Reitoria processa professor que aceitou apelo de Rondônia e salvou vidas de pacientes de Covid-19 em hospital de campanha

Docente do Instituto de Química e graduado em Medicina, Luís Moreira Gonçalves solicitou afastamento ao seu departamento e à CERT antes de viajar para RO em atenção a um chamado desesperado por médicos para combater a pandemia. Foi inicialmente liberado pelo chefe do departamento e, chegando a Porto Velho, atuou em UTI antes mesmo de vacinar-se. Notificado para que retornasse à USP, preferiu exonerar-se, mas ainda assim é alvo de Processo Administrativo Disciplinar por “acumulação ilícita de cargos”

No Hospital de Campanha da Zona Leste, em Porto Velho

Os torquemadas da Reitoria são insuperáveis. Enquadrar, processar, punir é tudo que importa. Desde, claro, que não se trate de alguém do peito: “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Porém, em tempos de pandemia a sanha persecutória afronta qualquer aparência de racionalidade. Por exemplo, como e por que punir alguém que arrisca a própria vida para salvar a de outras pessoas? Parece surreal processar um servidor público por um deslize formal, se determinada exigência burocrática foi desrespeitada por razões meritórias relacionadas ao combate à pandemia. Parece surreal, e é. Mas, como veremos a seguir, está acontecendo na USP nos dias soturnos que correm.

Por determinação do vice-reitor Antonio Carlos Hernandes (“em substituição ao reitor”), o então professor Luís Francisco Moreira Gonçalves, do Departamento de Química Fundamental do Instituto de Química (IQ), responde ao Processo Administrativo Disciplinar (PAD) de número 20211412716, instaurado em 18/3/2021. As razões são elencadas na Portaria 69/2021, assinada na véspera por Hernandes, segundo a qual Gonçalves, que ingressou na USP em 27/4/2018, em Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), estando em estágio probatório, teria em tese violado o RDIDP e praticado “acumulação ilícita de cargos”.

Conforme os considerandos da Portaria 69, “a despeito do RDIDP”, Gonçalves “teria participado do processo seletivo regido pelo Edital 73/2020/SEGEP-GCP, de 12/5/2020, tendo posteriormente, em 1/2/2021, entrado em exercício na função temporária de Médico Clínico Geral, junto [sic] ao Hospital de Campanha da Zona Leste, em Porto Velho/RO, da Secretaria de Estado de Saúde de Rondônia, com carga horária semanal de 40 horas e remuneração inicial de R$ 12.047,12” (na verdade, o salário base era de R$ 9.028,76).

Em seguida, diz a Portaria que “a despeito do cadastramento de uma solicitação de afastamento nos termos do art. 40, XI, da Resolução 7.271/2016 (Estatuto do Docente)”, o professor do IQ “não aguardou o trâmite pelas instâncias competentes — que poderiam aprovar ou rejeitar o pleito —, assumindo as funções junto ao Estado de Rondônia quando ainda ativo seu vínculo e regime de trabalho junto à USP, mesmo tendo sido expressamente alertado pelo Chefe de Departamento de que não deveria se ausentar antes de completo o trâmite e deferido o afastamento”.

Portanto, o vice-reitor Hernandes — e o reitor Vahan Agopyan em seu nome — admitem que Gonçalves solicitou afastamento nos termos estipulados pelas normas da USP. Seu crime foi não ter aguardado “o trâmite pelas instâncias competentes — que poderiam aprovar ou rejeitar o pleito”. Por outro lado, a Portaria omite o fato de que, inicialmente, o chefe do seu departamento concedeu o afastamento (algo que, no PAD, ficará claro, ainda que seja enfatizada sua posterior mudança de posição).

