Saúde
Paulo Margarido instaura PAD para perseguir e calar funcionária do Hospital Universitário que critica sua gestão
Barbara Della Torre, representante de sua categoria no Conselho Universitário, denunciou o descaso da direção do HU no tocante a condições de trabalho adequadas e seguras frente à Covid-19. Sindicância que precedeu o processo lembra dossiê da polícia política e faz “devassa” nas declarações dela em site jornalístico e até mesmo no Co. Fórum das Seis divulga manifesto em sua defesa: “Trata-se de um processo de clara perseguição política, com atitudes antissindicais, uma vez que Barbara é diretora de base do Sintusp”
O superintendente do Hospital Universitário (HU), Paulo Francisco Ramos Margarido, instaurou em fevereiro último, por meio da portaria interna 1.074/2032, um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra a funcionária Barbara Della Torre, representante da categoria no Conselho Universitário (Co), sob as alegações de “descumprimento de normas gerais”, “descumprimento de ordens diretas de seus superiores hierárquicos, inclusive deixando de comparecer perante a Comissão Sindicante”, ausência de seu posto de trabalho “sem motivo justificado e sem pedir autorização” e de “prática de ato lesivo da honra ou da boa fama praticados contra o empregador e superiores hierárquicos”. A Comissão Processante iniciou seus trabalhos em 17/8.
Como publicamente denunciado na reunião de 24/8 do Co — por meio das intervenções de Vânia Ferreira Gomes Dias e Reinaldo dos Santos Souza, ambos também representantes do funcionalismo naquele colegiado — o PAD contra Barbara é uma retaliação à sua atividade sindical e política contra os desmandos da Superintendência do HU. Ela vem expondo, nas reuniões do Co, uma série de problemas no tocante às relações de trabalho existentes no hospital.
“Ela está sofrendo um processo administrativo por uma situação de luta por melhores condições de trabalho no HU no início da pandemia. Era uma situação crítica, ela veio a público denunciar dificuldades pelas quais estavam passando os trabalhadores e o atendimento no HU, e hoje ela está sofrendo perseguição”, disse Vânia ao Co. “Essa atitude, e mais a falta de diálogo que a gente tem observado e vivido em todo esse tempo de pandemia, é mais um exemplo da atitude autoritária e antidemocrática que muitas vezes é tomada pela universidade”, acrescentou, manifestando apoio a Barbara.
O PAD foi precedido de sindicância criada pela portaria interna 1.059, de 13/7/2020, com base na alegação claramente política de que Barbara “vem propagando de forma potencialmente maliciosa informações inverídicas sobre o funcionamento do Hospital Universitário, desestabilizando os setores e tendo impacto negativo no desempenho das funções das equipes, efeito particularmente nocivo durante uma situação de emergência sanitária”. A inexistência de referência a fatos concretos e a acusação vaga e subjetiva (propagação de “forma potencialmente maliciosa de informações inverídicas”) sinalizam o caráter persecutório da medida.
A peça inicial da sindicância é um ofício de Margarido ao procurador geral da USP, Ignácio Poveda Velasco, em que o superintendente se queixa da “grande dificuldade [sic] com uma funcionária deste Hospital Universitário, Barbara Della Torre, técnico administrativo [sic] e representante dos funcionários no Conselho Universitário, que a todo momento propaga aos funcionários do hospital informações inverídicas, tais como falta de EPI, negativa de dispensa de funcionários por mera deliberalidade da administração, não contratação de funcionários por vontade do reitor e superintendente”.
Ainda de acordo com o documento, a conduta da funcionária coloca em risco a “harmonia interna” da instituição e suas ações “acabam desestabilizando os setores, inclusive colocando as orientações emanadas pela administração em dúvida”. Como “forma de ilustrar as informações declaradas”, acrescenta Margarido, “estão anexados boletins e publicações da funcionária, que tem o claro objetivo de tumultuar o hospital, bem como os protocolos de contágio de servidores e atenção ao correto atendimento de pacientes”. A seguir ele anexa textos de algumas reportagens publicadas pelo site Esquerda Diário; um post de Bárbara em rede social, de maio de 2020, com a frase “E começa mais um dia de trabalho no HU da USP sem EPI”; e um documento de 24/3/2020, assinado por uma chefe de setor, no qual a funcionária é acusada de atraso na chegada e de, após uma reunião de serviço, promover “instabilidade e aglomeração”.
Sindicância investigou até falas de Barbara no Conselho Universitário
A fragilidade de tais “provas” não impediu a PG-USP de recomendar a abertura de sindicância, para investigar a “divulgação de informações equivocadas sobre as condições de trabalho dos servidores do Hospital no site www.esquerdadiario.com.br”. Isso embora o Sindicato dos Trabalhadores (Sintusp) tenha realizado diversos protestos na frente do hospital, reivindicando explicitamente a distribuição de EPIs adequados e na quantidade necessária, conforme atesta ampla cobertura do Informativo Adusp.
