentados os motivos para tamanha urgência, o que essa intervenção frenética traduz é simplesmente a capitulação da ciência frente ao discurso do inovacionismo e das “novas demandas”, ao senso comum do mercado.
“Uma orientação também eficaz, direta, didática, [aos/dos?] pró-reitores, direção, chefes, áreas de recursos humanos, comissões de avaliação, de convênios, para que todos possam ajustar o conjunto de suas formas de proceder a essa plêiade de possibilidades que o novo Marco Jurídico traz. De algum modo fazendo com que as mudanças que se façam na normativa possam ser rapidamente incorporadas no cotidiano da universidade (destaques nossos)”.
Maria Sposito é favorável ao que chamou de “revisão e maleabilização, se é que a gente pode chamar assim, dos regimes de trabalho segundo os interesses da universidade, enfim, alterar editais de concurso, propiciar um conjunto de mudanças nas ações de cada profissional mesmo se ele permanecer no regime — ele entra no regime com dado perfil, depois de cinco anos ele talvez vá fazer menos ensino e mais extensão e é preciso estar atento para esse desejo dele, do departamento e da sua unidade”, isto é: a possibilidade “de rápida reversibilidade na passagem de um regime ao outro e na volta ao primeiro”.
Mas isso não é tudo. A professora também propôs, nas transparências que exibiu, uma agenda completa de reformas capazes de adequar a universidade aos novos tempos. Que inclui, por exemplo: “Alterações nos currículos da graduação e pós-graduação para favorecer a integração do que se realiza com a Sociedade, em termos de extensão universitária, propiciando efetiva articulação entre ensino, pesquisa e extensão, bem como atitudes de inovação (tecnológica e social) e de empreendedorismo”. A menção ao empreendedorismo não poderia faltar, embora sem qualquer justificativa razoável.
A presidenta da CPA da Unesp coroou sua intervenção no “Diálogo” com uma extravagante reflexão sobre a interação da universidade com o mundo ao redor: “Normalmente se pensa: tem a universidade, e o braço dela que fala com a sociedade é a extensão que sai para fora dela. A gente também poderia pensar o contrário: a extensão também pode ser entrar na universidade, mudar seus currículos, mudar seus ambientes de trabalho, e aqui vem esse último ponto: alterar as estruturas administrativas e físico-territoriais para possibilitar que essas relações entre a universidade e a sociedade sejam também internas a uma rotina acadêmica” (destaques nossos).
Em outras palavras: “Não é apenas sair da universidade para ir à empresa, mas as empresas, o poder público, estarem dentro da universidade modificando o nosso cotidiano e se integrando efetivamente ao ensino e à pesquisa” (destaques nossos). Talvez a professora deva visitar unidades da USP e Unesp controladas por fundações privadas “de apoio”, para constatar que estas e outras empresas já modificam o cotidiano da universidade?
Quem sabe estimulado pelo arremate um tanto teatral da manifestação da professora, o mediador Márcio Martins de Camargo, auditor do TCE e substituto de conselheiro, sentiu-se no dever de registrar, com a elegância possível em tais circunstâncias, uma certa inquietação: “Antes da abertura do painel eu disse à professora Maria Encarnação que eu não tinha trazido nenhuma dúvida de casa, […] e agora após a fala dela eu tenho muitas, mas nós não temos espaço para perguntas, então vamos continuar acompanhando o trabalho dos que estão diretamente envolvidos nesse tema”. Pano rápido! (Próximo texto: “Newton Frateschi fala de inovação, de ‘empresas filhas da Unicamp’ e ‘educação empreendedora’”)
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