Veremos mais adiante que o professor decidiu não esperar o “trâmite” em razão de fatos aparentemente óbvios: muitas pessoas estavam morrendo por Covid-19 em Porto Velho; ele foi contratado à distância, às pressas, exatamente para ampliar o escasso contingente de médicos de um hospital de campanha que precisava dele urgentemente; e ele (ingenuamente, por certo) achava esses motivos mais que suficientes para embarcar num avião sem demora, até por acreditar que o afastamento lhe seria concedido — afinal de contas, a USP sempre se declarou engajada nos esforços de combate à pandemia.

Pois bem: na já citada Portaria 69 de Hernandes, respaldada em parecer da Procuradoria Geral (PG-USP), o reitor Agopyan, por intermédio do vice-reitor Hernandes, determina a instauração do PAD “com o objetivo de garantir o exercício da ampla defesa e do contraditório ao servidor docente Professor Doutor Luís Francisco Moreira Gonçalves”, conforme a frase-padrão que abre esse tipo de documento. Mas esse trecho inicial, que soa auspicioso, é sucedido pelo enunciado de uma assustadora sequência de dispositivos legais e de crimes nos quais Gonçalves pode vir a ser enquadrado pela Comissão Processante.

Assim é que, nas palavras da portaria, “em princípio, referido docente infringiu o preceito do RDIDP estabelecido no artigo 89 do Estatuto da USP, bem como nos artigos 14 e 15, inciso 1, do Estatuto do Docente, constituindo procedimento irregular de natureza grave (artigo 256, inciso 11, da Lei 10.261/1968) e possível improbidade administrativa pela acumulação irregular de funções públicas (artigos 9º e 10º da Lei 8.429, de 2 de junho de 1992), ficando sujeito, em tese, à pena máxima de demissão a bem do serviço público, na forma do artigo 251, inciso V, da Lei Estadual 10.261/1968”.

Improbidade administrativa? Demissão a bem do serviço público, para quem arriscou a pele para salvar vidas em um Estado pobre? Não se vê tamanho zelo com a probidade administrativa quando se trata de punir docentes de tempo integral que dirigem empresas  e projetos privados com grande desenvoltura, ou que atuam em certas fundações privadas supostamente “de apoio”.

No presente caso, um detalhe perturbador é que o docente do IQ, uma vez instado a retornar e cientificado do processo em andamento, decidiu exonerar-se.

Avaliadores consideraram “bastante satisfatório” seu relatório de atividades

Tendo chegado a este ponto, já podemos nos perguntar quem é o incauto professor acusado de tantas barbaridades administrativas. Gonçalves é um jovem de 36 anos, de nacionalidade portuguesa, doutor em Química pela Universidade do Porto e licenciado e mestre em Medicina pela Universidade do Minho. (Nunca havia clinicado antes de atuar no hospital de campanha de Porto Velho, pois, como explicou à diretora clínica dessa unidade, resolveu cursar Medicina apenas porque considerava que isso seria útil às suas pesquisas.) Saiu-se bem como docente do IQ, atestam seus pares.

Parecer sobre seu segundo relatório anual de atividades (referente ao período de 28/4/2018 a 8/1/2021), assinado pelos professores Fernando Rei Ornellas, Koiti Araki, Marina Franco Maggi Tavares e Massuo Jorge Kato (p. 98-99 do PAD), mostra um professor dedicado, cujo desempenho acadêmico foi considerado pelos avaliadores “bastante satisfatório e que tem culminado na consolidação de sua linha de pesquisa em materiais eletroativos”. Concluiram que suas atividades em ensino, pesquisa, extensão e gestão “atestam sua aderência institucional”, razão pela qual essa comissão manifestou-se “plenamente favorável à aprovação de seu relatório”.

Um resumo desse parecer deve bastar ao leitor ou leitora. “A produção científica com predomínio em materiais eletropoliméricos é bastante expressiva, traduzida em 27 artigos científicos publicados em periódicos de bom nível, sendo um número expressivo como autor de correspondência. Teve um projeto Jovem Pesquisador (Fapesp) aprovado em 2018 e auxílios para Pesquisador Visitante para estágio no exterior (King’s College London) e para organização de reunião científica”.

