No seu voto, endossado pelo Órgão Especial do TJ-SP em julgamento realizado em 8/7, o desembargador Francisco Casconi, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta por nove entidades sindicais contra dois dispositivos da reforma implantada pelo governador João Doria (PSDB), questiona a “razoabilidade” do que chama de “excepcional majoração levada a efeito pelo legislador estadual, avassalando parcela remuneratória de natureza alimentar dos proventos de aposentados e pensionistas sujeitos ao RPPS, verba destinada à sua própria subsistência”

No último dia 8/7, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça (TJ-SP) deu início ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2145293-69.2020.8.26.0000, que foi ajuizada por um grupo de entidades sindicais representativas do funcionalismo público estadual com o intuito de anular dois dispositivos da reforma da Previdência proposta pelo governador João Doria (PSDB) e aprovada pela Assembleia Legislativa (Alesp) em março deste ano.

O TJ-SP ainda não se manifestou sobre o mérito da ADI, mas deferiu a medida liminar solicitada pelas associações e sindicatos autores, “para sustar imediatamente a eficácia, até o julgamento final desta ação: a) do artigo 9º, § 2º, da Lei Complementar 1.012, de 5 de julho de 2007, com redação dada pelo artigo 31 da Lei Complementar Estadual 1.354, de 6 de março de 2020; b) dos artigos 1º a 4º do Decreto do Estado de São Paulo 65.021, de 19 de junho de 2020, por arrastamento; e c) do artigo 126, § 21, da Constituição do Estado de São Paulo, com a redação fornecida pelo artigo 1º da Emenda Constitucional 49, de 6 de março de 2020, determinando-se, em consequência, o regular processamento da ação” (destaques originais do acórdão).

A ADI contesta a ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária que recairia sobre servidores aposentados e pensionistas em caso de declaração de déficit atuarial pelo Governo do Estado, e, ainda, a supressão de imunidade constitucional parcial em prol dos portadores de doença incapacitante, no tocante ao recolhimento de contribuição previdenciária. Essas mudanças foram introduzidas na legislação pela reforma promovida por Doria na Previdência do funcionalismo estadual. Apesar de seu caráter temporário e não definitivo, a medida liminar interessa a todos os servidores públicos estaduais, inclusive os docentes das universidades públicas estaduais. A Adusp enviará ofício à Reitoria da USP para que cumpra a medida liminar.

A ADI, que tem como réu o governador, foi proposta pela Associação Paulista do Ministério Público (APMP), Sindicato dos Servidores da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Contas do Estado (Sindalesp), Sindicato dos Peritos Criminais do Estado de São Paulo, Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado (Afresp), Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep), Associação dos Procuradores do Estado (Apesp) e Associação dos Médicos Legistas. O relator da ADI é o desembargador Francisco Casconi. O julgamento foi presidido pelo desembargador Pinheiro Franco, tendo a participação de 23 outros desembargadores que integram o Órgão Especial do TJ-SP (confira aqui a íntegra do acórdão).

“Ao que se colhe da nova redação do artigo 9º, §2º, da Lei Complementar [LCE] nº 1.012, de 5 de julho de 2007, incluído pelo artigo 31 da Lei Complementar nº 1.354, de 6 de março de 2020, parece ter sido instituída verdadeira hipótese de contribuição previdenciária ‘extraordinária’, incidente sobre parcela dos proventos superiores a um salário mínimo nacional de aposentados e pensionistas sujeitos ao Regime Próprio de Previdência do Estado, a qual está condicionada à declaração (mediante despacho fundamentado do Secretário de Projetos, Orçamento e Gestão art. 3º do Decreto Estadual nº 65.021, de 19 de junho de 2020) de ‘déficit atuarial’ entre o fluxo de receitas estimadas e despesas projetadas do plano de benefícios”, diz Casconi no seu relatório, ao iniciar a análise do pedido de liminar.

O atual artigo 9º da LCE 1.012 tem o seguinte teor: “Os aposentados e os pensionistas do Estado de São Paulo, inclusive os de suas Autarquias e Fundações, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, das Universidades, do Tribunal de Contas, do Ministério Público e da Defensoria Pública, contribuirão conforme o disposto no artigo 8º desta lei complementar, sobre o valor da parcela dos proventos de aposentadorias e pensões que supere o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social. […] § 2º – Havendo déficit atuarial no âmbito do Regime Próprio de Previdência do Estado, a contribuição dos aposentados e pensionistas de que trata o caput, incidirá sobre o montante dos proventos de aposentadorias e de pensões que supere 1 (um) salário mínimo nacional” (destacado na ação).

O relator compara, então, a redação atual com a antiga, de modo a demonstrar a dimensão da alteração ocorrida: “Cumpre gizar, a compulsoriedade da contribuição previdenciária para aposentados e pensionistas no regime próprio até então estava, consoante pretérita redação do artigo 9º, caput, da LCE nº 1.012/2007, limitada à parcela dos proventos que superasse o teto do RGPS, em alíquota fixa de 11%, não atingindo as verbas inferiores ao parâmetro. Atualmente, além da expressa previsão de progressividade das alíquotas indicadas na nova redação do artigo 8º da LCE 1.012/2007, a denotar objetiva majoração do encargo, criou-se, no dispositivo impugnado (o atual artigo 9º, §2º, da LCE 1.012/2007), “excepcional” hipótese normativa que amplia a base de cálculo da contribuição previdenciária de tais inativos, ora para atingir também parcela remuneratória (até então isenta) superior a um salário mínimo nacional” (destaques nossos).

