A reforma administrativa proposta pelo governo federal praticamente não toca nas questões que realmente demandam mudanças, mantendo uma elite privilegiada de servidores especialmente nos poderes Judiciário e Legislativo e aumentando o fosso abissal existente entre a realidade da maioria dos servidores públicos e essa parcela de favorecidos. Ao mesmo tempo, permite a manutenção da ideia falsa e generalizada de que os servidores públicos são privilegiados, avalia a advogada Lara Lorena Ferreira, do Departamento Jurídico da Adusp, em parecer sobre o tema.

A reforma não atinge futuros magistrados, parlamentares, militares e algumas carreiras do Ministério Público; porém, os demais servidores da Justiça, do Legislativo e do Ministério Público serão enquadrados pelas novas regras. “As distorções atualmente existentes não foram, mais uma vez, enfrentadas, ao contrário, estão sendo reforçadas”, considera Lara Ferreira.

O projeto de reforma administrativa foi enviado pelo governo ao Congresso Nacional no último dia 3/9. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020 precisa ser aprovada em dois turnos na Câmara e no Senado por ao menos três quintos dos parlamentares (308 votos na Câmara e 49 no Senado).

De acordo com a advogada, “o que se observa, num primeiro momento, é novamente a tendência da política deste governo de desconstitucionalização dos direitos, agora dos servidores públicos”. Vários dos temas abarcados pela reforma, que hoje são regidos pela Constituição Federal, passarão a ser regulamentados por novas leis.

“Trata-se apenas da primeira fase das mudanças. Outras etapas virão. Na segunda fase, serão necessários projetos de lei para regulamentar as alterações. E na terceira fase, o governo enviará o Projeto de Lei Complementar (PLP) do Novo Serviço Público, com o novo marco regulatório das carreiras, e direitos e deveres do novo servidor público, normas gerais de gestão de pessoas; política remuneratória e de benefícios; ocupação de cargos de liderança e assessoramento; organização da força de trabalho no serviço público; progressão e promoção funcionais; desenvolvimento e capacitação de servidores; duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas, etc.”, ressalta a advogada.

A forma de acesso ao cargo público é uma das mudanças mais importantes e significativas da proposta, que prevê a criação de novos vínculos de trabalho para a União, Estados, Municípios e Distrito Federal. São eles:

  • cargo com vínculo de experiência: terá duração limitada de um ano para quem pretenda alcançar cargo com prazo indeterminado e de dois anos para o servidor que pretenda ocupar cargo típico de Estado. O ingresso será por meio de concurso público, sem estabilidade, e o regime de contribuição será o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS);
  • cargo com vínculo por tempo indeterminado: ingresso por meio de concurso público. Não gera estabilidade e tem como regime de contribuição o RPPS;
  • cargo típico de Estado: ingresso por meio de concurso público. É o único cargo que gera estabilidade, após três anos nessa modalidade. Tem como regime de contribuição o RPPS;
  • cargo com vínculo por tempo determinado: ausência de concurso público e ingresso por meio de um processo seletivo simplificado. Não gera estabilidade e se justifica para contratação em casos de necessidade temporária decorrente de calamidade, emergência, paralisação de atividades essenciais ou acúmulo transitório de serviço, e ainda para atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; além de atividades ou procedimentos sob demanda. Tem como regime de contribuição o Regime Geral de Previdência Social (RGPS);
  • cargo de liderança e assessoramento: ausência de concurso público. Assemelha-se aos cargos de livre nomeação, não havendo necessidade de que sejam de carreira. Tem como regime de contribuição o RGPS.

A PEC 32/2020 apresenta uma série de outras mudanças, extinguindo institutos hoje existentes, como promoções automáticas, licença-prêmio, aumentos retroativos, adicionais por tempo de serviço (biênios, quinquênios, sexta parte etc.) e adicional ou indenização por substituição não efetiva.

A proposta veda o gozo de férias por período superior a 30 dias por ano, “dispositivo demagógico, já que não inclui as carreiras que desfrutam desse privilégio, como os juízes”, lembra Lara Ferreira. Também são vedados o pagamento de parcelas indenizatórias sem previsão legal; a redução de jornada sem redução de remuneração, exceto se causada por condição de saúde; a progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço; a incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções; e o adicional ou indenização por substituição.

“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão optar por vincular, por meio de lei complementar publicada no prazo de dois anos, os servidores que vierem a ser admitidos para cargo com vínculo por prazo indeterminado, inclusive durante o vínculo de experiência, ao RGPS, em caráter irretratável. Os critérios para definição de cargos típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal. Os ato dos chefes de cada poder disporão sobre os critérios de acesso aos cargos de liderança e assessoramento”, aponta a advogada.

Terá estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício em cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, de acordo com a lei. Assim como o atual servidor público estável, aquele que vier a ocupar cargo tíico de Estado só o perderá em razão de decisão transitada em julgado, ou se proferida por órgão judicial colegiado, bem como por meio de avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa.

A PEC veda o acúmulo de cargos e a realização de qualquer outra atividade remunerada para ocupantes de cargos típicos do Estado, ainda que durante o período do vínculo de experiência. Ocupantes de cargos típicos poderão acumular atividades de docência ou de atividade própria de profissional da saúde, quando houver compatibilidade de horários.

Competirá privativamente ao presidente da República criar, transformar e extinguir cargos, empregos e funções públicas quando isso não implicar aumento de despesas. O militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente será transferido para a reserva.