Possui ampla rede de colaboradores, sendo três do próprio IQ e os demais em Portugal, Reino Unido, República Checa e China. “A divulgação de seus trabalhos é bastante notória com apresentação de seminários e conferências em diversos eventos científicos. Destacam-se ainda um prêmio internacional de melhor pôster, duas patentes obtidas em Portugal, uma em submissão, e duas patentes licenciadas”.

Sua atividade docente ao longo do período, considerada “bastante positiva”, envolveu ministrar as disciplinas de graduação Química Analítica I, II e III; Química Analítica Instrumental; e Fundamentos da Química para Física. Na pós-graduação, contribuiu com as disciplinas Tópicos Avançados de Química I, II, III (quatro vezes) e IV (três vezes) e Sensores Químicos e Biossensores (duas vezes).

Orientou quatro alunos de iniciação científica e está orientando outros seis, todos com bolsas de estudos (duas da Fapesp), além de um aluno de mestrado e um de doutorado. “Tem contribuído em assessoria ad hoc junto à Fapesp e Fundação Araucária, tem atuado como editor da Frontiers in Sensors, como editor de números especiais da Nanomaterials e Current Opinion in Electrochemistry, além de participar como revisor de inúmeros periódicos”. Por fim, Gonçalves foi membro titular da Congregação do IQ (2020-2022).

Não há como evitar a impressão de que a USP está perdendo um bom professor, mesmo se observados estritamente os padrões meritocráticos, cientométricos e produtivistas tão ao gosto da Reitoria.

Os apelos do Departamento de Química Fundamental ao reitor

A insólita situação criada pelos torquemadas da Reitoria levou o chefe do Departamento de Química Fundamental, professor Josef Wilhelm Baader, a enviar um apelo ao reitor em 6/4, “na esperança de encontrar uma  possibilidade ou um caminho” para evitar a demissão de Gonçalves (p. 96 do PAD). Idêntica posição fora adotada em 22/2 pelo Conselho Departamental, que aprovou, por unanimidade, moção de apoio ao docente, igualmente encaminhada a Agopyan (p. 100 do PAD).

“Como deve ser do conhecimento de V.Sa., o Prof. Luís Francisco Moreira Gonçalves […] se encontra em situação funcional bastante difícil, pois movido por razões humanitárias, e obediência ao Juramento de Hipócrates, efetuado por ele, tanto em Portugal, quanto no Brasil (tem formação em Medicina e possui nacionalidade Portuguesa), e dada a situação calamitosa em que se encontra o Estado de Rondônia, no enfrentamento da Pandemia de Covid-19, com absoluta insuficiência de médicos para atender ao crescente número de pacientes infectados, sentiu-se impelido a ajudar aquelas pessoas”, principia o ofício de Baader.

“Ressalte-se, contudo, que apesar de ter assinado um contrato com a Secretaria de Saúde daquela Unidade da Federação, suas intenções não incluíam auferir vantagem pecuniária, tendo mesmo se prontificado em abdicar do salário obtido como professor da USP, no período, em benefício do Hospital Universitário, ou cogitado um afastamento com prejuízo de vencimentos, sendo que esta última providência foi a ele vetada pois não possui ainda cinco anos de efetivo exercício no serviço público”, prossegue o chefe do departamento.

“Trata-se de excelente docente, muito engajado em todos os pilares da Universidade, como pode ser comprovado pelo parecer (anexo) a respeito do relatório elaborado por ele, relativo aos três anos após admissão no Instituto de Química. Também conta com o apoio de seus colegas do Departamento de Química Fundamental e tendo o assunto da situação funcional dele sido discutido na reunião do Conselho Departamental, foi aprovada, por unanimidade, a elaboração de uma Moção (anexa) rogando à Reitoria da USP, para que fosse encontrada uma solução para o caso, sem prejudicar o docente, ou que pelo menos mitigasse os efeitos de uma eventual punição”.