“Editou-se, ainda, o Decreto Estadual nº 65.021, de 19 de junho de 2020 (fls. 491), ato normativo de caráter secundário e regulamentador, que ‘dispõe sobre a declaração de déficit atuarial do Regime Próprio de Previdência do Estado e dá providências correlatas” (destaques no original), acerca do qual se pleiteia inconstitucionalidade por arrastamento. Os argumentos jurídicos que subsidiam o pleito principal, a despeito da forte controvérsia que gravitou sobre a Reforma da Previdência na esfera estadual, são capazes de, num juízo sumário de convicção, alentar indispensável fumus boni iuris [“fumaça do bom direito”] que sobressai de plano”.

Prossegue Casconi: “Cotejo normativo dos dispositivos que dão azo à combatida contribuição previdenciária sugere, in ictu oculi [“à primeira vista”], contradição à previsão do §18, do artigo 126, da Carta Estadual, em aparente situação de antinomia, como aponta a inicial [a ADI] a fls. 11, 3º parágrafo, verbis”: “No caso, tem-se, de um lado, uma expressa disposição da Constituição do Estado de São Paulo que veda a incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas no Regime Próprio inferiores ao limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral da Previdência Social (art. 126, §18). E, de outro, há uma lei complementar estadual permitindo a incidência da mesma contribuição ‘sobre o montante dos proventos de aposentadorias e de pensões que supere 1 (um) salário mínimo nacional até o teto do Regime Geral de Previdência Social RGPS’.”

Com efeito, argumenta o relator, fazendo referência à reforma da Previdência implantada pelo governo federal, “ainda que o modelo instituído possa espelhar, no geral, alinhamento às disposições dos parágrafos 1º a 1º-C do artigo 149 da Constituição da República (incluídos pela Emenda Constitucional nº 103/2019), previsões similares não foram inseridas na Carta Paulista, sendo prematuro concluir, neste momento, tratar-se de norma de reprodução obrigatória. Noutro aspecto, a ampliação da base de cálculo para  fins de contribuição previdenciária, de aposentados e pensionistas vinculados ao RPPS do Estado, também insinua aparente disparidade (resvalando no artigo 163, inciso II, da CE), até então inexistente, em relação aos inativos sujeitos ao RGPS que, por força do artigo 195, inciso II, da Constituição da República, não se submeteriam a exação similar, nem mesmo em caráter extraordinário”.

O desembargador Casconi questiona, ainda, a “razoabilidade” do que chama de “excepcional majoração levada a efeito pelo legislador estadual, avassalando parcela remuneratória de natureza alimentar dos proventos de aposentados e pensionistas sujeitos ao RPPS, verba destinada a sua própria subsistência à luz não só do conceito elementar de previdência social, como também dos critérios da irredutibilidade (artigo 115, XVII, CE) e reajustamento (artigo 126, §8º-A, CE) do benefício”.

No tocante à redação do artigo 126 da Constituição do Estado, a redação do §21 do artigo 126, “na dicção da Emenda Constitucional nº 21/2006”, era a seguinte: “§ 21 – A contribuição prevista no § 18 deste artigo incidirá apenas sobre as parcelas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o artigo 201 da Constituição Federal, quando o beneficiário, na forma da lei, for portador de doença incapacitante.”

“A previsão anterior, de se ver, assegurava aos aposentados e pensionistas portadores de doença incapacitante espécie de imunidade a parcela de seus proventos (tendo como teto “o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do RGPS”) em relação à contribuição previdenciária incidente”, explica o relatório de Casconi. “Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 49, de 6 de março de 2020 (fls. 485/490), ao que se tem, aludida garantia foi suprimida do texto constitucional, na medida em que a nova redação do dispositivo cuidou de tema distinto, passando a prever o seguinte: “§ 21 – O rol de benefícios do Regime Próprio de Previdência Social fica limitado às aposentadorias e à pensão por morte.”

A mudança não merece acolhida, anota o relator: “Numa perspectiva constitucional de vedação ao retrocesso, notadamente em tema que engloba os direitos e garantias individuais, possível contrapor a ablação da ‘imunidade parcial’ a valores elementares como a dignidade da pessoa humana, a isonomia e aqueles que também dão azo ao correlato sistema previdenciário. Questão similar, vale dizer, tramita no […] Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI nº 6336, rel. Min. Luís Edson Fachin, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), ante revogação do §21 do artigo 40 da Constituição da República (pela EC nº 103/2019), dispositivo que continha redação similar àquela do preceito estadual reformulado”.

Tal compreensão de claro retrocesso nos direitos levou Casconi a entender como aceitável a argumentação da ADI e conceder a liminar que suspende o efeito da reforma nos tópicos questionados: “Tais considerações formam, à primeira vista, conglomerado jurídico capaz de enaltecer a relevância da fundamentação externada quanto à alegada falta de convergência constitucional dos dispositivos normativos impugnados. Sob minha ótica, identifica-se, concomitantemente, o periculum in mora consubstanciado no risco de grave dano irreparável, ou de difícil reparação, decorrente da vigência dos atos objeto de sindicância até o exame definitivo da pretensão, especialmente à seara de beneficiários representada pelas entidades promoventes”.

Esse “perigo da demora”, diz ele no seu voto, parece presente também na instituição da contribuição previdenciária “extraordinária” (artigo 9º, § 2º, da LCE 1.012, de 5 de julho de 2007, com redação dada pelo artigo 31 da LCE 1.354, de 6 de março de 2020) criada pela edição do Decreto Estadual nº 65.021, de 19 de junho de 2020, “ato que permitiu a declaração de déficit atuarial do RPPS do Estado em plena situação de pandemia causada pela Covid-19”. Mais uma razão a levá-lo a deferir a liminar requerida pelas entidades sindicais.

EXPRESSO ADUSP


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