Sucessão Reitoria
Na posse, Carlotti promete valorizar carreiras e deixa claro que USP vai procurar recursos privados, enquanto Doria transforma cerimônia em comício
28/01/2022 14h11
Pronunciamentos em defesa da ciência, da autonomia e da importância da pesquisa feita pela universidade pública, em contraposição ao negacionismo e à asfixia financeira das agências de fomento e das instituições federais de ensino superior, deram a tônica da cerimônia de posse do novo reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior, realizada no final da tarde desta quarta-feira (26/1) no Palácio dos Bandeirantes.
A cerimônia serviu também para que o “anfitrião”, o governador João Doria (PSDB), transformasse a ocasião numa espécie de comício para atacar o governo de Jair Bolsonaro (PL) e expor suas credenciais à sucessão presidencial.
O novo reitor salientou em seu discurso que “no Brasil aprofundou-se nos últimos anos o processo de desintegração social, a exigir da cultura e da ciência papel propositivo e proeminente”. O saber e a ciência representam a principal riqueza de uma nação, prosseguiu, “e o Brasil infelizmente arrisca-se a perder o sentido da história contemporânea, aproximando-se perigosamente da regressão e não do esclarecimento”.
Falando em nome do Conselho Universitário (Co), o professor Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito, ressaltou que Carlotti e Maria Arminda do Nascimento Arruda, nova vice-reitora, “assumem a Reitoria numa quadra particularmente desafiadora”, pois “nunca a universidade, a ciência, o saber e o conhecimento foram tão confrontados como nos últimos anos”.
“A onda obscurantista que se abateu no Brasil e no mundo pôs-se em cruzada contra o saber, o método, a herança iluminista no ambiente universitário”, prosseguiu.
O professor afirmou que as eleições de 2018 anteciparam, “de forma inédita”, situações que ocorreriam depois, como “tentativas de censurar o debate acadêmico e a liberdade de expressão na universidade”.
“Nestes anos recentes, as ameaças à democracia tiveram, todos sabemos, a universidade como um dos seus alvos preferenciais. Fomos taxados de fazendas de produção de drogas, antros de ociosos, sorvedouros de dinheiro público, centro de lavagem cerebral esquerdista e até de agentes chineses”, disse Marques Neto. A esses “ataques anti-iluministas” somaram-se iniciativas, que qualificou de “fundamentalismo fiscal”, que ameaçaram também a autonomia financeira das universidades.
Uma ausência notada foi a de Antonio Carlos Hernandes, que se despedia do cargo de vice-reitor e encabeçou a chapa que perdeu a eleição à Reitoria, em novembro passado. A candidata a vice-reitora na chapa, Maria Aparecida de Andrade Moreira Machado, estava presente.
Um precedente bem mais emblemático ocorreu em 2014, quando o ex-reitor João Grandino Rodas não compareceu à cerimônia de posse do seu sucessor, M. A. Zago. O cargo foi transmitido por Hélio Nogueira da Cruz, vice na gestão de Rodas, então no exercício da função de reitor praticamente apenas para o ato formal.
Nesta quarta, Zago, atual presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), estava na plateia, assim como a ex-reitora Suely Vilela — como o próprio Carlotti, ambos são docentes de unidades da USP em Ribeirão Preto.
Novo reitor promete “atenção especial” aos jovens docentes
Marcos Santos/USP Imagens
O novo reitor iniciou o seu discurso (leia a íntegra) com a citação de Guimarães Rosa utilizada na campanha da chapa: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois se desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. (…) ainda no meio da tristeza”.
“Parece que não conseguimos escapar desse duplo sentimento que nos obriga, de um lado, a reconhecer os tempos tristes em que vivemos, e por outro, nos impulsiona com coragem e otimismo em relação ao futuro”, disse.
Carlotti defendeu a urgente “valorização e recuperação orçamentária de tradicionais agências nacionais, como a Capes, o CNPq e a Finep, para que possam implantar de forma estável políticas plurianuais de apoio à cultura, ciência e tecnologia”. “Não podemos pactuar com a migração de talentos e a fuga de cérebros, comprometendo os dias vindouros. Precisamos de políticas sólidas voltadas à atração e retenção de talentos, inteligências das quais não podemos prescindir”, afirmou.
Na visão do novo reitor, a USP respondeu aos desafios do momento da pandemia, “mas ainda precisamos recuperar todos os prejuízos sociais e educacionais desse período e buscar soluções para inúmeros outros problemas que afligem nossa sociedade”.
Carlotti destacou os “princípios fundamentais” da gestão. São eles:
“1. Manter canais permanentes de diálogo com a comunidade uspiana, individualmente ou por meio dos colegiados e associações, respeitando a diversidade de opiniões e procurando que as posições da Reitoria reflitam da melhor forma os anseios da Universidade.