Baader ressalta que apesar de a moção do Conselho Departamental ter sido discutida durante reunião da Congregação do IQ “e recebido amplo apoio”, não foi encaminhada às instâncias superiores “por sugestão do Diretor da Unidade, o qual acreditava que a mencionada providência poderia interferir no processo, para o qual, segundo informou, a Procuradoria Geral buscava uma solução adequada”.

Entretanto, continua, “mesmo diante de todos esses fatos, recebemos, consternados, a notícia da abertura de um Processo Administrativo contra o referido professor, com possibilidade de demissão, a bem do serviço público, de pessoa que certamente foi responsável por evitar a morte de inúmeras pessoas durante esses dois meses em Porto Velho, Rondônia e por razões de consciência, vê-se impedida de abandonar o seu posto no hospital. Por esse motivo, ele já cogita solicitar exoneração da USP, para evitar maiores prejuízos profissionais”.

O chefe do departamento chama a atenção do reitor para as possíveis repercussões políticas negativas do PAD: “Preocupa-me, entretanto, que este desfecho, ainda que voluntário, possa causar efeitos inesperados para o Instituto de Química e para a USP, frente à opinião pública, por demitir ou permitir a demissão de um docente cuja única intenção foi a de prestar socorro em um hospital de emergência, arriscando a própria vida em um Estado carente de recursos humanos, durante a maior crise sanitária vivenciada pelo Brasil. Essas circunstâncias poderiam acabar provocando uma mancha em todos os brilhantes esforços de tantos pesquisadores e profissionais, nossos colegas, que se encontram pesquisando arduamente na busca de soluções técnicas e farmacológicas para a grave situação epidêmica em que todos nos encontramos”. E conclui: “Pelas razões acima expostas, apelo a V.Sa. na esperança de encontrar uma possibilidade ou um caminho através do qual a demissão do Prof. Luís Francisco possa ser evitada”.

Já a moção aprovada na reunião de 22/2 do Conselho do Departamento de Química Fundamental relata que, na ocasião, “os conselheiros foram informados pelo Chefe do Departamento de que o docente — que também é médico — havia se inscrito e, posteriormente, fora convocado para atuar como médico em caráter emergencial para atender doentes de Covid-19 no Hospital de Campanha da Zona Leste de Porto Velho, em Rondônia”. Entretanto, observam, “o docente se viu impedido de solicitar o afastamento não remunerado, visto estar em final de período probatório”.

Os membros do Conselho, diz o documento, “louvaram a iniciativa e o desprendimento do colega médico em prestar ajuda humanitária num momento de colapso dos sistemas de saúde de diversas cidades brasileiras, especialmente na Região Norte e, no caso do mencionado Hospital de Porto Velho, por falta de médicos, vez que se encontra equipado”.

Além de solidarizar-se com Gonçalves, a moção solicita à Congregação e à Direção do IQ “que envidem os esforços possíveis junto aos órgãos centrais da Universidade para que, considerada a excepcionalidade da situação de crise hospitalar imposta pelo recrudescimento da pandemia, a nobre opção de se voluntariar para salvar vidas durante o período emergencial — que impede o colega de retornar de imediato — seja levada em conta na busca de alternativa que permita regularizar a sua situação perante a Universidade”.

Na contramão do viés burocrático adotado pela Reitoria, o documento sinaliza um forte apoio à atitude do docente: “Os conselheiros reconhecem que a ausência temporária do Dr. Luís Gonçalves representa um ônus para o Departamento e para o Instituto, cujo quadro docente vem sendo reduzido e preenchido por docentes temporários, o que prejudica a qualidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão desempenhadas pelo IQ-USP. Entretanto, ainda que a presença de cada docente seja fundamental para o Instituto, no atual momento de emergência sanitária a questão humanitária se impõe como prioridade, e os cidadãos brasileiros assolados pela Covid-19 devem ser atendidos em primeiro lugar”.

