Após a divulgação de resultados preliminares considerados ainda inconclusivos, cientistas que atuam em projeto coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz e de que participam outras instituições inclusive a Faculdade de Medicina da USP têm seus perfis invadidos por agressões de milícias digitais de extrema-direita

O Conselho Deliberativo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou nesta sexta-feira (17/4) uma nota em defesa da ciência e de seus pesquisadores envolvidos no estudo CloroCovid-19, que avalia a eficácia do difosfato de cloroquina no tratamento de casos de Covid-19. “A instituição considera inaceitáveis os ataques que alguns de seus pesquisadores vêm sofrendo nas redes sociais, após a divulgação de resultados preliminares com o uso da cloroquina em pacientes graves com a Covid-19. Estudos como esse são parte do esforço da ciência na busca por medicamentos e terapêuticas que possam contribuir para superar as incertezas da pandemia de Covid-19. A pesquisa CloroCovid-19 permanece em andamento e foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)”, diz a nota.

O conselho reitera que “a Fiocruz tem trabalhado incansavelmente em diversas frentes de atuação e vem a público clamar pela tranquilidade e segurança de seus pesquisadores, requisitos essenciais para o desenvolvimento de seus estudos”. “É fundamental alertar que a busca por soluções não pode prescindir do rigor científico e do tempo exigido para obtenção de resultados seguros e que as pesquisas devem se manter, portanto, fora do campo narrativo que constrói esperanças em cima de respostas rápidas e ainda inconclusivas”, prossegue o texto.

O estudo vem sendo realizado por mais de 70 pesquisadores, estudantes de pós-graduação e colaboradores de instituições como a Fiocruz, a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, a Universidade do Estado do Amazonas e a USP. Os ataques a que a nota se refere foram deflagrados a partir da divulgação, no último dia 7/4, de resultados preliminares do estudo. O medicamento foi administrado em 81 doentes internados em estado grave no Amazonas, dos quais 11 morreram — a letalidade ficou em 13%. De acordo com trabalhos internacionais, a taxa de mortalidade de pacientes em condição similar e que não tomaram a cloroquina é de 18%. Esses índices são considerados próximos pelos pesquisadores, o que ainda não permite afirmar que a cloroquina possa fazer uma diferença fundamental no tratamento da Covid-19.

Metade dos pacientes tomou uma dose maior da cloroquina, o que provocou reações como arritmia e outras complicações graves, na avaliação do coordenador do estudo, Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, pesquisador da Fiocruz Amazônia e médico infectologista da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado. A dose alta foi suspensa por ser considerada muito tóxica. As pesquisas prosseguem e devem envolver cerca de 450 pacientes em diferentes hospitais do país durante os próximos dois a três meses.

Haters atacam professora Ludhmila Hajjar (FM) nas redes sociais

A divulgação desses resultados preliminares bastou para que a engrenagem dos “gabinetes do ódio” das milícias bolsonaristas fosse acionada para atacar diretamente alguns dos pesquisadores envolvidos no trabalho. Em suas mídias sociais, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) escreveu que o estudo clínico realizado em Manaus foi feito para “desqualificar a cloroquina”. O remédio, como se sabe, é apontado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro como uma espécie de poção milagrosa para curar a doença, embora não haja no mundo inteiro nenhuma evidência científica que suporte tal crença.

“Os responsáveis” pelo estudo “são do PT. Mas isso é pura coincidência, claro…”, prosseguiu o parlamentar, que ilustra sua postagem com imagens retiradas das mídias sociais de alguns dos pesquisadores que participam do estudo e mostram publicações de apoio à candidatura de Fernando Haddad (PT) à presidência em 2018, além de outras que aludem a temas considerados sinais inequívocos de esquerdismo pelas milícias digitais de extrema-direita — como referências ao assassinato ainda não esclarecido da vereadora carioca Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes ou críticas à postura do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, no caso da pandemia. O país é atualmente o que possui o maior número de mortes pela doença, já tendo ultrapassado a marca de 30 mil vítimas.

Uma das páginas da Internet alimentadas por haters publicou nesta sexta a mesma colagem de imagens de perfis de alguns dos pesquisadores utilizada por Eduardo Bolsonaro em suas postagens. O título do “artigo” diz que “a militância esquerdista” está “por trás da pesquisa com alta dosagem de cloroquina em Manaus”.

Entre as pesquisadoras envolvidas no trabalho e citadas nominalmente na publicação está a médica Ludhmila Abrahão Hajjar, professora do Departamento de Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e coordenadora de cardio-oncologia do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas. Numa de suas publicações no Facebook, a médica, nascida em Anápolis (GO), aparece numa foto ao lado do governador goiano Ronaldo Caiado (DEM), que já fez críticas à forma como o governo federal vem lidando com a crise do coronavírus e, portanto, também merece o carimbo de “inimigo”.

Algumas das postagens da médica no Facebook receberam “comentários” de perfis — difícil saber se verdadeiros ou robôs — que remetem a publicações como a citada acima, além de outras indicando supostas pesquisas internacionais que garantiriam a eficácia da cloroquina.

Numa entrevista concedida à jornalista Cláudia Colucci, da Folha de S. Paulo, publicada no último domingo (12/4), Ludhmilla Hajjar diz: “Cloroquina não é vacina. Está sendo vista como salvadora, e não é”. Afirma também que ainda não existe um tratamento padrão com a utilização do medicamento. “Mas se você fala isso, já começa a apanhar porque a cloroquina virou uma questão nacional de pressão. Mas a realidade científica é essa”, continua.

A médica alertou para a falta de estrutura das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), que considera o principal gargalo no enfrentamento da Covid-19 no país: “Municípios e regiões que sequer têm UTIs, quando têm, não há estrutura. Eu vejo o número de internações aumentando progressivamente a cada dia, o Brasil batendo mais de cem mortes em 24 horas e as UTIs não estruturadas para receber esses doentes. Uma coisa é Einstein, Sírio, Oswaldo Cruz, Samaritano, outra coisa é a realidade Brasil que não é essa”.

A professora chama a atenção para o fato de que a internação numa UTI requer muito mais do que um respirador: “Tem que ter alguém cuidando do respirador, aspirando o doente, tem que ter antibiótico, protocolo, tem que ter a hora do desmame. (…) É uma pneumonia de longa duração. Esse doente ficará 15 dias em média na UTI, de sete a dez dias intubado. Precisando de cuidados de fisioterapia 24 horas, de respirador bom, de antibióticos, de nutrição, de profilaxia de trombose, de prescrição adequada. O desafio é gigantesco”.

EXPRESSO ADUSP


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