2. Exercer liderança acadêmica de forma articulada com diferentes setores da sociedade, no sentido de oferecer e participar do equacionamento dos problemas sociais vigentes.
3. Buscar criatividade e efetividade para construir soluções, valorizando as atividades-fim da Universidade.
4. Valorizar as carreiras docentes e funcionais de modo a garantir condições dignas e adequadas ao seu exercício, com atenção especial para os jovens docentes.”
“Hélice tripla”, inclusão e “virtualização”
Assim como fez durante a campanha – inclusive na reunião com a Diretoria da Adusp, duas semanas antes da eleição –, Carlotti defendeu a adoção de mecanismos de financiamento privado da universidade. Afirmou que irá valorizar “as atividades de inovação e empreendedorismo”, em todas as áreas do conhecimento, “de modo a levar para a sociedade soluções advindas das pesquisas de nossos alunos e professores”.
“A USP será facilitadora deste processo, utilizando os marcos legais existentes, tanto estadual como federal. As conexões da USP com a sociedade serão feitas no modelo de hélice tripla, articulando a inovação com o conceito empresa-universidade-governo”, ressaltou.
O reitor enfatizou a necessidade de aprimorar os processos de inclusão na USP, “garantindo suporte à permanência estudantil e ao rendimento acadêmico esperado”. Também garantiu que a gestão terá um compromisso “altamente inovador” ao criar uma pró-reitoria para permanência estudantil, saúde integral e políticas inclusivas sociais, étnico-raciais e de gênero.
“Vale registrar aqui, como um destaque, que as assimetrias de gênero nas tarefas se acentuaram durante a pandemia. As jornadas de trabalho cumpridas pelas mulheres, jornadas duplas ou triplas que são conhecidas há décadas, se ampliaram ainda mais neste período. A sobrecarga é ainda mais sentida pelas docentes e mães pesquisadoras”, disse.
Carlotti sinalizou ainda que a USP deve “avaliar estrategicamente” a nova realidade da “virtualização” das atividades universitárias, acelerada pela pandemia, para “incorporar soluções que, a partir do modelo predominante presencial, possam melhorar o processo de aprendizagem”.
Ao final do discurso, ficou com a voz embargada e se emocionou ao agradecer aos familiares e aos colegas e docentes em sua trajetória na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Representante do Co defende melhorar salário para combater fuga de cérebros
Floriano de Azevedo Marques Neto, na saudação em nome do Co, afirmou que a tragédia da pandemia permitiu que a universidade pública demonstrasse a sua importância na pesquisa de testes, medicamentos e tratamentos para a Covid-19 e também em iniciativas como o desenvolvimento de respiradores que foram utilizados em vários lugares do Brasil.
Entre os desafios da gestão, o professor apontou a retenção de talentos. A USP, considera, vem perdendo jovens docentes para universidades estrangeiras por conta do desalento com a situação do país, mas também pela “defasagem de remuneração e de infraestrutura”. “É preciso repensar políticas de remuneração, investir em instalações, tornar as carreiras atrativas”, defendeu.
Outros desafios que citou são manter o diálogo e a diversidade numa “sociedade imersa na intolerância” e lutar pela manutenção da autonomia.
Assim como Carlotti, Marques Neto ressalvou a importância de buscar recursos financeiros em outras fontes, além do financiamento público, travando um “debate franco e sem preconceitos sobre a relação que temos com o mundo privado, empresas e organizações da sociedade”.
O desafio mais importante, assinalou, é avançar para “ampliar e consolidar os mecanismos de inclusão”. “A política de cotas da USP, embora tardia, deu muito certo e é um enorme sucesso”, afirmou.
“Esses jovens, vindos de famílias pobres, da escola pública, periféricas, pretos, pardos e indígenas, serão em breve nossos doutores, pesquisadores, docentes, líderes de suas áreas de atuação”, disse, defendendo a necessidade de viabilizar a permanência estudantil e garantir mais bolsas. “A diversidade também passa pelo aprofundamento das políticas de gênero”, prosseguiu
Para Patricia Ellen, antes era preciso “fazer mais com menos”, mas agora “há recursos”
A secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado, Patricia Ellen, também mencionou os desafios trazidos pela pandemia, especialmente “a luta contra o negacionismo e pela vida e ao mesmo tempo um passo além no combate às desigualdades”, que foram exacerbadas no período. Afirmou que o aumento do orçamento destinado pelo Estado à área de ciência e tecnologia demonstra exatamente esse compromisso.