Ao final, a moção requer que Gonçalves seja anistiado pelo reitor: “Assim sendo, os membros do Conselho, por unanimidade, apelam para que seja concedido, em caráter excepcional, o afastamento não remunerado solicitado pelo docente, e que seja anistiado das eventuais sanções administrativas por sua situação irregular decorrente desse voluntariado, haja vista a causa humanitária ser uma justificativa plenamente aceitável diante de um quadro com a perda de mais de 250 mil brasileiros e sequelas de longo prazo em milhares de outros”. De lá para cá, o total de óbitos provocados pela Covid-19 praticamente dobrou.

O apelo do Secretário de Saúde de Rondônia ao reitor

O secretário estadual de Saúde de Rondônia, Fernando Rodrigues Máximo, também intercedeu em favor de Gonçalves, enviando ofício ao reitor Agopyan em 17/3, para “solicitar, em caráter excepcional, o afastamento solicitado pelo Professor Doutor Luís Francisco Moreira Gonçalves”, bem como “que seja anistiado das eventuais sanções administrativas por sua situação irregular decorrente do exercício de plantonista médico, no Hospital de Campanha da Zona Leste, sendo que essa atividade é exercida em caráter temporário e de exceção, durante o Estado de Calamidade em decorrência da pandemia Sars-CoV-2”.

Além de destacar o caráter extraordinário da situação criada pela crise sanitária, o secretário elogiou a atuação de Gonçalves: “Diante do atual Estado de Calamidade Pública, venho por meio deste documento solicitar que o autorizem para prosseguir o seu desempenho como profissional médico, mediante a grande responsabilidade e excelência do trabalho desenvolvido”.

Gonçalves foi procurado pelo governo de Rondônia pelo fato de seu nome constar do cadastro do Ministério da Saúde, como profissional registrado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp). Máximo informou ao reitor que o professor do IQ “escolheu com autonomia desempenhar atividades na Unidade de Terapia Intensiva voltado para atendimento exclusivo de paciente com Covid-19, atuando na linha de frente no combate nessa pandemia, tendo respondido ao apelo do Estado de Rondônia, devido à falta de profissionais médicos na região”.

No final, o secretário reforça os argumentos: “Diante de tudo que foi explanado acima, solicitamos a compreensão do Magnifico Reitor, ponderando toda a situação descrita no caso em comento, que autorize o afastamento do Professor Doutor Luís Francisco Moreira Gonçalves para que possa exercer a sua função de médico na linha de frente ao combate a Pandemia da Covid-19 no Hospital de Campanha da Zona Leste, localizada em Porto Velho, Rondônia”.

Embora o PAD instaurado contra Gonçalves inclua um documento interno da Secretaria de Saúde de Rondônia, de 29/1, no qual é comunicada a sua contratação “temporária, em caráter emergencial”, “por tempo determinado, com vistas à ampliação imediata da cobertura assistencial à população, em decorrência da pandemia” e “por meio do banco de dados do Ministério da Saúde”(PAD, p. 9), o ofício enviado ao reitor em 17/3, pela maior autoridade da pasta, não foi anexado ao processo até este momento.

“Minha consciência me impele a ficar”, disse Gonçalves quando instado a retornar a São Paulo

“Ontem à noite, dei alta a uma senhora após três semanas de internamento. O neto, de 5 anos, veio-me agradecer ter salvo a vida da avó. Nunca mais vou ver essa mulher ou o neto, já nem lembro os nomes deles, mas estarei para sempre feliz com o que fiz. A minha consciência me impele a ficar”. Esta é uma passagem da mensagem enviada por Gonçalves em 11/2 ao professor Baader, em resposta ao e-mail em que o chefe do departamento solicitou seu imediato retorno a São Paulo.