As novas normas alcançarão os servidores que ingressarem no serviço público após a entrada em vigor da Emenda Constitucional e serão aplicadas a servidores de todas as esferas, não apenas a federal. Os atuais servidores públicos permanecem sob o regime das regras atuais da Constituição Federal.

A PEC propõe a inclusão, no artigo 37 da Constituição, de novos princípios que devem balizar a administração pública. Alguns deles são desnecessários, como os princípios da imparcialidade e transparência, aponta a Lara Ferreira, porque “decorrentes dos princípios da impessoalidade e publicidade”.

Há também outros princípios “amplos e abstratos”, considera a advogada, como os de “unidade, inovação, coordenação, responsabilidade e boa governança, que também não deixam de decorrer do princípio da legalidade, moralidade e eficiência, já previstos”.

Merece preocupação, entretanto, a inclusão do princípio da subsidiariedade. Nesse caso, mais parece tratar-se de “uma tentativa governamental de subverter o princípio da subsidiariedade, que consiste essencialmente no papel que ao Estado caberia ocupar como poder concedente de serviços e obras públicas, de tal forma que a infraestrutura do poder público, na visão do atual governo, somente ocupe lugar ante a ausência e insuficiência do setor privado”, diz Lara Ferreira.

A advogada lembra que o “princípio da subsidiariedade” foi positivado pelo fascismo, na célebre Carta del Lavoro, em 1927: “A intervenção do Estado na produção econômica tem lugar unicamente quando falte, ou seja insuficiente a iniciativa privada ou quando estejam em jogo interesses políticos do Estado. Tal intervenção pode assumir a forme de controle, de encorajamento e de gestão direta”. O princípio foi adotado em cartas constitucionais de regimes autoritários no Brasil, como o Estado Novo e a Ditadura Militar.

Na avaliação da advogada, a pretensão de combater a ideia de dificuldade de despedimento de servidor público é outras das propostas da PEC 32/2020 que se baseia “em pressupostos falsos”. “A estabilidade do servidor público não é só garantia de trabalho do servidor, mas é uma garantia da sociedade, para que a mesma não fique à mercê de interesses mesquinhos em detrimento ao interesse público”, afirma. Acabar com a estabilidade e com os concursos é colocar “o aparelho do Estado a serviço da política do governo”.

“Estado e governo não podem se confundir. Sem a estabilidade, só permanece no cargo quem se sujeitar às vontades políticas circunstanciais. Assim, o combate à estabilidade é o que de pior pode acontecer aos princípios da impessoalidade e moralidade administrativa, que deveria conduzir os atos administrativos”, afirma.

Por sua vez, a nova estrutura de acesso aos cargos traz de volta “as velhas práticas de apadrinhamento no serviço público e loteamento de cargos na administração pública”. “Os prejuízos serão incalculáveis”, considera Lara Ferreira.

O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) divulgou três documentos relativos à reforma administrativa encaminhada pelo governo Bolsonaro.

O texto Proposta de Emenda à Constituição nº 32, de 2020 – Comentários preliminares lembra que a PEC parte de premissas semelhantes às da Emenda Constitucional 95 (EC 95) – que impõe durante vinte anos um teto para os gastos públicos – e propõe medidas que, “a pretexto de ‘reformar’ a administração pública e ‘corrigir distorções’, promovem, na verdade, o total desmonte do Estado e suas estruturas administrativas e de Carreira, visando facilitar a redução de despesas e impedir a sua elevação, especialmente a médio e longo prazos”.

Utilizando dados do Banco Mundial, o documento apresenta uma comparação das despesas de pessoal entre o Brasil e dezenas de outros países, demonstrando que de 2014 a 2018 “a despesa com salários de servidores caiu, no Brasil, de 12,11% para 11,72% da despesa total, enquanto os juros se elevaram de 23,5 para 24,1% da despesa”. No mundo, no mesmo período, prossegue o documento, também cresceu a despesa com juros: “Contudo, a proporção entre pessoal e despesas com juros é extremamente diversa: enquanto no Brasil em 2014, a despesa com pessoal foi de 52% do total gasto com juros, e em 2018, 49%, a média mundial foi de 382% para 332%, ou seja, a despesa com pessoal foi de mais de 3 vezes a despesa com juros”.

A nota legislativa A Reforma Administrativa do governo Bolsonaro para os funcionários públicos analisa, artigo por artigo, todas as alterações previstas pela PEC no texto constitucional no que se refere ao funcionalismo. Na avaliação dos autores, “a reforma administrativa já estava sendo gestada sob a orientação fiscal e na visão do Estado mínimo defendida pelo Governo, cuja prioridade não é a melhoria da qualidade dos serviços ou da gestão pública, mas o fundamentalismo liberal do ministro Paulo Guedes e demais ministros de redução da máquina pública, do fim dos concursos públicos, dos reajustes salariais e da prestação de serviços à população”.

Já o documento Análise Comparativa da PEC 32/2020 e Constituição em vigor também apresenta detalhadamente as mudanças propostas pela PEC, incluindo comentários e observações em cada item. Ao se referir, por exemplo, à nova redação dada ao caput do artigo 37, que introduz como princípios da administração pública “os da imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade”, o documento afirma que “essa ‘verborragia’ pouco traz de concreto, a não a ser como declaração de intenções”.

Tais conceitos, prossegue a análise, “revelam a falta de critério na elaboração da PEC, pois parecem mais elaborações amadorísticas, inspiradas por cartilhas e recomendações de órgãos internacionais, por parte de quem não soube sequer aferir a necessidade de mudanças constitucionais ou seus reflexos futuros, inclusive como forma de ampliação da judicialização contra a atuação dos agentes públicos”.

EXPRESSO ADUSP


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