Se antes a realidade era de “fazer mais com menos, como aprendi com os professores Zago e Vahan, agora temos recursos, e nossa responsabilidade aumentou”, disse. A secretária comparou a situação do Estado com a do governo federal, que neste ano destinou à C&T “o menor orçamento da história do Brasil”, equivalente a um terço daquele do primeiro ano do governo Bolsonaro.
Ressaltando que é a primeira mulher titular da pasta, Patricia Ellen saudou a eleição de Maria Arminda como vice-reitora, a segunda da história da USP — a primeira foi Myriam Krasilchik, docente da Faculdade de Educação, entre 1993 e 1997.
“Esperamos que isso passe a ser a regra e não a exceção, e que possamos ter reitoras na nossa universidade”, disse, aparentemente desconhecendo o fato de que a USP já teve uma reitora — Suely Vilela (2005-2009).
Ao final da cerimônia, Patricia Ellen fez várias selfies com seu celular no palco, ao lado de Doria e das autoridades uspianas. A secretária publicou um registro do momento em sua conta no Twitter.
Doria incorpora o “João Trabalhador” e reforça discurso de campanha
No discurso que encerrou a cerimônia, o governador João Doria — que dispensou o texto escrito pela assessoria e anunciou que iria falar “de coração” — vestiu o figurino de candidato à Presidência da República. Fez vários ataques ao governo federal e procurou contrastar o negacionismo bolsonarista com o seu suposto empenho pela ciência e pela educação nos três anos de gestão — quadro no qual, evidentemente, carregou nas tintas ficcionais.
“Aqui não ameaçamos a educação, aqui nós protegemos a educação”; “este é um governo que reconhece o valor da academia, o valor da educação e a sua capacidade de transformação na vida das pessoas”; “São Paulo não hesitou e eu como governador não hesitei em apoiar a ciência, a academia e a educação”, disparou, entre outras afirmações.
No mundo dourado do governador, nunca existiram os ataques de seu governo a instituições públicas de pesquisa, o desmonte de institutos centenários, as ameaças ao financiamento da Fapesp — o que motivou forte mobilização da comunidade acadêmica e científica — e o descalabro na educação básica, agravado pela letargia na adoção das medidas destinadas, por exemplo, a permitir o acesso da(o)s aluna(o)s às aulas remotas na pandemia.
Mesmo o Instituto Butantan, sempre exaltado nos discursos oficiais pelo seu papel na produção da vacina CoronaVac, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, padece dos males do descaso governamental, como a falta de concursos públicos para seu quadro de pessoal ou a sempre controversa relação institucional com uma fundação privada, a Fundação Butantan. Sem falar nas tentativas da gestão Doria de fechar o lendário Hospital Vital Brazil, ligado ao instituto e referência nacional no tratamento de pessoas picadas por animais peçonhentos.
Num ato solene promovido na Assembleia Legislativa em maio do ano passado em defesa da pesquisa científica em São Paulo, o então presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado (APqC), João Paulo Feijão Teixeira, ressaltou que o total de pesquisadores científicos dos 19 institutos de pesquisa foi reduzido em 25% nos cinco anos anteriores e que o próprio Butantan estava com 46% de seus cargos vagos. “Hoje, um terço dos pesquisadores do instituto já tem condições de se aposentar”, afirmou Teixeira.
Para o candidato Doria, porém, isso pouco importa. O governador transformou a cerimônia em palanque, incorporando a figura do “João Trabalhador” de suas campanhas eleitorais. Relatou sua história de dificuldades desde a infância, a necessidade de começar a trabalhar com 13 anos de idade para ajudar no sustento da casa e a “vitória” na vida “pelo trabalho, pela dedicação e pelo esforço”.
Na sequência, Doria afirmou que, após uma trajetória “próspera como empresário”, resolveu entrar na vida pública, na qual venceu a eleição para prefeito de São Paulo (2016) — mandato que abandonou depois de 15 meses — e para governador (2018).
De acordo com seu universo particular, tem feito “política pública com qualidade, com transparência, com eficiência, com capacidade de transformação e defendendo a educação, a ciência e a vida”.
Na conclusão do discurso, atacou novamente Jair Bolsonaro, com quem tem trocado farpas ao longo de toda a pandemia. Afirmou que o governo federal, “frente a uma tragédia dessa dimensão, ofereceu as costas e a indiferença ao povo brasileiro”.
Doria conclamou a nova gestão da USP a “defender a liberdade”. “Nada mais importante para uma nação do que a preservação da sua liberdade. Não tenham ilusões de que ao longo dos próximos meses em muitos momentos a nossa liberdade estará sendo ameaçada e, ao lado dela, a nossa democracia”, finalizou, sendo aplaudido de pé pelo público.
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