“Caso isto resulte no meu desligamento, desde já peço desculpa a todos os que investiram em mim. Estava entusiasmado em criar um bom grupo de pesquisa e tinha orgulho em fazer parte da família USP”, acrescentou Gonçalves, que permaneceu em Porto Velho até o dia 30/4, quando os indicadores epidemiológicos locais apontavam uma situação menos aguda.  “Nunca estive antes numa posição de salvar vidas. Em Rondônia eu literalmente salvei vidas”, declarou o docente ao Informativo Adusp. Na conversa por telefone, ele se confessou chocado com a intransigência da USP, ao mesmo tempo em que externou preocupação com as possíveis consequências do processo, como eventuais prejuízos à renovação do visto de trabalho, do qual depende na condição de cidadão estrangeiro, ou ainda pior: “Se eu for demitido a bem do serviço público, durante dez anos não poderei ter função pública”.

Há toda uma ironia e surrealismo na situação, avalia ele amargamente. “Fiquei nove meses sem receber salário, de abril a dezembro de 2018. O empregador é que responde pela burocracia — resolver o visto de trabalho do trabalhador estrangeiro — e eles cometeram erro atrás de erro. E não respondiam aos meus e-mails”. Depois, finalmente, o docente recebeu o valor retroativo. “Agora querem reembolso dos salários em sete dias, e devolução do auxílio-alimentação!”, protesta.

Não foram poucos os obstáculos encontrados no súbito deslocamento para Porto Velho. “Tentei me vacinar em São Paulo antes de viajar e não consegui. ‘Covid em Rondônia não é problema da Secretaria de Saúde de São Paulo’, me disseram. E lá ainda não estavam a vacinar”, relata. No hospital de campanha, deparou-se com pacientes da sua faixa etária. “Meu primeiro óbito era um mês mais velho que eu. Corri risco de vida. Era uma variante [do vírus] bem mais agressiva. Foi um caos, uma situação de guerra, que me deu muitos pesadelos. Houve várias mortes por faltarem medicações básicas. Faltou eletricidade”.

Gonçalves considera que não terá problema em conseguir um novo emprego, mas admite que guarda mágoa pessoal. “Lamento ter defendido a universidade, porque não é uma instituição que defende o bem público. Não houve boa-vontade da USP, pelo contrário”, destaca. “A USP diz que está na luta contra a pandemia, mas não está sendo coerente. A posição da USP é de desprezo pelo que fiz”. Um registro melancólico: “Limpei meu gabinete no IQ. Tive que pedir autorização a outro professor para poder entrar.”

“Fiquei logo a trabalhar. Me deram de imediato uma UTI com dez leitos”

No depoimento virtual que concedeu à Comissão Processante, em 27/4, em sessão que contou com a participação de sua advogada, Gonçalves emocionou-se em diversos momentos. Ele não escamoteou suas opiniões sobre o próprio PAD.

Relatou que receava ser inútil em Porto Velho, dada a sua falta de experiência clínica: “Ao falar ao telefone com a diretora-clínica [antes da viagem], foi absolutamente claro que seria útil. A situação era de extremo desespero”. Ao final da sessão, ao responder a uma pergunta de sua advogada, Gonçalves voltou a falar dessa conversa: “Eu quis falar com a diretora clínica, porque queria perceber se eu ia ser útil, porque novamente: eu não clinico, então não sabia se seria útil ou não. Eu não queria ir para lá ser um incômodo, de passar o dia [eles] tendo que me ensinar coisas em vez de eu estar efetivamente ajudando. Eu disse: ‘Olha, eu sou professor da USP, eu não clinico, eu tenho um curso de medicina, eu fiz esse curso para ajudar a minha atividade de pesquisa. Será que eu vou aí fazer alguma coisa?’ Ela respondeu que sim, que se eu tivesse vontade de ajudar, de aprender, que certamente ia salvar vidas. E foi de fato o que aconteceu”.

Ele explicou como foi o início do seu trabalho, às oito da manhã do dia 1º/2: “Eu até pensava que ia conhecer o hospital, mas não. Fiquei logo a trabalhar. Me deram de imediato uma UTI com dez leitos, para ajudar. Quando digo ‘ajudar’, era ser responsável por dez leitos de UTI. O que, para alguém sem experiência clínica, pode-se dizer que foi absolutamente aterrador”. Observou que a nova variante do Sars-CoV-2 mata pessoas jovens. “Minha primeira certidão de óbito ele era um mês mais velho do que eu. Minha segunda certidão de óbito ela era oito anos mais nova que eu”.