Adusp, Sintusp, Coletivo Butantã na Luta e Sindicato dos Médicos (Simesp) encaminharam à Promotoria de Saúde do Ministério Público estadual (MP-SP) questionamentos sobre as condições de trabalho e funcionamento do hospital e chegaram a sugerir ação por improbidade administrativa. Ou seja, os atos lesivos imputados a Bárbara foram objeto de ampla denúncia feita pelas entidades. A Superintendência do HU se opunha tão ferrenhamente aos afastamentos do pessoal pertencente a grupos de risco que chegou a atacar publicamente decisão da 80ª Vara da Justiça do Trabalho da capital nesse sentido.
Iniciada a sindicância, dezenas de outras matérias do Esquerda Diário foram incluídas pela Comissão Sindicante. O processo chega a anexar como prova a notícia de que o Ministério Público do Trabalho (MPT) convocou a USP a prestar esclarecimentos sobre a dispensa de trabalhadores e trabalhadoras do grupo de risco do HU. Como se sabe, quem pertencia a grupos de risco efetivamente não foi liberado do trabalho presencial pelo HU, o que acabaria levando o MPT e o Sintusp a pedirem a eventual prisão do reitor. Outra matéria anexada reproduz declaração de Barbara ao próprio Co: “A maior parte dos negros desta universidade estão [sic] nos trabalhos terceirizados e propomos a proibição de qualquer demissão”.
A sindicância realizou uma verdadeira devassa na atividade político-sindical de Barbara, de tal forma que o relatório final se assemelha a um dossiê policial. O viés político da sindicância foi tão extremado que ela se debruçou sobre o teor das próprias declarações oficiais de Barbara na condição de integrante do Conselho Universitário, aproveitando-se do fato de que alguns vídeos que registram sua participação nessas reuniões foram divulgados no site Esquerda Diário. O tópico 40 do relatório final, por exemplo, não apenas reproduz trecho de um comentário da funcionária no Co, como se dá ao trabalho de rebater detalhadamente suas afirmações.
Barbara decidiu não depor na sindicância. Ao encerrar seus trabalhos, a Comissão Sindicante “firmou convencimento de haver indícios de que a servidora adotou condutas irregulares” e sugeriu a abertura de um PAD. Extrapolando suas finalidades, a Comissão Sindicante concluiu ainda ter identificado nos autos “indícios de crimes de difamação e injúria supostamente praticadas pela sindicada contra o reitor Vahan Agopyan e contra o superintendente Paulo Francisco Ramos Margarido”.
A Comissão Processante é constituida por Clara Maria Zorigian (presidente), Helen Cristina Pedrino e Eduardo Lerner. Barbara pediu vistas do processo e seu depoimento está agendado para esta quinta-feira (9/9).
“Existe um propósito de intimidação e censura”, diz Fórum das Seis
O Fórum das Seis, que articula os sindicatos das três universidades estaduais e do Centro Paula Souza, divulgou manifesto em defesa de Barbara, no qual lembra que ela, “assim como milhares de mulheres trabalhadoras da saúde, esteve na linha de frente durante toda a pandemia para atender a população, que sofre com mais de 575 mil mortes em nosso país”. No entender do Fórum, existe um propósito de intimidação e censura no PAD instaurado por Margarido: “Trata-se de um processo de clara perseguição política, com atitudes antissindicais, uma vez que Barbara é diretora de base do Sintusp”.
A USP a ameaça de demissão, esclarece, “por ter sido parte de uma ampla campanha”, avalia o Fórum, levada adiante por Sintusp, Adusp, Simesp, Coletivo Butantã na Luta, entidades estudantis e de moradores da região, em defesa de condições seguras de trabalho para trabalhadoras e trabalhadores do hospital — para que pudessem, nas condições adversas da pandemia, atender à população e defender a vida. “Vendo colegas adoecerem e morrerem de Covid-19, uma campanha pela saúde dos servidores do HU tomou caráter de urgência e envolveu vários setores do HU e da comunidade, incluindo Barbara”, diz o manifesto, endossado ainda pela Frente Paulista em Defesa do Serviço Público, que congrega dezenas de entidades ligadas ao funcionalismo público estadual.
“Supostas ‘provas’ levantadas contra ela são declarações em defesa da garantia de EPIs para os trabalhadores do hospital — como as máscaras, que não eram fornecidas para todos durante os primeiros meses da pandemia —, pela liberação dos trabalhadores pertencentes a grupos de risco, como mulheres grávidas, e sua reposição com a contratação emergencial de mais trabalhadores, para permitir a volta do pleno funcionamento do HU e garantir o atendimento da população”.
Essas demandas, prossegue o manifesto, foram levantadas, além das entidades, também por dezenas de parlamentares, intelectuais, por congregações de unidades da USP e reconhecidas pelo próprio MPT. “Portanto, esse ataque a uma trabalhadora da saúde, militante de base do Sindicato de Trabalhadores da USP atinge todas e todos que apoiam não somente a defesa de condições seguras para trabalhar e para oferecer atendimento de saúde a toda a população, mas também a defesa da liberdade de expressão, pensamento e organização”.
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