Gonçalves voltou a se emocionar quando sua advogada lhe perguntou sobre o e-mail do professor Baader, recebido por ele em 11/2, no qual foi exortado a retornar à universidade. Coincidentemente esta é a data do seu aniversário. “Eu estava proibido de visitar meus pais, não havia vôos para Portugal, mesmo que quisesse. Nesse dia tive, salvo erro, dois ou três óbitos de meus pacientes. Tive uma alta, uma coisa muito bonita. Não fazia sentido para mim abandonar aquilo”, respondeu. “Não só não fazia sentido, não sei até que ponto como médico poderia abandonar pessoas a precisar de ajuda de forma tão dramática. Portanto não vim porque nunca na vida iria viver bem com a minha consciência”. Confira aqui depoimento da paciente Maria de Fátima de Souza sobre o “Luís Portuga”.

Na sequência, Gonçalves disse à Comissão Processante que não entende o sentido da frase que consta do parecer da PG-USP sobre seu caso, de que “os fins — por mais nobres e altruísticos sejam — não justificam os meios” (PAD, p. 54). Enfatizou não compreender a razão pela qual uma instituição pública inibiria um funcionário seu de salvar vidas, em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos. “Eu li essa frase provavelmente umas cinquenta vezes, e continuo sem perceber o sentido, a motivação. Já nem vou pela parte humana, como é que alguém consegue escrever aquela frase. Mas mesmo a parte lógica eu não consigo entender, não tenho a capacidade de perceber a lógica por trás dessa frase”. (O autor desse documento é o procurador-chefe Omar Hong Koh.)

“Sobre a solicitação de afastamento, por que o senhor não aguardou os trâmites pelas instâncias competentes da USP, que poderiam aprovar ou rejeitar o pleito?”, questionou o presidente da Comissão Processante, Carlos Ferreira dos Santos (diretor da Faculdade de Odontologia de Bauru). Gonçalves respondeu dizendo que já deu tal explicação “em letras garrafais” em e-mail que enviou ao IQ: “Na prática, cada dia que eu demorasse, morreriam pessoas, portanto eu estava indo literalmente salvar vidas, foi isso que escrevi em letras garrafais. Eu enviei esse e-mail sábado ou domingo, antes de fazer a viagem, quando disse ‘por favor, alguém com contato do reitor, do vice-reitor, entrem em contato e resolvam a situação da forma mais rápida possível’. Eu não podia esperar os trâmites legais se isso significaria a morte de pessoas. E continuo a achar isso. Até porque, com toda sinceridade, nunca imaginei que a resposta fosse negativa”.

Acrescentou já haver pedido afastamentos no Departamento de Química, para participar de determinados congressos, e o afastamento é oficialmente concedido um mês depois de o congresso ter decorrido. “Imagino que às pessoas que estão aqui lhes tenha acontecido situação semelhante. Várias vezes fui chamado para bancas de doutorado, e a reunião do departamento [a quem compete conceder o afastamento] só ocorreu três, quatro semanas depois. Imaginava que seria apenas uma questão burocrática a resolver.

Até porque, como deixei totalmente claro desde o início, meu objetivo não era acumular salários ou enriquecer, eu estava desde o momento inicial disposto a ter uma licença sem vencimentos, a deixar de ter exclusividade [RDIDP], até como disse a doar meu salário ao Hospital Universitário ou a uma instituição de caridade. Enfim, eu não imaginei que o que está acontecendo agora pudesse acontecer”. 

Gonçalves reiterou que seus objetivos não eram de natureza pecuniária, até porque, se fosse assim, ganharia muito mais com plantões em São Paulo. “Não houve motivação monetária. Aliás, seria muito estúpido arriscar a minha vida desta forma”.

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